Sobre a onda de antirracismo durante o verão… Um olhar sobre a venda de bestsellers para brancos antirracistas

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Texto de Katherine Morgan  / Tradução: Alanne Maria / Preparação: Bruna Barros

Katherine D. Morgan tem ganhado destaque através da publicação de seus artigos no Huffington Post, Bitch Media, LitHub, The Rumpus, HelloGiggles, Willamette Week, Real Simple e Trampset, dentre outros. Seu trabalho foi indicado para os dois prêmios Best of Net. Atualmente, mora em Portland, Oregon, onde você pode encontrá-la aninhada com sua gata Ramona, e chorando com o final de Frasier.

Alanne Maria, pesquisadora, copidesque em formação e revisora. É, também, mestranda em Literatura e Cultura. Escreve no Euleionan, seu perfil no medium. E sonha muito, não abre mão disso.


Durante o verão, passei horas intermináveis ajudando inúmeros clientes a cancelarem pedidos de “livros antirracistas”. Antes de abrir um e-mail, rezava por uma mensagem que não me fizesse chorar. Mas, na maior parte das vezes, meus clientes simplesmente perguntavam por qual motivo seus pedidos ainda não haviam sido enviados. Olhava o título e, antes mesmo de conferir a tabela do estoque, respondia dizendo que as cópias estavam fora de estoque. So You Want to Talk About Race?[1] Esgotado. White Fragility?[2] Esgotado. How to be an Anti-racist?[3]Esgotado. Anti-racist Baby? Peça desculpas à criança, esse também está esgotado.

Mas por ter checado a lista no início da semana, sabia que muitos seriam reimpressos e devolvidos ao estoque, alguns com mais de 40 mil cópias. Nossos distribuidores os receberiam em um mês, talvez menos; tempo o suficiente para ler outro livro da enorme pilha de títulos não lidos ou para usufruir dos conteúdos ilimitados (e gratuitos!) da internet que discutem os mesmos conceitos. Mas, aparentemente, isso não era o ideal para eles. Então, sentei no sofá e comecei a cancelar os pedidos.

Muitos clientes me perguntaram por que White Fragility agora estava esgotado, afinal, quando eles originalmente o adicionaram em seus carrinhos, o livro estava em grande número no estoque. “Os brancos viram um homem preto morrer nas mãos da polícia, e mesmo que há anos o Movimento Negro fale sobre violência policial, precisaram ver um de nós ser torturado e ter seu último suspiro arrancado por um policial que se ajoelhava em seu pescoço para entenderem que finalmente era hora de falar sobre racismo”, escrevi em resposta. Mas respirei, apaguei a mensagem e respondi: “esse livro é famoso agora”.

Com as encomendas, vieram as listas com livros que discutiam antirracismo, os “livros antirracistas”. A maioria pareceu repetitiva, sempre indicando os mesmos cinco títulos. Quando as listas saíram, as pessoas procuraram os livros e encheram suas cestas e carrinhos com inúmeras cópias para os clubes de leitura e presentes para os outros membros de suas famílias de bem. Foi interessante acompanhar esse movimento, principalmente porque as livrarias independentes tomaram um grande prejuízo durante a pandemia.  O tráfego de pessoas e as vendas estavam baixos nesta indústria em que a linha entre sucesso e falência é bastante tênue.

Para Matt Keliher, gerente da livraria Subtext Books, em Saint Paul, capital do estado de Minnesota, o boom nos negócios “definitivamente ajudou”. “Foi a nossa salvação durante o verão”, disse sobre os pedidos. Quando perguntei à Semicolon, à Loyalty Bookstore, à Subtext Books e à Astoria Bookshop se os protestos impactaram seus lucros, elas deram respostas categoricamente afirmativas. Em geral, o trabalho era tranquilo. Contudo, proprietárias, gerentes e livreiras associaram o fato de estarem ante uma quantidade esmagadora de pedidos, uma clientela insensível, difícil de lidar e o desespero para manter seus negócios abertos com a sensação de serem colocadas contra a parede.

