Cine Clube Teresinense: as múltiplas filmografias em Teresina durante a segunda metade do século XX

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João Vitor de Carvalho Melo

Entre os anos 1930 e 1950, duas encíclicas papais estabeleceram novas bases para o relacionamento entre a Igreja Católica e diferentes setores da sociedade, especificamente no que concerne ao uso dos diferentes instrumentos comunicacionais que emergiam e se popularizavam à época. Tratavam-se, naquele momento, das encíclicas Vigilanti Cura, escrita e publicada em 1936 pelo Papa Pio XI, e Miranda Prorsus, escrita e publicada em 1957 pelo Papa Pio XII, seu sucessor.

Enquanto a primeira tinha por objetivo alertar a sociedade dos perigos que os novos meios de comunicação representavam para a conservação da fé, a segunda se propunha a constituir formas de utilizar os mesmos meios, notadamente o rádio, a TV e o cinema, a favor de seus próprios interesses. É, portanto, em torno dessas duas orientações eclesiásticas que se constituiria, por meio da Organização Católica Internacional de Cinema (OCIC), um conjunto de missões no sentido de fomentar, em diferentes espaços do mundo, a criação de cineclubes, onde se procederia a exibição e discussão de filmes capazes de fundamentar os valores que se desejava consolidar.

Assim como em outros espaços do Brasil, a exemplo do Vigilanti Cura, cineclube recifense que, dentre os muitos frequentadores, abrigara o agitador cultural pernambucano Jomard Muniz de Britto, a cidade de Teresina também seria espaço no qual o cineclubismo se estabeleceria, através da iniciativa dos sacerdotes italianos que administravam o Colégio São Francisco de Sales, conhecido na cidade como Colégio Diocesano, em especial aos padres Moisés Fumagalli e Carlos Bresciani.

Se configurariam, ali, um conjunto de práticas cinematográficas que comportavam tanto a instrução da linguagem e prática do cinema, através de cursos anuais, quanto a produção e o debate fílmicos e a elaboração de materiais literários, veiculados em jornais locais, como O Dia. Assim, aquela instituição, que ganharia o nome de Cine Clube Teresinense (CCT), conformaria um dos principais pontos de encontro da juventude cinéfila de Teresina entre os anos de 1962, data de sua fundação, até 1990, momento em que a entidade encerra suas atividades.

Durante quase três décadas de existência, o cineclubismo do Diocesano modificou-se inúmeras vezes, mantendo como uma das poucas permanências a oferta anual de cursos de formação e o paradigma que norteava o ensino lá ofertado, pautado na valorização da história do Cinema Clássico, produzido nos Estados Unidos da América e na Europa durante os três primeiros quartéis do século XX, e na apropriação da linguagem cinematográfica e suas técnicas de registro de imagem.

Excetuando-se essas características, o Cine Clube Teresinense foi vários de si mesmo. Em trinta anos, muita coisa se transforma, se não quase tudo. Os projetos se modificam, os filmes se renovam e os sujeitos se desconhecem. O tempo que antes permitia, passa a interditar. O tempo que antes impossibilitava, agora concede. Falar do cineclubista é falar de alguém que pode ser tantos e que, sendo tantos, pode sempre algo novo, algo diferente.

O espaço cultural do Diocesano presenciou as modificações cada vez mais rápidas de sua cidade e de seu tempo, processo que repercute na criação de novos grupos sociais em seu interior que interpelam o presente e seus múltiplos elementos a partir de novas questões e interesses. Desse modo, é possível dividir a historicidade das experiências cineclubistas em três momentos distintos, cada qual povoado de ideologias específicas e interpretações singulares acerca do espaço ocupado pelo cinema e seus entusiastas na sociedade contemporânea.

À guisa de sistematização, o momento inicial é compreendido pelo intervalo entre a fundação do Cine Clube Teresinense, em 15 de setembro de 1962, e o fim do seu primeiro decênio de existência, em 1972. Nesse período, se verifica uma maior influência do pensamento eclesiástico nas atividades desenvolvidas pelos cineclubistas, bem como uma constância na atuação dos cineclubistas em rádios e periódicos locais.

