Imagine o universo de Comarc McCarthy transportado do sul dos Estados Unidos para o norte da Inglaterra e você terá uma pista do que é Elmet, romance de estreia da jovem escritora britânica Fiona Mozley. Considerado a “zebra” entre os indicados ao Man Booker Prize em 2017 (ano em que venceu Lincoln no Limbo, de George Saunders), o livro é de uma prosa lapidar, não apenas em sua linguagem extremamente poética (transitando entre Faulkner, Rulfo e o já citado McCarthy) mas também em seu enredo surpreendentemente empolgante.
Rural, tanto em sua atmosfera ambientada nos rincões do campo (uma paisagem completamente destoante da Inglaterra metropolitana, mais consagrada pela literatura contemporânea), quanto na composição dos personagens (essencialmente rústicos, falando um idioma marcado por certa sintaxe regional), a narrativa começa nos apresentando a vida pacata de Danny, garoto que vive com a irmã adolescente, Cathy, sob a proteção de John, o homem a quem quase sempre se referem como “Daddy”. Os três possuem uma cabana na propriedade do execrável Mr. Price, um latifundiário que percorre suas terras intimidando os trabalhadores com sua Land Rover, escoltado pelos dois filhos também adolescentes e sua gangue de capangas.
Embora o início da ficção seja muito mais um exercício de deslumbramento estético, uma tentativa nada tímida de compor um retrato desta vida prosaica – por vezes carregando nas tintas e distanciando um pouco o leitor do que logo se revelará o motor da história -, as reviravoltas logo se operam quando a figura de Mr. Price começa a cercar John ao passo que Danny e Cathy se aproximam dos seus dois filhos, eferência mais próxima de uma “vida civilizada” para a qual ambos não foram educados.
A partir daí, o drama evoluí num fôlego quase de thriller, com direito a rinhas clandestinas e um final catártico que parece antecipar, na literatura, a tendência que o cinema, desde o ano passado, vem explorando com seus banhos de sangue com conotações de expurgo. Tudo isso sem deixar de dar conta de nuances como a ambiguidade sexual que ronda Danny (o narrador em primeira pessoa), o passado misterioso da mãe desconhecida e a difícil condição de Cathy: uma adolescente prestes a se tornar uma mulher, presa fácil dos “lobos” que a espreitam do bosque e não compartilham de seu senso de virtude e de honra.
Neste cenário, a violência emerge das mãos de John, o ex-pugilista que tenta insuflar os trabalhadores contra Mr. Price a fim de lutarem por seu quinhão de terra, ao mesmo tempo que se debate contra o passado misterioso que o uniu à mãe dos filhos e à tirania do fazendeiro. Se estas tensões camponesas não soam reais num país como a Inglaterra, pouco importa: Mozley as tornam verossímeis e universais, facilmente transportáveis mesmo ao contexto atemporal da nossa América Latina, sempre banhando seu chão com o suor e o sangue das lavouras.
Talvez porque suor e sangue transbordem das páginas de “Elmet”, conferindo-lhe vida e movimento a ponto de, ao final da leitura, emergimos deste mundo como se ele fosse parâmetro para o que nos cerca, e não o contrário. A melhor qualidade, afinal, que qualquer bom livro pode ter.