A maior parte das livrarias que receberam atenção durante a febre antirracista eram livrarias negras. Diversos perfis estavam publicando guias que agrupavam as livrarias por região. Algumas apareceram em listas; outras, em mapas coloridos. Fazia sentido: se você pretende aprender sobre antirracismo lendo livros, então você deve comprá-los de empreendimentos de pessoas negras. Percorria o feed do Instagram e observava as fotos incríveis das pilhas de livros com tags de localização de onde as pessoas os compraram. Por um lado, ver os livros por aí me fez sorrir. As pessoas estavam finalmente aprendendo, respondendo suas próprias perguntas sobre racismo. Por outro, isso me trouxe certa angústia. Ver foto atrás de foto fez parecer que tudo era… moda.

Muitos desses livros já haviam sido lançados há um ano, alguns até antes. Agora alguns deles estavam na lista dos mais vendidos do New York Times pela primeira vez. Onde estava toda essa consciência quando Trayvon Martin foi assassinado? Quando Eric Garner foi estrangulado por pessoas cujo trabalho era protegê-lo? Quando o corpo descoberto de Mike Brown foi deixado na rua depois de também ter sido assassinado pela polícia? Por que foi necessário que outro homem preto fosse assassinado para que metade do país ocupasse as ruas por uma semana? Mesmo que eu quisesse acreditar em boas intenções, minha intuição falava que, na maioria dos casos, tudo poderia ser resumido como posicionamento de fachada, por conveniência[4].

A branquitude pensa que o racismo ocorre apenas em situações extremas, porque o conceito de microagressões[5] é estranho para ela; essa é a primeira vez que a branquitude discute ativamente como o racismo a impacta e afeta. Houve inúmeras vezes em que, conversando com pessoas amigas, quando eu pontuava que elas tinham dito algo racista, elas quase que instantaneamente colocavam as mãos no peito, abriam a boca, e agiam como se eu tivesse atirado nelas: “Euuuuuu?”. Às vezes, algumas, horrorizadas, se afastavam. “Não sou racista. Minha amizade mais próxima é uma pessoa negra”, diziam, esquecendo que, nesse contexto, eu era essa melhor amiga. Pior era quando eu lia uma situação como racista e outra testemunha – alguma pessoa branca – dizia que não era, me chamando de sensível ou achando que tudo não passava de um mal-entendido da minha parte. O problema sempre estava comigo.

Danielle Mullen, proprietária da Semicolon, uma livraria negra em Chicago, compartilhava dos mesmos sentimentos que eu sobre o ambiente propício para venda de livros sobre antirracismo. A clientela branca, especialmente mulheres brancas, choravam – literalmente – falando sobre “o trabalho de desconstrução que elas queriam desenvolver, apesar de estarem absolutamente desinteressadas em livros fora da lista dos mais vendidos”, escreveu uma delas em um e-mail. Quando perguntei se ela achava se a maior parte dos compradores estavam agindo pelo engajamento, Danielle concordou. “Diria que mais da metade das compras foi completamente pelo afã do momento, dava para sentir o desinteresse – fora que todos postaram a mesma foto com os mesmos livros marcando a loja, rs”. Keliher, da Subtext Books, chamou a pequena cena de “chance de postar a confirmação do pedido na história do Instagram para se exibir para os amigos”. Christian Vega, coordenador de eventos na Astoria Bookshop, foi mais longe e classificou o caso como “olha só a minha estante, sou um Branco Antirracista™[6]”.

A ironia do termo “branco antirracista” surgiu da eleição presidencial de 2020 entre Donald Trump e Joe Biden. Embora Biden tenha sido declarado presidente-eleito quatro dias depois, as pesquisas no dia da eleição mostraram um cenário bem diferente; quando chequei os resultados naquela noite, comecei a chorar. Em 2016, quando Donald Trump foi eleito, dados informaram que 52% das mulheres brancas votaram para elegê-lo (de acordo com o TIME, mais tarde o número reportado reduziu para 47%, o que é tão bom quanto dizer que “47% destes Skittles[7] estão envenenados, e não 52%”). Agora, aparentemente, cerca de 55% das mulheres brancas o escolheram para ser o presidente dos Estados Unidos. Não deveria ser surpresa para mim. Como Mullen disse em seu e-mail: “por que alguém iria querer mudar um sistema que lhe privilegia?”. Então lá estava eu, vendo Trump na frente em vários estados, sentindo, infelizmente, que ninguém tinha aprendido nada.