Datam dessa época as edições do Comentando Cinema, coluna semanal do jornal O Dia, e da Tribuna Cinematográfica, programa transmitido pela Rádio Clube de Teresina, além de exibições fílmicas realizadas em diversos bairros da capital, instrumentos de conformação de um modelo de cultura cinematográfica lastreada pelas influências do cinema clássico, austero e educativo. Dentre as figuras proeminentes dessa época, destacam-se os padres Moisés Fumagalli e Carlos Bresciani, sacerdotes firmes na missão de educar para o cinema.

A identidade cineclubista, nesse contexto, é elaborada a partir de uma noção de pertencimento a uma agremiação com um projeto maior, no caso a evangelização católica através do cinema, capaz de aglutinar interesses coletivos de seus membros. Nesse contexto, os sócios da entidade cinematográfica se vinculavam profundamente às diretrizes do clube, trabalhando em favor de uma missão comum que ensejava cristalizar um determinado modelo de comportamento entre os filmes e seus concidadãos, indivíduos muitas vezes alheios ao engrandecimento moral que o bom cinema era capaz de despertar em seus consumidores.

O cinema, para eles, era uma arte que encerrava um considerável potencial de domínio sobre seus espectadores, devendo, por consequência, ser isento de cenas que aludissem a comportamentos desviados como o sexo, o roubo e outros crimes em geral. Essa matriz ideológica é constantemente flagrada nas produções teóricas dos cineclubistas da década de sessenta, a exemplo da edição de 6 de junho de 1965 do programa Tribuna Cinematográfica na qual os cineclubistas analisam as conjunturas do cinema brasileiro à época.

Segundo a notícia:

O Cinema brasileiro, passou por uma fase de inteira transformação. Deixamos apenas chanchadas, abacaxis com enredos batidos, com atores medíocres puramente cômicos e exageradamente musicais, para realizar fitas de conteúdo sério, filmes diferentes. Do artificialismo, teatralismo, humorismo de Oscarito, Ankito, Mazaropi, José Trindade – ciclo carnavalesco -, passamos ao cinema realista ligados às coisas nacionais, fatos folclóricos e acontecimentos históricos. Tal movimento que conhecemos como Cinema Novo é constantemente dificultado por aqueles que faziam aqui apenas filmes com intuitos comerciais usando o prestígio e a popularidade dos cômicos e astros do Rádio e da Televisão (COMPÊNDIO DE ROTEIROS DA TRIBUNA CINEMATOGRÁFICA, 1965, s/p).

Ao evocar a importância do Cinema Novo para a consolidação de um tipo verdadeiro cinema nacional, os cineclubistas destacam que os gêneros fílmicos até então em voga no Brasil correspondem a uma iniciativa de comércio cinematográfico cujo o marketing era o apelo popular causado pela fama das estrelas mais reluzentes do audiovisual dos anos sessenta. Desse modo, a cultura cinematográfica até então costumeira em solo brasileiro apresentava características caricatas e uma escolha estética que denunciava a fragilidade do roteiro e a escolha de enredos repetitivos (PEREIRA, 2006, p.207).

Ao contrapor esse modelo cômico com os discursos propalados pelos membros do Cine Clube Teresinense, é possível flagrar nesse últimos a seriedade com que eles se comportavam frente à coisa cinema, demonstrando uma acentuada preocupação com a execução satisfatória dos vários componentes que dão vida a uma película. Esse comportamento torna-se ainda mais perceptível no ato de fabricação fílmica realizado pelos cineclubistas durante os anos de 1960.

