Eleazar Carrias (Pará, 1977) é um poeta brasileiro, nascido em 1977 no interior do Pará. Publicou os livros Regras de fuga (e-galáxia, 2017; Urutau, 2023), Máquina (Urutau, 2021), e Quatro gavetas (Prêmio Dalcídio Jurandir de Literatura 2008, da Fundação Cultural do Pará Tancredo Neves). Com Máquina, foi semifinalista do Prêmio Oceanos 2022 e finalista do 4º Prêmio Mix Literário. Em 2023, pela editora Fictícia, publicou no Instagram a plaquete Perder Partir. Pedagogo, cursa o doutorado em Educação na Amazônia na Universidade Federal do Pará.
EM BUSCA DE DEUS
A água brota do chão,
corre sobre a Terra.
Sim, a água está no chão.
A fruta
madura,
a fruta está no chão.
(Como o peixe está no rio
e o rio corre na Terra.)
O amor, a reprodução
da espécie se faz assim:
o amor fica de quatro, e espera.
(O amor começa simples.)
Mas algum deus sádico,
invisível, grita “Herectus”.
O homem obedece
e há dois milhões de anos
anda de cara pra cima
sobre duas patas.
MECÂNICA
para Lázara Papandrea
Olhas demoradamente para teu cão
farto dos dias que para ti
foram anos, para ele talvez
uma eternidade.
Olhas sem pressa o ventre
gordo subir e descer
sob a mecânica impessoal
que lhe garante o justo fornecimento
do mesmo ar que respiras.
Nesse momento curto e comprido
esqueces as previsões climáticas
o vazamento de Hélio-3 do núcleo da Terra
as crianças assassinadas na Faixa de Gaza
– olhas sem pressa o teu cão.
Com ele aprendeste o cuidado,
a paciência, o amor. Amanhã,
a esta hora, ele estará morto.
E esqueces que, como os milênios
são anos e os anos são dias,
em breve nenhuma troca gasosa vital
restará neste mundo.
A ubíqua máquina de respirar
nunca terá existido. Agora, porém,
sem saber que vai morrer,
teu velho cão te olha de volta, agradecido.
Teu cão, impondo, entre ti e ele,
esta verdade simples e irrisória:
vocês respiram.
SANTIDADE
Meus erros trago-os comigo.
Com eles me cubro
de fina e pegajosa escama,
entupo orelhas
visto meus pés
faço uma auréola para o prepúcio.
Então saio na rua
como quem acabou de tomar
banho depois de rezar muito.
Por onde passo
vejo fármacos e advogados.
Percebem o mau disfarce
e me oferecem ajuda,
sabem que estou nu.
No entanto, estou
completamente coberto.
A cidade ferve de gente correta
faz 36 graus
mal posso respirar.
Não fosse meu manto de erros,
estaria coberto de medo
e meu pai coberto de vergonha.
A VISÃO
Todas as noites
me levanto pela madrugada,
quando ainda sonham os galos,
e ouço o silêncio me chamando lá fora.
Pela fresta da janela
vejo a rua despida
e o frio a lamber-lhe as curvas.
Todas as noites se repete o convite.
E no dia seguinte
me culpo por abandonar a noite
sozinha
lá fora.
OS DIAS COM ELE
Vinte e cinco anos vivi com meu pai.
9.203 dias vi o sol interiorano
desenhar um arco sobre seu crânio,
queimando-lhe os cabelos.
Queimou tanto que se criaram filetes de cinza branca.
E em todo esse tempo nunca deixei escapar
sequer uma tímida palavra de amor.
Vinte e cinco anos é quase um tempo perdido.
Nunca o beijei.
Mas ainda sinto seu amor carnal me puxando pelo braço
para me dar uma surra.
Vinte e cinco anos me salvando.
MÚSICA PERDIDA
Músicas perdidas
nunca se reencontram.
É vão iluminar
de lágrimas o caminho.
Não chores por tua música perdida:
não chores por nada.
Um rio secou-se
atravessado na garganta.
Se te fosse possível
um olhar sem paixão,
amar seria contingente.
– E sofreria menos?
Nada se te esclarece.
És livre e não sabes para onde ir.
PRELÚDIO E CONCLUSÃO DE UM LIVRO FUTURO
Foi então que, não sendo outono, as folhas voltaram a cair.
E percebeu que todas aquelas idas e voltas a partir
da casa amarela, toda sua busca pelo perfeito lugar
não fora mais que a primitiva – nem poderia deixar
de ser – a primitiva, primeira, primária vontade que já
no nascimento, embora aí sem mácula, se desenha:
fugir à alegria de ser sozinho, livre, sem lar,
e apegar-se a quem, por amor ou por pena, tenha
a coragem de dar-se em pele e deixar-se, pelo outro, amar.
Poemas maravilhosos. Parabéns meu amigo!