Gisele Prassinos (Turquia, 1920-2015) – Série Um Século de Surrealismo / Poetas

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Série Um Século de Surrealismo – Poetas, 18
Organização e tradução de Floriano Martins

A poeta Gisèle Prassinos considerava utópica a escritura automática nos moldes em que a preconizara André Breton. Segundo ela, há um primeiro estalo em que o subconsciente é acionado pela escrita, porém no momento seguinte a consciência volta a intervir juntamente com as forças da imaginação. Não havia aí nenhuma rejeição ao Surrealismo, cuja importância ela sempre reconheceu, mas antes o imperativo de colocar o assunto com clareza. Apresentada a Breton por Henri Parisot, tradutor e amigo comum, aos 14 anos de idade, Gisèle logo teria um primeiro livro prefaciado por Paul Éluard, sendo enquadrada pelos surrealistas como a poeta-menina, ou mulher-criança. No entanto, jamais foi percebida como mulher ou mesmo como poeta – em entrevista ela recorda um dia em que Breton cruza com ela na rua e finge não a reconhecer –, e raramente foi convidada para as reuniões do grupo. É plena sua consciência de que foi tratada apenas como objeto. Interessada na simbiose de uma escrita coletiva, que chegou a realizar com o poeta luxemburguês José Ensch, era fascinada pelo modo como tais experiências excediam o território da consciência individual. Poeta, desenhista e narradora, Gisèle foi além da caricatura que inicialmente lhe foi imposta pelos surrealistas, criou uma obra singular, absolutamente transgressiva ao embaralhar os gêneros, fusão de erotismo e humor negro, repleta de personagens-limite. Certamente Sade a teria entre os seus.


A LAGOSTA ARTRITICA

procurei em todas as partes por um lugar de descanso
                  porque não
sem sequer pegar um aro na pele
                 certo é que não
encontrei um trilho com alcatrão
                 deve ser dito
minha flor perdeu seu primeiro botão
                  mas de brincadeira
piquei uma vaca com um bombom
                  porque sim
diz que é uma blusa de papel marrom
                 eu não tenho
cuspi tinta na panela
                se meu coração
enquanto saboreava a borracha
                que dor
comi farelo que tive sarampo
                 sem gritar
quando tive cheia a barriga carreguei meu cachimbo
                  teu sapato se soltou


ANIMAÇÃO SUBTERRÂNEA

Tinha pérolas brancas na boca.

E às vezes as confundia com meus dentes e inclusive chegava a utilizá-las para abrir caixas demasiado bem fechadas.

Algumas eu havia colocado no fundo de minha garganta, de modo que, quando tragava a minha saliva, uma ou duas pérolas seguiam o mesmo caminho que ela. Sentia-se passar por todo meu corpo, seguidas de um fino traço. Detinham-se em qualquer lugar, formando pequenas bolas móveis sob a minha pele.

Minha língua se dedicava a torna-la mais delgada de modo a passar pelos buracos das pérolas. Quando encontrava algo áspero, se punha a desgastá-lo suavemente, desgastando-se a si mesma. Pequenos fragmentos começavam a pender sobre ela, porém não se privou de nada. Este ambiente de frescura a arrebatava e lhe dava forças para continuar seu trabalho.

Quando não lhe restou mais do que uma pérola por escavar, estava já muito magra e rosada, porém redobrou sua energia e se retorcia para penetrar no buraco iniciado.

Empurrava sobre a pérola enquanto a retinha, porém esta não queria fundir-se e minha língua lançou todo seu sangue sobre a pérola branca.

E então dormi. Ao despertar, já não tinha língua.

Colados em minhas bochechas e paladar, pequenos pedaços se mesclavam com as pérolas para me importunar ainda mais.


VISÃO TORTUOSA

Uma mulher em sua varanda olhava o céu, os cabelos ao vento e as mãos se esforçando por retê-los. Já havia passado mais de uma hora, olhava fixamente uma pequena nuvem cinza similar a uma grande lâmpada. Seus olhos claros não se moviam, apenas piscavam uma vez e outra, quase não se podia vê-los: eram tão negros que se tornavam invisíveis.

Ela ficou nesse lugar sem que seu corpo se movesse uma única vez, esperando a noite. Quando esta veio e não havia mais vento, a mulher baixou suas mãos e as deixou cair junto a seu corpo. O choque lhe fez abrir-se longitudinalmente com grande ruído. Então dois corações colados um no outro escaparam com muito sangue que acabou se expandindo pelo terraço. Rolaram até uma pequena porta de emergência e ali se detiveram em seco e ainda fumegantes e cheios de convulsões.

Quanto à mulher, ensimesmada e desprovida de força, passeava pela varanda de um modo flácido, olhando o sangue que corria pela rua, com os mesmos olhos alternadamente claros e negros.


A RAIZ DAS IDADES

Um domingo, a luz fumava e um gato miava na cozinha que estava encantada.

A seu lado, uma mulher casada olhava com atenção o pêndulo plano do corredor. Esta mulher estava sentada no chão com um peso de um quilo, tentava medir seus cabelos chapeados. Seu marido estava fora falando à terra. Quando voltou à casa, tivemos que tomar seus campos porque nem a galinha nem o menino se fizeram escutar.


POEMA AMOROSO

À sombra do tapete iridescente, ah por que, ternamente inspirada, ordenaste as fibras ínfimas de meu coração? Jamais surpreendeste a cintilação instintiva e estrangeira da corporação central de minha alma? Crês que a moralidade fiel seja um segredo que se sofre particularmente?

Que meus olhares salubres já não rebentarão sob a influência árida de seus sombrios globos oculares? Não, não é assim, nem o será jamais! Porque velo socialmente pela unânime capacidade dos órgãos originais e sei que eles adotam a superioridade geral da organização profética, vosso coração jamais ousará reservar o meu.

Portanto, estabelecendo reverências e fiações, vos digo fumigando essas palavras queixosas: Temamos os sentidos.


ENCONTRAR SEM BUSCAR

Minha filha tem uma pobre voz de homem, uma trapaça masculina que se introduz em sua garganta.

Tenho em meu bolso, diz, bonitas frontes de assassinas que farão teu negócio.

E busca seu lugar, pobre menina valente no trabalho, enquanto nossos clientes escapam, assustados, os ouvidos transtornados e abatidos.

Então a filha geme e se desespera.

Cessa tuas lamentações, pobre filha, disse acariciando-a, iremos ao cirurgião para que te dê uma verdadeira voz de mulher.

Nesse momento, um belo jovem passa e nos saúda. Detém-se e pede algo. Sua voz é tênue e doce, não a escutamos.

Frontes serenas, ingênuas, pérfidas, diz minha pobre filha tratando de se acalmar. E esconde suas lágrimas para não ter sobre a consciência a fuga do novo cliente.

De seus lábios ínfimos, sai sussurrado um desejo inesperado: Quero uma voz, diz.

Eu te darei a de minha pobre filha, digo sorrindo de felicidade.

 

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