Ainda que, até o momento, não se tenha sido possível localizar películas produzidas pelos associados do CCT nos anos iniciais do clube, os documentos disponibilizados aos instruídos pelos cursos do clube de cinema apontam uma preocupação em orientar o manejo dos aparelhos técnicos disponibilizados pela entidade do Diocesano. A cartilha oferecida a cada cursista, tinha como um de seus objetivos demonstrar “como se faz um filme”, pressupondo a utilização de determinados aparelhos de captura de imagens como câmeras fotográficas (SILVA, 2018, p. 50). Assim, o CCT constituiu-se como espaço privilegiado de aquisição de conhecimento prático sobre a estrutura de elaboração de uma obra cinemática, possibilitando aos jovens a familiaridade com as máquinas capazes de trazer à realidade as ideias que habitavam as mentes dos amantes da sétima arte.

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Atualizando-se com frequência, os professores do Cine Clube Teresinense logo se adaptaram ao progresso tecnológico que legou às sociedades da década de setenta uma alternativa de fazer cinema de forma amadora e experimental, o Super-8 milímetros. A novidade logo foi apropriada pelos associados.

A primeira filmagem superoitista realizada no âmbito do cineclube foi um filme em preto e branco que retratava um piquenique no Retiro dos Padres Jesuítas, filmado por Sebastião Ramalho no ano de 1971 (SILVA, 2018, p.50). Essa filmagem, aliada à desagregação do sistema de atuação dos cineclubistas em rádios e jornais e o recrudescimento da militância escrita do CCT, marca o fim do primeiro período do Cine Clube Teresinense e o advento de uma nova era onde os cineclubistas modificam suas prioridades, voltando-se muito mais para ações desenvolvidas em seu interior do que para fora, trazendo para um primeiro plano a vontade de criar filmes.

Com o passar dos anos, o cineclubismo perdeu o caráter de um movimento em favor da pedagogia do cinema como arte de elevação moral e voltou-se para a formação prática de seus sócios que podiam, agora, extravasar suas ideias através das gravações em bitola 16 milímetros e Super-8, ainda que de forma modesta. De modo gradual, o espírito católico dos primeiros dias fora amornando, especialmente devido ao afastamento do padre Moisés Fumagalli do quadro de funcionários do Colégio São Francisco de Sales.

De forma paralela, a juventude teresinense da década de setenta passou a ter mais proximidade com outros padrões de costumes sociais e culturais, no qual a juventude fora a principal protagonista. Cognominados de Geração Torquato Neto, esses jovens plasmaram uma experiência singular de revisão das normas de comportamento presentes na comunidade local e de experimentação de novas possibilidades artísticas, dentre as quais o cinema, afetando não somente os que se incluíam nesse grupo, mas os sujeitos que tinham contato com aquilo que produziam.

Congregados em torno da figura de Torquato Neto, eleito como um ideal de transgressão aos arcaicos costumes de comportamento e relacionamento da cultura ocidental, a geração que leva o nome do poeta da Tropicália foi muito ativa na confecção de jornais alternativos, na composição de músicas de cunho libertário e na produção de filmes cujas temáticas denunciavam o conservadorismo e a alienação das sociedades contemporâneas (LIMA, 2006, p. 25). Orientados pela ideologia contracultural – que representou um conjunto de experiências estéticas e comportamentais que se difundiram entre segmentos da juventude pelo mundo ocidental, chegando ao Brasil, pautadas na contestação social e pela busca de alternativas à militância política tradicional e ao conservadorismo da sociedade –, a atuação desse germinou a partir do ano de 1972, período que marca o início das principais produções cinematográficas realizadas pelo coletivo.

Cabeludos, maquiados e rebeldes, os jovens ligados a esse espectro cinematográfico eram conhecidos por realizar a distensão dos enquadramentos de gênero, utilizando o corpo como elemento de subversão dos nichos historicamente cristalizados para a juventude contemporânea. Para esses sujeitos, o ser jovem era um ser para si e não para o mundo, não para os outros.

Mapeando as identidades contestadoras que se desenvolviam na Teresina dos anos 1970, Edwar de Alencar Castelo Branco conceitua uma experiência pautada na afirmação de uma nova condição de existência perante a realidade como a ação de um corpo transbunde-libertário, um elemento que se “oferece como um depositário […] de uma nova relação não exatamente entre o nós e o eles, mas entre o eu e o mundo, o que implicava uma politização do cotidiano que questionava as formas dominantes de pensamento em suas dimensões microscópicas” (CASTELO BRANCO, 2005, p.78).

