As Mulheres (Desaparecidas) de Floriano Martins

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Por Elys Regina Zils*

Em 2021, nosso querido poeta, ensaísta, tradutor, artista visual Floriano Martins lançou o livro Las Mujeres desaparecidas, pela chilena LP5 Editora. É um livro que compartilha com o leitor o abismo de 50 mulheres, mergulhando no universo particular de cada uma, repleto de solidão, sensualidade, angústia, tão belo quanto a dor da existência pode ser, principalmente em um mundo patriarcal e misógino. Agora em 2024, esses poemas ganharam voz com a leitura feita por 50 mulheres poetas hispano-americanas.  Mais do que um convite para compartilhar de sua arte de inquietante beleza, é um resgate poético desses 50 fantasmas da nossa sociedade. Os vídeos podem ser acessados através da página da Agulha Revista de Cultura, no link: https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2024/04/floriano-martins-las-mujeres.html, a partir de 31 de julho, quando o projeto será oficialmente apresentado.

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ERZ | Em 2020, você lança o livro 120 noites de Eros – Mulheres surrealistas, uma série de retratos sobre a presença de mulheres artista no surrealismo, uma forma de dar visibilidade a elas que muitas vezes ficaram em segundo plano; e em 2021, pela LP5 editora, sai o livro Las mujeres desaparecidas que, conforme escreveu Berta Lucía Estrada, é um livro que vai muito além da denúncia social; e o digo porque ao mesmo tempo em que denuncia a petulância da sociedade patriarcal desvela a condição humana. Dito isso, gostaria de ouvir sobre sua inspiração em revelar essas mulheres.

FM | Vagando por entre as prateleiras da livraria do Museu de Arte Contemporânea, em Sidney (Austrália), encontrei um simpático livro, pequeno, que incluía duas ou três peças de várias artistas plásticas contemporâneas, todas mulheres, ao lado de uma breve biografia de cada uma delas. Era uma edição de luxo, toda em cores. Não recordo sua organizadora, mas o fato é que aquela estrutura me fez pensar que eu poderia fazer algo em relação ao Surrealismo. Ali estava dado o primeiro traço. Nos dias seguintes comecei a anotar e pesquisar mulheres surrealistas espalhadas por todo o planeta, isto na casa de minha filha, em Sidney, onde costumo ficar. Na medida em que fui viajando por todos os países, virtualmente falando, de modo surpreendente foi aumentando a presença do Surrealismo, ao ponto em que já não era possível mais pensar na reprodução de suas obras, não apenas pela quantidade, mas sim pela variação daquele surrealismo, pois era fundamental recordar artistas e poetas, sim, porém ao lado de dançarinas, fotógrafas, atrizes, romancistas etc. Surgiu então a ideia de seguir os mesmos passos de Murilo Mendes, em seu livro fundamental, Retratos-relâmpago (1973), ou seja, eu me vi tentado a compor uma série de retratos daquelas mulheres, o que de algum modo confirmava um recurso que eu já vinha utilizando em livros anteriores, como A grande obra da carne (2017). Agora eu tratava de concentrar impressões e breves reflexões sobre a vida e a obra dessas mulheres. A presença algo nublada de muitas delas, ao lado de que pela primeira vez eram vistas como um todo, permitia uma perfeita radiografia de algo que a todo custo os amantes do Surrealismo, para o bem e o mal, tomaram por hábito evitar: a mancha da misoginia que tem sido uma das facetas lastimáveis do movimento. O livro estava assim quase concluído em sua estrutura, restando a dúvida sobre a quantidade de mulheres que eu deveria retratar. O número estava bem à minha frente, o tempo inteiro, como um desafio, fazer com que essas mulheres de algum modo confrontassem aquilo que o crítico Jacob Klintowitz percebeu no prefácio da edição do livro como sendo sua contradição fundamental. Refiro-me ao livro Os 120 dias de Sodoma, do Marquês de Sade. E aqui o melhor é dar voz ao próprio Klintowitz, em sua sabedoria, quando revela que a tese de que tudo é possível devido à ausência de Deus, em Sade, encontra o seu oposto em Floriano, pois nele encontramos a tese de que a ética, e nela a criação humana, é uma construção social e psíquica dos milênios da espécie humana. O livro havia então encontrado sua meta, e inclusive buscaria afirmar que o verdadeiro Surrealismo teria, talvez finalmente, que aprender que não se pode transgredir somente o outro, mas, antes de tudo, a si mesmo. E naturalmente Berta Lucía Estrada acerta ao dizer que estas 120 noites de Eros (2020) são, de algum modo, o retrato da condição humana.

A tua pergunta, no entanto, menciona também o livro seguinte, Las mujeres desaparecidas (2021), que pode ser visto como uma consequência do anterior. Se nas 120 noites de Eros eu havia elegido um cenário real, agora eu me indagava a respeito de mulheres que foram expostas a todo tipo de violência, não cabendo mais reuni-las em torno de um movimento artístico, mas sim observando a brutalidade que sofreram – sofrem ainda – em sua condição de anônimas, invisíveis pela sociedade, desacreditas por seus iguais. Essas mulheres desapareceram por completo, e eu me sentia agora desafiado a dar-lhes vida, de alguma maneira. O livro reúne personagens fictícios, inexistentes? Sim, mas ao mesmo tempo eles são o símbolo mais revelador da espécie humana. Há ainda um terceiro livro, Sombras no jardim (2023), que reúne mulheres que, a exemplo do que Artaud dissera de Van Gogh, foram suicidadas pela sociedade.

