Torto Arado: um sopro

| |

 Por Iza Maria Abadi de Oliveira, psicanalista, cronista. Doutora em Psicologia Clínica (PUC-SP), Mestre em Estudos Literários (UFSM).


“O vento não sopra, é o sopro” (Torto Arado)

É possível um livro nascer destinado a ser um clássico? Se acompanharmos a tese de Ítalo Calvino (2007) em Por que ler os clássicos? de que um clássico atravessa os tempos pois tem sempre algo a dizer, parece que Torto Arado nasceu assim: desde sua estrutura narrativa à história contada. Também, os temas podem dialogar com muitas as áreas disciplinares e não disciplinares. 

É uma obra sobre o humano em que o universal ultrapassa culturas, disciplinas e apreensões conclusivas. Parece que Torto Arado é inesgotável em questões que suscitam em uma narrativa poetizada do social ao ínfimo do íntimo.

Em cada personagem há uma sensação de infinitude. Esse arado que, assim como sulca a terra, rasga a alma de cada morador de Água Negra. Vozes que narram a visceralidade de suas existências.

A vertente que aflora, neste momento, é uma interlocução possível de Torto Arado com a psicanálise. Os encontros da literatura com a psicanálise e a psicanálise com a literatura foram, historicamente, complexos em ambos os campos. Seguimos, então, nesse legado desde Freud!

Nesse horizonte, impressiona a narrativa do estado de loucura da personagem Crispina, do “o infortúnio da loucura que havia abatido seu juízo” (p. 39). As páginas que seguem do desencadeamento de sua crise ao seu estado melancólico são impressionantes. Assim como Crispina, muitos batem à porta de Zeca Chapéu Grande, o curandeiro do corpo e do espírito que socorre “espírito dividido, gente esquecida de suas histórias, memórias, apartadas do próprio eu, sem se distinguir de uma fera perdida da mata” (Ibidem).

Leia também:  A Bússola do Desejo, Confabulações de Berta Lucía Estrada Sobre A Chave Selvagem do Sonho, de Anna Apolinário

O inconsciente é linguagem, se estrutura como linguagem, com suas metáforas e metonímias, produzindo significantes, como consagrou Jacques Lacan. Em Torto Arado, os significantes entoam, imprimindo um ritmo, uma musicalidade para além das suas magníficas construções frasais e pontuações. O significante insiste, mostrando sua insistência em cadeias enunciativas distintas, como a faca de cabo de marfim, o arado, a língua, o vento. Esses objetos cortantes atravessam os tempos, constroem histórias, ferindo e fortalecendo. Se Belonisia não pode pronunciar mais palavras orais, devido à falta de um órgão – numa brincadeira quando criança, sua língua é mutilada -, seu universo de linguagem se expande em seus gestos, pensamentos e silêncios. O silêncio é linguagem. E corta. Produzem significantes por onde o inconsciente se constrói e se revela.

O relógio marcou cinco e vinte da manhã de domingo quando meus olhos terminaram de arar a última linha de Torto Arado. Ainda na cama, deitada, abracei ele e sonhei, sob estado de luto, num misto de tristeza e alegria. A última vez que fiquei assim, haviam se passado mais de três décadas com o final da saga do O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo. A Bibiana e sua tesoura. Objetos cortantes. Significantes. 

Quando perguntaram para Freud quem eram seus grandes mestres, ele mostrou clássicos da literatura. Assim como esses, Torto Arado, parece que rasga nossa alma. Abrem espaços significantes em nossos pensamentos, sensações e silêncios, construindo outros mundos em nós. É o vento. O sopro.


Referência Biliográfica:
CALVINO. Ítalo. (2007). Por que ler os clássicos. São Paulo: Cia. das Letras
JUNIOR, Itamar V. (2019). Torto Arado. São Paulo: Todavia

Deixe um comentário

error

Gostando da leitura? :) Compartilhe!