Nessa direção, as produções da geração Torquato Neto, composta por nomes como Durvalino Couto Filho, David Aguiar, Edmar Oliveira e Antônio Noronha, elaboram uma narrativa que contrapõe um discurso de evocação da liberdade e o diagnóstico de um aprisionamento do homem por status quo alijado em comportamentos e ideologias políticas e sociais de natureza conservadora.

Dentre os filmes gravados no interior desse modelo interpretativo, estão Terror da Vermelha (1972), Tupi Niquim (1974), Porenquanto (1973/1974), Miss Dora (1974), dentre muitos outros, repositórios de imagens de uma revolução corporal e subjetiva ebulindo na cidade de Teresina. Gravadas em várias regiões da capital, as películas contraculturais delatavam um errantismo urbano, uma caminhada onde cada passo dado pela “Cidade-Verde” representava a ressignificação do espaço e do próprio tempo (CERTEAU, 2008).

Verdadeiros flaneurs (CERTEAU, 2008), os torquateanos montavam uma “filosofia da diferença”, uma perspectiva que “recusa o uno e pensa o mundo como múltiplo e, assim, o outro ganha novo sentido” (GALLO, 2008, p.1), a partir das experiências mantidas com o ambiente citadino. Cada porção da Teresina pisada pelas alparcatas dos jovens cabeludos se tornava, cada vez mais, um local disputado entre a realidade física e o pensamento simbólico. O espaço público virou um conceito (DELEUZE; GUATTARI, 2010, P. 25).

Em Deleuze e Guattari, um conceito é uma potência criadora e ordenadora, tira o Caos e alinha os sentidos e as ideias a partir de uma necessidade de significância. O conceito não é significado, mas significante, territorializado e (re)territorializado pelas urgências de um determinado problema, pois “todo conceito remete a um problema, a problemas sem os quais não teria sentido, e que só podem ser isolados ou compreendidos na medida de sua solução” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, P. 25). Para a Geração Torquato Neto, o principal problema era a falta de identificação com o mundo que os circundava. Era necessário conceitualizar os espaços do passado no presente.

A praça, que antes remetia às sociabilidades moralizadas, agora, era o espaço transgressor onde se filmava, se amava e se curtia à revelia dos gostos paternos. O bar deixaria de ser o espaço das mágoas e convertera-se na morada do riso e da alegria. A grama, no passado uma decoração, agora era uma grande cama onde os jovens pisavam, dançavam e problematizavam o seu próprio tempo.

 Teresina encheu-se de conceitos e, com eles, de novos olhares para si. Essas novas perspectivas também encontraram pulsão dentro do Cine Clube Teresinense que, já em 1972, ensaiava a produção de filmes autorais pautados na experimentação visual e narrativa. A edição do Estado Interessante, suplemento cultural do jornal O Estado, de 4 de junho daquele ano noticia a produção de três curtas metragens com duração de seis minutos, gravados na capital piauiense e na vizinha Timon, no Roncador Balneário Club. Os filmes em questão são Campo é vida… e amar é piquenique, A fonte e Vidas em Lance. Informando sobre esse último, o suplemento jornalístico destaca que:

Em rápido comentário falaremos sobre Vidas em lance – História simples de dois jovens enamorados que conta com a perseguição de impertinente apaixonado. Nas cenas finais, um almoço campestre dá-se a inesperada interferência do amante o Kaká, que provoca o galã Antuniel Fernandes (Kit) e se estabelece uma luta corporal (judô) bastante realística com faca, no qual Kaká sai gravemente ferido (O ESTADO INTERESSANTE, 04 jun. 1972, p. 3).

Com direção de Francisco Luz Neto e roteiro de Climério Lima, um dos participantes do CCT durante a década de 1960, o curta-metragem se localiza em paralelo às produções empreendidas pelos jovens contraculturais, coexistindo como um tipo de cinema que, se não é movido pelos mesmos interesses, divide os mesmos núcleos sociais e estruturas discursivas.

