As Correções

| |

Tolstói já é uma referência batida quando se fala da literatura de Jonathan Franzen. Sem o pendor estilístico de uma Jennifer Egan ou de um David Foster Wallace (dois representantes de uma certa vertente literária dostoievskiana, para ficarmos no paralelo Rússia – EUA), Franzen prefere capturar o zeitgeist com uma prosa mais tradicional, uma narrativa que muito lembra a do cinema de fluxo, em que “nada parece acontecer”. É este o incômodo e o engodo inicial de As Correções (2001), seu terceiro romance, primeiro publicado no Brasil pela Cia. das Letras, em 2003.

Abrindo o livro com as desventuras profissionais e amorosas de Chip, um professor substituto que se envolve num affair com uma de suas estudantes, Franzen parece se colocar também à sombra de uma linhagem rothiana ultrapassada pelo próprio Roth em seus anos finais. Seu foco narrativo se alterna confusamente entre este personagem desinteressante que – claro! – resolve escrever um roteiro sobre o seu drama sexual/acadêmico, para a sua família disfuncional: o pai que começa a sofrer de Alzheimer; a mãe que, à sua maneira, vive também numa espécie de realidade esclerosada, com seus devaneios lúcidos; e os seus dois irmãos.

Esta família é o núcleo central da obra, o que constitui seus pilares: quando a voz de Chip começa a se tornar um registro monocórdico e quase autoral, é aí que Franzen nos surpreende irradiando seu foco narrativo ainda mais radicalmente e o pousando agora sobre Gary, o irmão mais velho: casado, pai de dois filhos e materialista, ele é a antípoda emocional do jovem Chip. Mas como um outro molde de argila submetido à mesma fornada, a ordem de sua vida é tão frágil quanto à do irmão do meio, e Gary atravessa uma crise depressiva da qual todos estão a par: sua mulher, seus filhos, menos ele mesmo, que se recusa a admitir a condição.

O correr dos capítulos nos oferece ainda outros dois pontos de vista: o da irmã caçula, uma chef de cozinha que foi abusada na adolescência e carrega consigo o drama de ser bissexual numa família com a típica mentalidade do meio-oeste dos EUA; e o dos pais, viajando sozinhos num cruzeiro idílico, tentando lutar contra as intermitências da memória do início do casamento, que agora ameaça sofrer o blecaute da idade.

O clímax de tudo isso é a expectativa por um último Natal em família, na residência onde os pais vivem desde que cada um dos filhos deixou o ninho e ganhou o mundo em busca de autonomia. Neste palco, cada personagem entre em cena como um ator cujo drama já é bem conhecido do público, e cada pequeno evento cotidiano é colocado no tabuleiro como um detalhe capaz de construir o painel vigoroso ao qual, desde o princípio, Franzen ambiciona.

É preciso fôlego, porém, para chegar até este ponto. São raros os momentos em que Franzen solta a mão e isso resulta em páginas menos caricatas (como a sequência quase farsesca em que Enid, a mãe, se encontra com o médico do cruzeiro) e mais sublimes (como a sequência em que um corpo cai do navio enquanto seus tripulantes se distraem numa palestra). O brilhantismo de Franzen está mesmo na contenção, uma postura que ele assume em meio a todo o caudal de um material de mais de quinhentas páginas: “Falavam de sabor do mesmo modo que marxistas falavam de revolução”, ele escreve, descrevendo Denise (a irmã caçula) e seu primeiro marido. Frases como essa são fissuras numa parede que o gênio de Franzen não precisa derrubar para mostrar o que está no outro lado.

Uma frase. Só uma. E tudo já está dito sobre os seus personagens.

Deixe um comentário

error

Gostando da leitura? :) Compartilhe!