ERZ | O livro Las mujeres desaparecidas nos brinda com 50 mulheres de distintos âmbitos envoltas na neblina onírica e do esquecimento. São 50 poemas narrativos que retratam uma alquimia psíquica com um único destino: o silêncio. Como se deu a pesquisa e seleção dessas mulheres? Como foi adentrar nesses universos repletos de sombras, já sem corpos?

FM | Em um de seus dois posfácios a poeta venezuelana Carmen Verde compreendeu muito bem que o livro pode ser lido como um poema longo, como uma única voz que engoliu outras vozes. A história de uma viagem, escrita desde uma palavra precisa, dolente, sensual e profundamente solitária. Ou como dizes: a bifurcação de mil caminhos que nos conduzem sempre ao mesmo e devorador silêncio. Não houve pesquisa ou seleção. Trata-se da evocação de um martirológio – em meu caso, sem nenhuma intenção de beatificação. Ao fechar os olhos – mas também sempre é possível mantê-los bem abertos em nosso passo pelo mundo – a memória transborda seus evangelhos fulminados pela hipocrisia, a misoginia, a violência sexual etc. A história da humanidade sempre nos alertou – os livros santos são a fina folha do paroxismo – que a mulher seria sugada até o fim, que ela seria a mais invisível de todas as criaturas. Este é o livro. Uma recordação de sombras que possivelmente jamais tiveram corpos.

ERZ | Agora em julho, está lançando série de vídeos Las mujeres desaparecidas, com a leitura de poemas realizadas por 50 mulheres poetas hispano-americanas, elevando assim esses poemas para outra dimensão. Como surgiu a ideia? Poderia compartilhar um pouco sobre como foi o processo com essa nova linguagem e o que o público encontrará nesse projeto?

FM | Desde que Gladys Mendía editou Las mujeres desaparecidas (2021), eu venho pensando em algo que possa dar a essas mulheres o que chamas de uma outra dimensão. O livro, sendo impresso em vários países, graças à modalidade de edição on demand, se encontra na Amazon,: https://www.amazon.com.br/MUJERES-DESAPARECIDAS-Colecci%C3%B3n-Plateado-plateado-ebook/dp/B09MML5LZN, e permite assim uma ampliação em sua circulação. Porém o vídeo é uma linguagem que nos leva a um outro tipo de difusão, talvez até mesmo alcance um outro modo de interesse. Quem sabe essas mulheres encontrariam um corpo menos invisível, eu diria quase que tangível. Como definir então qual o cenário das mulheres convidadas para a leitura dos 50 poemas que compõem o livro? A ideia também se impôs naturalmente: escrito originalmente em espanhol, os retratos me disseram que a sua condição, de algum modo, era a mesma de um continente, a América Hispânica, parte do mundo que também tende ao desaparecimento. A história nos mostra que os 19 países que definem essa América têm apresentado cada vez mais uma perda de sua capacidade de expressão e que é um dever quase cósmico rejeitar essa aviltante tragédia fomentada pelo cinismo da política. O projeto dos vídeos foi criando um imperativo, o de que esse cenário de mulheres desaparecidas fosse representado por mulheres poetas hispano-americanas. O que o público encontrará ali será esse retrato múltiplo que transfere para si a causa dessas tantas mulheres que são parte de sua própria vida.

ERZ | E como foi para o criador ver sua obra ganhar vida na voz dessas poetas?

FM | Uma felicidade imensa que inclusive corresponde a um desejo que não comentei com nenhuma delas, de que as leituras fossem o mais ao natural possível, sem transmitissem a ideia de um ensaio teatral. As leituras semearam os mesmos gestos espontâneos com que foram escritos os poemas e que certamente marcaram a vida dessas mulheres. Fico imaginando o esplendor que não seria dispor em um palco cinco telões onde aleatoriamente seriam projetados os 50 vídeos. Quem sabe essas mulheres todas não seguem fazendo seus milagres. A todas elas, essa centena de seres mágicos, eu tenho infinitamente que agradecer a confiança.

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Elys Regina Zils (Brasil, 1986). Poeta, artista visual, tradutora. Doutoranda e Mestre em Estudos da Tradução pela PGET/Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Possui graduação em Letras-Língua Espanhola e Literaturas e Letras-Português também pela UFSC/Florianópolis, Brasil. Se dedica à Literatura Latino-americana, pesquisando principalmente Vanguardas Literárias e Artísticas com ênfase em Literatura Surrealista Latino-americana. Editora da Agulha Revista de Cultura, juntamente com Floriano Martins. Tradutora, ao lado dele, de sua trilogia dedicada ao surrealismo, que inclui Um novo continente – Poesia e Surrealismo na América, 120 Noites de Eros – Mulheres surrealistas, e Cartas mágicas – Viagens do Surrealismo. Elys traduziu Os elementos terrestres de Eunice Odio, pela Sol Negro Edições. Tem sido responsável, parcialmente, pelas traduções de poetas hispano-americanos para o “Atlas Lírico da América Hispânica”, da revista Acrobata. Contato: [email protected].

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