 Do ponto de vista do enredo, Vidas em Lance compartilha muitas semelhanças com os filmes da geração Torquato Neto, ainda que suas intenções sejam diferentes. Situado no contexto de um triângulo amoroso, a violência é prática destacada tanto do filme de Luz Neto quanto, por exemplo, do Terror da Vermelha, filme dirigido pelo Anjo Torto que conta com um protagonista, interpretado por Edmar Oliveira, que sai pela cidade de Teresina assassinando jovens em plena luz do dia.

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A diferença entre as duas películas, nesse sentido, reside somente nas motivações de cada um dos personagens principais. Se no filme cineclubista, a violência é o clímax da relação entre o protagonista, sua amada e o seu amante, no filme torquateano as agressões são o próprio motor da narrativa, uma alegoria ao epistemicídio causado por Teresina sobre as juventudes: uma cidade que mata por não permitir ser quem se quer ser, que sufoca por não ter espaço para novas ideias e novos planos.

Dessa maneira, o filme demonstra um primeiro passo do Cine Clube Teresinense no sentido de integrar-se ao cenário local de gravações, ainda bastante incipiente. Segundo depõe o Padre Carlos Bresciani, a confecção desse filme é a esperança de que “a filmatologia está nascendo, o nascituro promete tornar-se um garoto robusto e tudo nos faz crer que o será, com a dedicação, a capacidade e a vontade desse amante da sétima arte […]” (O ESTADO INTERESSANTE, 04 jun. 1972, p. 3).

À medida em que comemora o sucesso do filme, o sacerdote Bresciani firma o compromisso de direcionar os esforços do clube do Diocesano em participar da elaboração de um circuito de produção de cinema regional. De fato, as aspirações dos clérigos foram realizadas, embora com alguns anos de atraso. Após essas relações iniciais com a produção fílmica, as películas que saiam do CCT eram, geralmente, aquelas que eram resultado dos cursos de iniciação cinemático.

No anuário de 1974, entre as atividades elencadas pelos membros, não constam nenhuma menção a longas ou curtas-metragens produzidos no âmbito do Cine Clube Teresinense (ANUÁRIO DO CINE CLUBE TERESINENSE, 1975, s/p), situação que permanece quase que sem alteração até o fim da década. O início dos anos oitenta, no entanto, abre as portas para o momento de maior fecundidade da produção fílmica no CCT. É nessa época que a J. W. Produções, organizada em órbita à figura de José Wilson Oliveira, e o coletivo Mel de Abelha passam a produzir filmes em Super-8 mm., cada qual buscando no cinema uma forma de expressão para seus ideais e propostas criativas.

Convenciona-se, portanto, o ano de 1980, data de produção do filme Espaço Marginal (1982), do grupo Mel de Abelha, como marco da finalização do segundo período do clube de cinema e o início do terceiro e último, que duraria até a dissolução do clube em 1990. Ao passo que os torquateanos, que deram o nome de Rapaziada Cineclube aos adeptos ao CCT, realizavam visitas infrequentes ao clube de cinema, interpelando os seus sócios muito mais fora dos muros do Diocesano do que em seu interior, os componentes do Mel de Abelha batizaram o nome do coletivo dentro do Cine Clube Teresinense e seus integrantes mantiveram relações duradouras com os diretores da casa, editando alguns de seus filmes dentro do espaço católico.

Ao contrário da geração anterior, o Mel de Abelha era formado por estudantes universitários, dentre os quais se destacam Luís Carlos Sales, Valderi Duarte e Dácia Ibiapina, e tinha como principal tema de seus filmes problemas de natureza macropolítica, como a denúncia de problemas governamentais e econômicos que afetavam a vida dos cidadãos do estado.

José Wilson, Miguel Freire, o produtor cultural José Elias Arêa Leão e Valderi Duarte na sala do Cineclube Teresinense em 1986. Credito: Acervo pessoal de Valderi Duarte.

