por Tiago Germano
Ao se apropriar da palavra “spoiler”, o léxico popular consagrou o uso de uma expressão que, sob a influência da cibercultura, passou a se referir, por exemplo, ao texto que revela o desfecho de um livro ou de um filme, supostamente “estragando” a experiência de acompanhá-los até o final. Em inglês, o verbo “to spoil” remete justamente à ideia de “estragar” ou “arruinar” alguma coisa, o que quase coloca em xeque o sentido material do substantivo “spoil”, frequentemente associado ao conceito de “espólio”, “legado”, “patrimônio”. Se pensarmos na cultura como um atributo humano, ela própria um campo aberto em que tradição e vanguarda estão em constante batalha, o caos e a ruína ganham também um papel de produção e perpetuação – e é esse o grande insight que Diego Grando nos antecipa já no título de Spoiler, seu quarto livro de poemas.
Fruto de sua tese de doutorado na área da escrita criativa, a obra é uma arguta investigação sobre o tempo, como nos indica as duas partes do livro que avançam e retrocedem em duas temporalidades distintas: o “Passado pressentido” e o “Presente prorrogado”. São as dimensões de uma poesia que, diferente daquela definida por Manuel de Barros como um voar fora da asa, reencontra o voo no ato concreto de bater as asas: o tempo que interessa a Diego Grando é o tempo do beija-flor “no ar, imóvel, como que suspenso em pleno voo”. A imagem encontra-se também já previamente delineada, escrita logo nas primeiras páginas, na bela epígrafe de André Comte-Sponville. É o retrato bressoniano de um instante decisivo e transformador, de um tempo suprimido, “em que nada permanece, nem a própria imobilidade”. Porque o futuro não nos dá spoilers: ao mesmo tempo, o passado está repleto deles que, no presente, repetem-se em uma constância que precisa ser ignorada para seguir avançando.
Sendo assim, o spoiler não é capaz de estragar o tempo da poesia. Que o diga a série de seis poemas intitulada “Memorabilia”, um dos momentos mais pessoais de uma coletânea extremamente particular, em várias acepções da palavra. “Antes do tempo ser tempo / meus avós já não estavam”, escreve o poeta, mais uma vez vaticinando o desfecho de seu passado, o último suspiro de sua genealogia na década comum em que ele e os avós, o agora e o ontem, coabitaram. A informação prévia não diminui o espanto final. Engolfado pela morte, o silêncio da avó, seu maior legado no pretério, estraga-se na banalidade eletrônica do futuro: “sua data de nascimento: / seis dígitos – três pares” vão parar “na senha do banco / da minha mãe”.
A série intercala um preâmbulo e uma nota para um poema tardio que jamais será executado: o “spoiler” é a própria peça poética em seu estado bruto de delicadeza. A partir daí, o poeta torna-se esse “estraga-prazeres” que se vale da expectativa criada no leitor para torturá-lo com a esperança de que ela seja falsa: em “Onze-horas”, poema que é curiosamente o paratexto da contracapa do livro, pressentimos o coração do tio Mário parando numa anódina pedalada noturna na cidade de Canoas. Nem o poste onde Mário se escora para achar na luz o compasso de sua respiração, nos dá algum alívio para os sete minutos de estrofe em que viajamos dentro de um carro, sem cinto de segurança, até o Instituto de Cardiologia de Porto Alegre. Uma viagem que já chegara ao fim na contracapa do livro, no Túnel da Conceição, na flor que encerra o poema abrindo-se “doze horas antes do combinado”.
Embora no “Presente prorrogado”, o poeta se detenha sobre um tempo ulterior, em que aquele poema tardio retorna já na forma de um pós-escrito (um epitáfio para o amigo Diogo e os inevitáveis “trocadilhos derivados / com nomes de duplas sertanejas”), o passado ainda paira na forma deste spoiler último e indevassável: a morte, o fim antes do cair dos letreiros, do castelo de cartas, das peças de dominó. “Os nossos tios estão morrendo, meu irmão /num paquepaque de peças de dominó” – abre-se a interlocução com o irmão, futuro tio, peça que se ergue no lugar da outra ao longo do poema “Cortejo”, um texto que ressignifica o lugar-comum dos velórios, dos cafés requentados, dos encontros com parentes distantes, das despedidas nos terminais de aeroportos com os tíquetes de estacionamento pesando no interior dos bolsos.
Essa intrusão da banalidade dos tempos, dos lugares-comuns das épocas, na “praça de alimentação” da poesia, é o que torna Diego Grando um poeta verdadeiramente do presente, um ciclope que caminha para frente com um olho pousado no que está atrás – esse monstro concebido por Agamben para ilustrar o contemporâneo, que a rigor nada mais é que confluência de duas temporalidades. Grando é uma aba aberta do Google disposta a poetizar sobre qualquer ponto em que pousar o ponteiro do relógio, da primeira fagulha do Big-bang até o apocalipse da pós-modernidade. “Um fóssil, uma lâmpada e um McLanche Feliz” é o poema que sintetiza este projeto totalizante: uma pequena obra-prima que faz um paralelo metafórico entre um registro arqueológico que remonta a três bilhões de anos atrás; uma lâmpada elétrica que há mais de um século não se apaga, instalada numa central de bombeiros da Califórnia; e a trivialidade de um sanduíche de uma cadeia de fast-food que um fotógrafo americano esqueceu em algum recanto da casa e foi encontrá-lo intacto, seis anos depois.
O spoiler revela uma circunstância transitória submetida às leis da perenidade. Saber de antemão que Julieta e Romeu irão perecer na última linha de um livro não os impediu de sobreviver à morte nem de garantir a Shakespeare seu lugar na eternidade, até o cair da última tabuleta. Como Pessoa na Tabacaria, revisitando os clichês da Porto Alegre de seu tempo (a Lisboa de sua obra), Diego Grando desafiou os spoilers costumeiros acerca de sua poesia: nenhum deles é capaz de diminuí-lo, todos eles só nos levarão a lê-lo.
(Diego Grando, Spoilers. Confraria do Vento, 2018)
Diego Grando nasceu em Porto Alegre, em 1981. Publicou os livros “Desencantado Carrossel”, “Sétima do Singular” e o in-fólio “25 Rua do Templo / Palavra Paris”. Faz parte do elenco do Sarau Elétrico, tradicional evento de literatura que acontece em Porto Alegre. “Spoilers” foi desenvolvido como parte de sua tese de doutorado em Letras, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Tiago Germano é autor do volume de crônicas “Demônios Domésticos” (Le Chien, 2017) e do romance “A Mulher Faminta” (Ed. Moinhos, 2018). É mestre e doutorando em Escrita Criativa pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).