Auroras

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Carlos André*

Há no monge um poeta, está claro. Mas há, ainda, no poeta, um monge. É o que se depreende da leitura de Tito Leite em Aurora de Cedro, pela editora 7 Letras.

A mesma dedicação que o homem por trás dos versos empenha nas lides monasteriais, surge também neste outro sacerdócio: a Literatura.

Parece motora da criação do autor esta dualidade entre sagrado e profano posta no embate entre a contemplação religiosa e a lisonja da aventura do mundo proposta pela prática poética.

Por isto “São voláteis” as preces do poeta? Por isto “o demônio emana do homem’’? Por isto “o corpo / é mágico”? Por isto “ele deseja quebrar / o fêmur do céu?”.

Qual o lugar do corpo nesta tensão afinal?

Tito encara com coragem a vertigem das perguntas, sabendo de antemão que o poema pouco possui respostas, pois que não é de seu feitio. “A dúvida faz parte / de cada bago do poema”.

A implicação, de ver o trabalho com a poesia com uma gravidade vital, se desdobra, como registro, no aspecto amplamente metalinguístico da obra.

É um livro que fala, muito, sobre a centralidade da escritura para este que nela se aventura. Aqui, aliás, um primeiro feito a ser notado: a realização da metalinguagem como uma possibilidade inexaurida da poesia contemporânea, pois aproveitada em suas densidades filosóficas.

Os metalinguismos, muitas vezes usados como uma forma de facilitação criativa por parte da poesia brasileira, é aqui ele mesmo problematizado pois leva ao confronto com o mundo pelo intermédio da poesia: “o poeta pensa / na fumaça industrial”, “o poeta trucida”.

Há reiteradamente um deslumbre cativante do autor que parece se redescobrir, a cada novo poema, um poeta novo. Há um entusiasmo dorido pela beleza da autoria. Um entusiasmo com o pouco que o poema oferta, outra vez numa devoção religiosa à sua pobreza, ao que ele silencia.

Há, no entanto, uma equiparação desta autoria com outras formas de criação, postas à altura da escrita, notadamente: o amor, esta criação suprema, justamente porque procria; e, outra forma radical de invenção, a loucura.

O Amor visto como uma possibilidade de um “propósito / (..) maior que a vida”, porque sua máxima realização é “o amor que delira”.

A loucura, especialmente, surge ainda como um recurso talvez mais correspondente às urgências humanas, como uma forma mais próxima do que seja a própria literatura, forçada ao encarceramento pelos não entendimentos vigentes, no limite de sua experiência.

Autor erudito, Tito submete sua erudição à prova do poema, sugerindo que se não render versos, ela um tanto se apequena. Daí seu texto apresentar um talho preciso, uma grande consciência da própria artimanha. São versos que, mesmo quando emocionais, se pensam.

 “Alguns poetas falam das coisas que nos faltam / outros dos demônios que não partiram” diz o poeta. Aurora de Cedro talvez discuta as duas coisas, desdobradas uma na outra: os demônios que nos faltam; as faltas que partiram. Observa que precisamos deste daemon inquisidor que nos permita ultrapassar o imediato, que precisamos cogitar o que nos falta.

Dentro das poucas referenciações diretas no livro, se destaca aquela a Sousândrade, poeta do XIX também artesão do estilo, também incondicional em sua lavra, onde talvez Tito se inspire.

Dividido em cinco partes, que funcionam como os dedos de uma mão invisível, além do próprio poeta, e que se entrelaçam, Aurora de Cedro tem uma unidade, um projeto nítido de literatura. 

André Luiz Pinto, no prefácio, faz uma interessante reflexão sobre o título da obra, que longe de defini-lo aponta suas múltiplas possibilidades de leitura. Uma delas, não citada, porém, guardada como um segredo na parte final (o livro é dividido em cinco delas), diz que esta “aurora” pode estar “entre tuas pernas”, num simbolismo que parte do sexo para falar da ventura maior que é a própria vida.

É o erotismo também um ato profundamente criador em muitas linhas desta poética.

Por fim, vale notar que o aprendizado surrealista, aprendido pelo poeta no livro anterior, se desdobra aqui em um equilíbrio formal mais sóbrio, mas que ainda conserva o onirismo como criador de imagens surpreendentes e belas: “O dia, um cão / que morde uma nuvem, / um cheiro de chuva / petrificada na sala (..) / Assim / me vou, acendendo / uma vela / ao mistério que me desvela: / que seja / pluma essa morada / nuviosa.”.

            Nuviosas palavras, pois Tito sabe que poesia está para além da clareza.


Carlos André é poeta, compositor e pesquisador literário. Publicou mínima lâmina, pela Editora Córrego. Idealizador e editor do canal e da editora Clóe.

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