 Dentre os filmes mais conhecidos do grupo, consta o Espaço Marginal, ambientado em Teresina e que traz como “problemática central uma onda de pichações que aparecia em Teresina criticando, entre outras coisas, o aumento das passagens de ônibus ou a repressão estabelecida pelo regime militar” (LIMA, 2006, p. 100.).

Essa predileção pelo prisma dos problemas sociais fora operacionalizada em frente às câmeras com base na reprodução da “estética da fome”, de Glauber Rocha. Objeto de reflexão dos cineclubistas desde a década de sessenta, o Cinema Novo surge para o Mel de Abelha como um modelo de estruturação narrativo-visual instigante e, em alguma medida, sedutora, capaz de plasmar novos usos para o gênero documentário. Conforme conta à Rosa Edite Rocha, Valderi Duarte destaca que:

Nós fomos contagiados por um tipo de “febre glauberiana”; claro que não tínhamos as mesmas condições técnicas, nem os mesmos ideais no geral; mas o tínhamos como referencial máximo. Foi ele quem mais nos influenciou, mesmo só conhecendo seus trabalhos tardiamente. Ele nos mostrou como fazer um filme de maneira diferente, não só para entreter. Quando eu assisti Glauber Rocha pela primeira vez eu captei essa idéia cinemanovista, essa questão da estética da fome (DUARTE, 2010 apud ROCHA, 2011, p. 73).

A produção de um filme para inquietar e não somente para entreter encontra sua plenitude em Espaço Marginal, símbolo de um intento queixoso de escancarar as opressões políticas sobre o povo piauiense e visibilizar as táticas de protesto dos estratos prejudicados. O enredo do filme gira em torno da gravação de pichações em muros de Teresina, dispostos em várias regiões do núcleo urbano da cidade.

Nas paredes dos anos oitenta, era possível identificar palavras de ordem como “Viva a UBES”, “Basta de desemprego”, “Estudante com fome não aprende”, “Contra o aumento das passagens”, “Lucídio: governo pornô”, Universidade não é quartel; ela é dos estudantes”, “Pelo fim da Ditadura” e “Abaixo o prefeito”, cargo cujo os ocupantes eram designados, à época, por nomeação do Regime Militar. Seguindo a cultura das mensagens emparedadas, o título do curta-metragem, bem como o nome de seus diretores e produtores, foi, também, escrito em um muro, gravado sobre o fundo musical da peça Astúrias, tradicional canção espanhola composta por Isaac Albéniz.

Após os créditos iniciais, o filme se inicia com um enquadramento que focaliza os passos de um transeunte, interlocutor das pichações dispostas em vários muramentos diferentes. Mais que dar atenção exclusiva às letras grafadas nos espaços públicos teresinense, a câmera flagra as impressões que esse veículo de comunicação atípico causa sobre um homem, um protagonista mudo que lê, detidamente, uma por uma, as múltiplas caligrafias expostas nas paredes de sua cidade.

De acordo com Valderi Duarte, a ideia de colocar um ator para participar das filmagens foi uma sugestão que surgiu dentro do espaço do Cine Clube Teresinense. Para não filmar somente o espaço da cidade, os idealizadores do curta acordaram que seria interessante povoar a tela com um indivíduo que representasse o cidadão local, elemento que tinha seu ser atravessado pelas palavras que via (DUARTE, 2023).

Negro e membro do operariado local, foi Raimundo Nonato Monteiro o homem escolhido para viver o errante leitor dos muros. Ainda que sua participação tenha sido fulcral para uma atualização da estrutura do cinema documentário, o que foi feito de Raimundo Nonato após a colaboração com o filme, no entanto, é desconhecida por Duarte. O produtor explica que isso decorre do fato desse colaborador não ser um ator profissional, mas um funcionário de uma construtora que concordara em participar do Espaço Marginal.

