por Ricardo Nonato
As 39 lâminas – vozes/ poemas –, tal qual a faca do homônimo poema cabralino, “Uma faca só lâmina (ou: serventia das idéias fixas)”, é parte de uma anatomia criadora, de uso interno, “habitando num corpo”. O que o leitor irá folhear são formas que reverberam o mundo, onde a humana consciência habita, “qual faca íntima/ ou faca de uso interno,”.
Não por acaso, o poeta João Cabral de Melo Neto, apesar de ocupar “o lugar cartesiano da lu¬cidez mais extrema”, nas palavras de Haroldo de Campos, não deixa de dialogar com uma teoria da metáfora nas suas múltiplas possibilidades de sentido.
Este livro é uma roda nordestina. Assim, o que está fora do corpo, também dentro, dinamiza processos criativos que avançam contra o tempo e, por isso, o que era revolta e sua natureza, ganhou materialidade – a lâmina que fere – e sua forma inconfundível, o poema.
O babaçu torna-se aqui, nesta reunião, elemento fundamental de um contexto criador, metáfora absoluta e metáfora da invenção. A palavra “faca”, com sua ação íntima, sempre a nortear os poemas apresentados, cumpre o seu papel ao deflagrar um instante de crise para o leitor que vivencia uma múltipla e complexa realidade evocada pelas palavras.
Cabe observar que para o filósofo Hans Blumenberg, “a relação do homem com a realidade é indireta”, acrescenta, “complicada, pro¬telada, seletiva e, sobretudo, metafórica”. Assim, ao questionar a unidade como finalidade da atividade pensante, reconhece a pluralidade do ser, e a metá¬fora, nesse caso, seria compreendida a partir da maneira como homem e mundo distinguem-se um do outro, instaurando uma distância ontológica que está na origem da própria linguagem. Por isso, além de suprir uma carência constituinte, a metáfora, ao nomear o novo, garante certa plasticidade a linguagem, pois, ao evidenciar os seus limites, paradoxalmente, amplia o seu alcance.
Aqui, a lâmina se multiplica pelo engenho da voragem e o que de uso interno habita o corpo, repartido pela força do machado, agora é conjunto: 39 lâminas como um coro de vozes descontentes. E aquela experiência única, que aparentemente não se deixa apreender, provoca outras através das interpretações de cada leitor.
Não por acaso, Paul Ri¬coeur entende a metáfora como “capacidade de produzir um sentido novo, onde a incompatibilidade semântica desmorona na confrontação de vários níveis de significação”. Explica ainda, que o sentido político da metáfora é estabelecido na medida em que seus significados são atribuídos a partir da experiência do sujeito no mundo.
A metáfora do babaçu não é apenas um ponto de partida para esta reunião de autores distintos, antes, mantêm-se “absoluta”, assumindo o lugar central da invenção, no aprendizado de uma linguagem da carência, que orienta os procedimentos para a intensificação daquilo que o poema diz. Por isso, o esforço, esse “querer dizer”, se converte numa espécie de conflito dramático existente ao longo do livro, frente a uma conjuntura política que tem limitado, não apenas direitos assegurados por décadas de luta e deixa a todos perdidos num mundo de tanta incerteza.
Esta insatisfação similar se faz presente em outras antologias publicadas após o resultado da última eleição presidencial realizada no Brasil. Exemplo disso é a antologia No entanto: dissonâncias (2019), organizada pelo poeta e editor Fred Caju, na cidade do Recife.
Os poemas da antologia Babaçu – 39 lâminas reverberam este incômodo nacional, já que o ponto de partida para este encontro foi um fato ocorrido no final do mês de junho: a apreensão de 39 quilos de cocaína no avião presidencial, enquanto fazia uma escala na Espanha. Tal incidente norteou esta reunião de versos, inseridos nesse contexto de tanta incerteza.
A escolha do babaçu como metáfora para este livro não é gratuita, se pensarmos no que está além de sua natureza cascuda. Existe todo um contexto de lutas e reivindicações sociais que ainda fazem parte da realidade nacional. A luta pelo direito de catar o babaçu, portanto, é o ponto central de uma discussão que já se alonga por mais de cinquenta anos nos estados do Pará, Tocantins e, sobretudo, no Maranhão, onde as chamadas “quebradeiras de coco” se organizaram para reivindicar seus direitos. São elas que ainda hoje discutem medidas para pôr fim ao processo de devastação dos babaçuais, na tentativa de garantir o livre acesso e o uso comum das palmeiras.
Um dos resultados dessas reivindicações são as leis do “Babaçu livre”, que garantem o livre acesso às palmeiras de babaçu, e criação das reservas extrativistas. Mais do que isso, a luta consiste em garantir a eficácia da lei, condicionada a um campo de disputas que envolvem o “direito em dizer o direito”, usando as palavras de Pierre Bourdieur. Por isso, divulgam a existência da lei, interpretando-a de maneira própria e que expressa uma nova forma de convivência entre as pessoas e a natureza.
A poesia, portanto, de modo agudo e na sua diversidade, apresenta-se como lâmina, mas sem ignorar as possibilidades deste fruto opaco que guarda tantos sentidos e segredos de vivência/ sobrevivência, na sua carnadura.
Fruto que ao despencar do alto da palmeira revela seu ponto perfeito, como um poema que precisa dormir para acordar maduro. Metonimicamente é o desejo de manter de pé os babaçuais que movem as vozes aqui organizadas, com firme propósito de acreditar que a poesia nos dias atuais pode incomodar.
Os autores aqui reunidos se unem no desafio da reivindicação, com suas lâminas agudas e o firme propósito de marcar um lugar de fala contra o silêncio assustador que impregna o cenário nacional e que extrapola a luta das quebradeiras de babaçu, com quem nos solidarizamos, nesse momento, ao assumirmos este fruto cascudo como símbolo de resistência, também de persistência.
Ao mesmo tempo, o que é revolta alcança regiões mais profundas, para além dos fatos. Assim, o que de intenso se pode ler nestas lâminas – poemas –, também é percebido nas vozes inconformadas das pessoas, frente a uma realidade concreta. De modo que os autores aqui presentes assumem, pela força da palavra, um caminho para o grito, que na arte tem a intenção de ecoar onde mais possa alcançar.
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Ricardo Nonato (BA). Professor, pesquisador, escritor, artista visual, editor do fanzine Círculo Poético de Xique-Xique e criador do selo de arte Casa de Vento, através do qual publica seus textos. Publicou Cântico de Quitéria (2017) pelo selo cartonero Pé de Letra (PE), com nova edição da Casa de Vento em 2018, além de Beleza Oculta (2018). Foi vencedor do prêmio Bahia de Todas as Letras (2007), na categoria infantil, com o livro O menino que morava no umbigo do mundo. Tem poemas publicados em diversos periódicos de poesia e planeja publicar Breve mordida e Coração de Faca, ainda em 2018.
Fantastica a resenha. Aqui, a metáfora é retratada com o carinho e a sutileza que um termo tão caro à divinização dos sentidos das palavras, merece. Parabens!