Kissyan Castro (Barra do Corda/MA, 1979) é poeta e pesquisador maranhense, graduado em Letras pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Boa Esperança/MG; pós-graduado em História e Literatura Brasileira; membro da Academia Barra-Cordense de Letras (ABCL) e Membro correspondente da Academia Itapecuruense de Ciências, Letras e Artes (AICLA). É autor de Vau do Jaboque (2005), Bodas de Pedra (2013), Poesia Esparsa de Maranhão Sobrinho (2015), Rio Conjugal (2016), O Estreito de Éden (2017), Maranhão Sobrinho – O poeta maldito de Atenas (2019) e Pássaros Lacunares (2023). Com participação nas coletâneas Caleidoscópio (Andross), Além da Terra Além do Céu (Chiado), Babaçu Lâmina (Patuá) e Haicais e Tankas (Persona), tem poemas publicados em diversos sites, jornais e revistas eletrônicas, entre as quais Germina, Mallarmargens, Caqui, Literatura & Fechadura, Acrobata e Portal de Poesia Ibero-Americana.
OUTRA INFÂNCIA I
refletido de um poema de Drummond
sempre que meus pais brigavam feio
me trancava no banheiro
olhava as mãos entre soluços
que fundo
procurava nas linhas confusas da palma
um mapa que me apontasse a saída
eram eu e minhas mãos
num mundo irreconciliável
hoje adulto ainda olho as mãos
as esfrego
como para apagar aqueles gritos na sala
aquele invisível mapa que me aponta sempre o mesmo
banheiro
e eu não sabia que estava vivendo a minha comprida história
(sem cruzoé
ou sexta-feira)
num banheiro que não acaba mais
OUTRA INFÂNCIA II
a minha infância
foi tão curta
que nem percebi que alguns brinquedos
me chegaram intactos à vida adulta
admirava-os no invólucro das caixas
atrás das vitrines
os olhos se enchiam de cores
trouxe-os apenas na vontade
onde estão iluminados
minha mãe dizia que o sonho
era uma caixa enorme de inventar brinquedos
e acreditei
passados tantos anos
eles continuam inteirinhos
quando me canso de ser adulto
os desembrulho e me divirto
esparramando-os no chão da memória
minha mãe tinha razão:
tenho todos os brinquedos do mundo
O GOLE QUE SE ENTORNA
construo plumagens
do que escrevo
não acaricio flores
tateio a música
nascida dos pés
de um moribundo
voz da terra
abrindo caminhos
por onde sou
não trago palavra
que se escancara
diferente do dia
repetindo o caos
de velhas árvores
o que digo
digo na tara
GÊNESE
o decúbito do vento fecunda as horas
e o meu plectro capenga nirvaniza
a paisagem:
siameses da clausura quando o dia
depõe o seu óbolo
no óvulo
PROLAPSO RETAL
essa de ficar
suspenso na palavra
não mais aguça
o mármore
matéria de translado
não leva à boca
a hóstia hereditária
nem apanha o galo
por trás da manhã
calcinada
os viadutos da voz
deram numa encruzilhada
sem pássaros
onde arbustos
indomáveis
renegam a memória
agora a rosa
é incômoda
uma saliência na noite
truculenta
do avesso das pedras
SÍSIFO
não há etmologia na dor
que circunda a ossatura
de manhãs sempre iguais
a dor é íngreme como uma casa fixa
no pensamento
não há ferrolhos na dor
só um repetido estribilho
de manhãs sempre iguais
ATLAS
procuro no torso
das palavras
não a ideia que enclausura
não a melopeia mas
a cassiopeia
sintática das idades
não o decalque
mas as janelas os orifícios
a passagem por onde
caibo
com meus girassóis
e vértebras
procuro-as mesmo
diastólicas
no emplastro acústico
de uma ausência
procuro no torso
das palavras
aquilo que mantém as coisas
levantadas
MASMORRA
posso no trotar do sonho
ser o sulco dos rastros
que circunscreve a manhã
ou do cavalo o tumulto
de incontáveis léguas
que nos cascos sonha
posso ser todo distância
a chegar em mim
VELHICE
nenhum hóspede povoa o dito
que na palavra quer ser mundo
só navios latejam no fim do rosto
do meu poema até os pombos
já voaram
YANOMAMI
de minha arcada pende
o gemido de incontáveis
povos massacrados
yanomamis sem mãe
chupados de sua plumagem
possante que dá nome
à terra
conhecem o idioma
das frutas o latejo do mel
desenhando as árvores
não aprenderam do mercúrio
a assepsia itinerante
que recita os peixes
os paricás tombaram
não há dança nem festa
que outra urgência
contorce o xamã
não há mais tempo
que a terra guardou
os seus pássaros
e o vento se levanta
resta o fogo sem caça
– animal luminoso
farejando cavacos
estão nus em esteiras
a febre sacudindo
o esteio das malocas
dentro a fome se apinha
dos ossos arrancando
sua camada de flor
ossos – não cassiterita –
atravessados na garganta
da terra sem sequer poder
chamá-la sua
ossos mal recolhidos
vão somar cascalhos
no fundo da bateia
de garimpos ilegais
vão fechar gavetas
de alheios mostruários
vão esbranquiçar na noite
a indiferença de tupã
vão servir de adubo
para o próximo paraíso
de minha arcada pende
a indigestão desse silêncio
quase ornamental quase
lenda que de tão vasto
não abarca
Sou apaixonada por poesia.
Elas me ganham desde a natividade.
O poeta digita a primeira letra
E já gosto.
Acho impossível não ser remexido
até o âmago,
após ler um poema.
Kissyan Castro éum Ícone da poesia. Nasceu poema.
É poeta desde o óvulo fecundado.
Parabéns, poeta!