Prosseguindo o relato, Valderi Duarte aponta que o contato com esse rapaz foi realizado por intermédio de Luís Carlos Sales, que, à época, trabalhava com ele na mesma empresa. Sales assevera que sua escolha tinha a intenção de “[…] tornar o documentário mais humanizado, não queríamos fazer um vídeo apenas com imagens dos muros pichados, [daí] nós convidamos o Raimundo Nonato, que tinha uma expressão triste por natureza e fomos com ele até os lugares onde havia um maior número de pichações em Teresina” (SALES, 2010 apud ROCHA, 2011, p. 87.).

Independentemente dos destinos percorridos por Raimundo Nonato após o contato com o Mel de Abelha, sua presença nas cenas do Super-8 de 1982 permitiu que o curta se constituísse não somente como um vídeo de documentação da Teresina nas últimas décadas do século XX, mas como um verdadeiro filme, onde roteiro, enredo e atuação se unificassem em um só produto.

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O plano sequencial das andanças do protagonista pela cidade é interrompido por momentos onde Raimundo Nonato para e descansa, seja em um bar para beber em alguma coisa, seja em um banco de praça onde se senta e reflete sobre o que leu nas pichações. Essas pausas servem para demonstrar não somente como o protagonista foi afetado por essas mensagens, mas permitem introduzir um segundo personagem que decodifica as palavras de ordem nos muros à luz de pressupostos sociológicos. Esse novo sujeito é o cientista social Antônio José Medeiros, que entra em cena não como um ator, mas como um depoente sobre as circunstâncias de produção desse fenômeno urbano de vocabularização no concreto.

O diagnóstico dado por Antônio José Medeiros autoriza a inferência de que duas porções distintas da população de Teresina se posicionavam de forma complementar em relação à onda de pichações em sua cidade, especialmente aquelas pertencentes ao primeiro tipo apontado pelo sociólogo.

A primeira delas era formado pelos próprios autores das mensagens que, ao representar um sentimento generalizado de desaprovação dos regimes políticos contemporâneos, encontravam acolhimento em um segundo estrato da sociedade local, bem maior, composto por cidadãos das classes menos abastadas que concordavam com o que era denunciado nas paredes de sua urbe.

A estrutura apresentada pelo filme do Mel de Abelha destoa daquilo que um outro grupo de cineastas, vinculado à figura de José Wilson Oliveira, elege como tema central de suas películas a crítica social trabalhada a partir da ótica da quebra de preconceitos sexuais e sociais. Bancário por profissão, Oliveira associou-se ao CCT em 30 de janeiro de 1982, após ter participado do Curso de Iniciação Cinematográfica realizado no ano anterior. Sua estadia naquele espaço foi relativamente longa, se estendendo até o ano de 1987 (SILVA, 2018, p. 96.). Nesse recorte, ele conviveu com os membros do grupo Mel de Abelha e muitos outros amantes da arte de filmar como José Batista Linhares, José Medeiros Pessoa e Camilo Lélis.

Ator de teatro antes de ingressar na produção audiovisual, José Wilson Oliveira valorizava o drama como elemento constituinte de seus filmes, criticando negativamente os trabalhos que esse aspecto não era tão destacado. Recordando dos tempos em que conviveram juntos, Valderi Duarte afirma que Oliveira criticava um aparente desinteresse nele e em seus colegas de realizar filmes de “ficção” (DUARTE, 2023).

Avelar, Padre Carlos e Miguel Freire. Crédito: Acervo pessoal de Valderi Duarte

Os enredos ficcionais aos quais se refere o depoente não são obras do fantástico ou do maravilhoso, mas películas que valorizassem a criação de enredos com vários personagens, com tensões e desfechos, diferenciando dos Super-8 construídos a partir de uma perspectiva documentária.

Nesse sentido, o modelo de cinema pleiteado por José Wilson Oliveira rememora, em partes, as fitas rodadas pela Geração Torquato Neto à medida em que aquelas produções elegiam um fio condutor narrativo de cunho ficcional e apresentavam múltiplos atores que encenavam com um certo apelo dramático. O que diferia os estilos dos dois, no entanto, eram as mensagens sugeridas por cada uma das culturas cinemáticas e o que o papel que a imagem, essa instância visual, representava para cada um de seus idealizadores.