Compartilhei minhas frustrações no Twitter, o que resultou numa conversa entre centenas de usuários, incluindo muitas livrarias que haviam figurado nas listas de livrarias negras. “Quer dizer que comprar White Fragility em vez de todos os outros livros escritos por intelectuais negras e negros e depois mandar mensagem me xingando de tudo quanto é nome porque eu não coloco minha equipe pra trabalhar em regime escravo pra entregar seus livros instantaneamente apesar dos atrasos na impressão e dos estoques esgotados devido à pandemia não foi antirracismo?!”, brincou Hannah Oliver Depp, proprietária da Loyalty Bookstore em DC e em Maryland. Vega se sentiu da mesma forma; ele declarou que “as pessoas que queriam White Fragility eram sempre as mais problemáticas. Era como se esse fosse o único livro capaz de curá-las dos seus racismos”.

Quando perguntei a Danielle Mullen qual foi o pior problema com o qual ela teve que lidar durante esse verão, ela falou sobre como alguns dos compradores fizeram comentários racistas sobre os pedidos pendentes por conta do estoque: “É exatamente por isso que não apoio empreendimentos negros” ou “Fiz um esforço para apoiar financeiramente seu empreendimento e você nem consegue fazer algo simples direito”.

No fim das contas, fiquei curiosa para saber o que aconteceu com os pedidos que não foram cancelados. Já que as pessoas estavam tão ansiosas para comprá-los, como se uma questão tão complexa como o racismo pudesse ser compreendida a partir da leitura de um único livro; certamente os mais novos livros de cabeceira já deveriam estar felizes em suas casas. Infelizmente, para muitas livreiras, esse não era o caso. “Nós temos duas paredes cheias de pedidos não retirados, e a grande maioria são livros desse verão”, pontuou Oliver Depp.

Na Subtext, Keliher está “olhando para as pilhas de livros que foram comprados online logo após a eclosão dos protestos e que ainda não foram retirados”. Quando perguntei o que aconteceria com os livros se ninguém viesse pegá-los, ele disse que “ainda não sabia o que fazer”. Mullen acredita que 30% dos pedidos nunca saíram da loja dela. Mas ela foi prática, devolvendo as pilhas extras de livros porque “não tinha nenhum motivo para mantê-los aqui”.

Agora que a eleição acabou, é difícil saber como se sentir. Embora eu realmente goste das pessoas brancas que marcharam ao meu lado, gritando que vidas negras realmente importam, temo que algumas delas tenham ido para casa e guardado seus cartazes escritos à mão para nunca mais os erguerem novamente, a não ser para jogá-los no lixo. Temo que os clientes brancos que pediram esses livros simplesmente tenham pensado “fiz algo bom hoje” e voltado a dormir. Essa preocupação não vai embora. Fico pensando que, quando a próxima pessoa negra for assassinada pela polícia, terei que percorrer a timeline apenas para parar e engasgar enquanto leio comentários questionando e insinuando o que elas estavam fazendo ou que elas não teriam sido assassinadas se tivessem obedecido à polícia. E, nessa hora, me pergunto: o que eu faço? Infelizmente, ainda não existe nenhum livro que nos prepare para isso.


Notas:

[1] Então você quer conversar sobre raça, em português. Publicado pela editora Bestseller, selo editorial do Grupo Editorial Record. Tradução: Nina Rizzi. [N.T.]

[2] Não basta não ser racista: Sejamos antirracistas!, em português. Publicado pela Faro Editorial. Tradução: Marcos Marcionilo. [N.T.]

[3] Como ser antirracista, em português. Publicado pela editora Alta Books. Tradução: Edite Siegert. [N.T.]

[4] O #blackouttuesday, no Brasil, evidencia o teor conveniente e pontual do posicionamento da branquitude, sobretudo quando consideramos o valor do engajamento nas redes sociais. [N.T.]

[5] Segundo Chester Pierce, microagressões são atos, mensagens e representações que propagam estereótipos que legitimam práticas discriminatórias contra negros. Para mais informações: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/17516773/. [N.T.]

[6] Good White™, na fonte. [N.T.]

[7] É uma tradicional marca de doces nos EUA, comercializada pela Wrigley Jr. Company. Em 2016, o filho de Donald Trump comparou a entrada de refugiados sírios nos Estados Unidos com três Skittles envenenados, insinuando que aceitar o pedido de asilo dos cidadãos sírios seria colocar em risco os estadunidenses, difícil identificar os possíveis envenenados. [N.T.]

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