Se para os torquateanos, o movimento superoitista era uma forma de inaugurar uma linguagem de contestação que se opunha ao conservadorismo estético e intelectual de sua sociedade, para Oliveira a câmera era, na mesma medida, uma forma de olhar a realidade a partir da posição social do homossexual, do drogado ou do marginalizado, sujeitos cujos discursos eram interditados por uma pretensa moral pública, e um mecanismo de experimentação interpretativa para si enquanto ator.

São frutos destacados da obra de José Wilson Oliveira os filmes Um jeito estranho de amar e A fila, ambos da década de 1980, curtas que tinham temáticas ligadas ao erotismo e a comportamentos que, naquele recorte cronológico, ainda eram considerados como um tabu social. Espaço de trânsito, o Cine Clube Teresinense foi um local onde vários sujeitos apostaram na cinematografia como modo de construir uma identidade cultural ou transmitir uma mensagem específica sobre o modo como eles se posicionavam em relação ao mundo e suas transformações.

Nesse sentido, frente a tantos projetos em um só, é possível chamar os cineclubistas de geração, traçando contornos específicos que unificassem três períodos aparentemente distintos? Sim, é possível.

As produções dos cineclubistas da década de sessenta, mais teóricas e alinhadas com um projeto católico, e os amores homossexuais apresentados por José Wilson Oliveira são faces distintas da mesma geração. Sem romper com as diretrizes asseveradas pelo que postulava o manual do clube de cinema do São Francisco de Sales e sem negar o filme como uma arte por excelência, a “Rapaziada Cineclube” se testou, se desafiou e, sobretudo, se inovou tantas vezes ao longo dos muitos anos de existência de sua geração.

Os torquateanos que conheceram os frequentadores dos anos setenta jamais imaginariam que, um decênio na frente, alguns jovens ligados a um espaço originalmente católico pudessem falar de sexo, amor e drogas nas produções que realizavam. A presença de coletivos como o Mel de Abelha e os jovens vinculados à J.W. Produções apontam para a direção de que o cineclube do Diocesano correspondeu a um ponto nevrálgico de produção e debate sobre a cinematografia em Teresina, utilizando a sétima arte como mecanismo de apreensão e interpretação da realidade.

Salienta-se, portanto, que o Cine Clube Teresinense constituiria espaço privilegiado para o desenvolvimento de uma cultura cinematográfica específica, de caráter coletivo, caracterizada pelo amor às imagens e o entendimento de que os filmes constituem peça fundamental na construção de representações e percepções. Essa cultura, no entanto, foi a base de muitos movimento e grupos de cinema experimental, que pendiam desde os filmes documentais a obras de ficção, e que se aproveitaram do tempo do Cineclube para fazer arte, de várias formas possíveis.

Referências:

CASTELO BRANCO, Edwar de Alencar. Todos os dias de paupéria: Torquato Neto e invenção da Tropicália. São Paulo: Annablume, 2005.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano:1, Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.

colégios católicos de Pernambuco na década de 1950. Recife: 2012.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? 2.ed. Rio de Janeiro: 34, 1997.

FIGUEIREDO, Haroldo Moraes de. VIGILANTI CURA: uma educação cinematográfica nos

invenção da tropicália. São Paulo: Annablume, 2005.

MELO, João Vitor de Carvalho. Rapaziada Cineclube: juventude, catolicismo e cineclubismo em Teresina. Trabalho de Conclusão de Curso. Teresina: 2023.

ROCHA, Rosa Edite da Silveira. Narrativas Audiovisuais no Piauí: Cultura e Sociedade na Linguagem do Cinema. São Bernardo do Campo – SP: 2011. Dissertação – Universidade Metodista de São Paulo Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social.

SILVA, Arlene Maria Ribeiro. Memórias de cinema e processos de formação: a trajetória do Cine Clube Teresinense. Vitória da Conquista – BA: Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, 2018. Dissertação – Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade – PPGMLS.

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