Aase Berg (Suécia, 1967) – Série Um Século de Surrealismo / Poetas

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Série Um Século de Surrealismo – Poetas, 20
Organização e tradução de Floriano Martins

Há um aspecto visceral na poética de Aase Berg que descarna a linguagem até o ponto em que dela começam a surgir novos mundos. Suas imagens abrigam planos em que as lágrimas do oceano / esfregam as garras / em superfícies / fechadas, mergulham fundo, como diz Dodie Bellamy, na perversidade da natureza, tateando as bordas externas da subjetividade. Poemas e prosa poética, com um metabolismo em permanente mutação, questionando todas as regras, afeitos a traçar uma relação entre o Surrealismo e as ciências naturais contemporâneas. Seus versos, como caixas equivalentes ao corpo, humano e animal, trazem à luz uma álgebra de imagens invertidas, revelando a força metafísica de nosso simbolismo cotidiano, a frequência com que o tempo nos dissolve e cria bifurcações em nossos planos existenciais. Aase filiou-se a um grupo surrealista em Estocolmo criado em 1986, uma experiência singular, embora ela própria posteriormente dissesse que carecia de perspectiva feminista. Ao criar a poeta abre sulcos na realidade e os preenche com ironia e requinte de neologismos sugestivos, estranhas formas de ludismo entranhadas com a ferocidade dos riscos. Até onde é possível traduzir, ela nos diz: Você, meu aquário de pesca de estrelas, e eu, / uma visão sombria eletrônica diretamente através de você. Em outro nos sugere um lugar onde as máquinas estão interligadas, e pondera: Lá você não é mais amado, / é observado. / Como a hierarquia dos hackers / é uma meritocracia, o / respeito é conquistado através dos resultados. Uma estranha poesia que a todo instante nos desafia a desvendar novos códigos-fonte.


[ESTOU]

Estou
dentro de ti
Onde ninguém esperava
Loucasingapura
Agachada na
tempestade
filipina
gata-suave de
toxoplasma
sexoesquizoide
Endorforia
nunca mata
seu mundo-hóspede


[O LÁPIS LABIAL]

O lápis labial
e as partes de meu corpo
desviado no alívio de
incrível negação
Não tens ideia
que seios lindos eu tenho
que mãos pálidas
trafegam sensualmente pelas redes
A rede gratuita e escura
eternamente sozinha
em minha sequência algorítmica
um servidor proxy aberto
mal configurado
quando a caixa preta
afunda suavemente
até o fundo do mar
fora da China


O ESCURO TRISTE

Agora esperei aqui por ti, nas noites de Dovre. Agora estou esperando que o tempo do espaço caia sobre mim. Nessas noites de trovão ficarias ao meu lado. Sussurrarias meu nome ao meu lado. Eu raramente te ouviria. Uma manhã eu ouviria.


Agora estou esperando aqui nas noites profundas de Dovre. Deixei cair pedras frias no abismo azul. Procurei lidar com metal. Passei pela granulação do rosto. Eu te procurei com meus dedos nas cinzas do rosto. Penas ensanguentadas saíram da minha mão e arrastei barbatanas escuras pela água.


Uma manhã eu te ouviria. O receptor foi esticado e ampliado. Eu ouviria as tuas ondas quebrando. Sentiria o coração gritar, ouviria o cenário sendo despejado de ti. De onde vieste a carne de Dovre para brilhar através de mim. Onde vieste tremendo e te curvaste sobre sua mancha.


NO MOINHO DE ARDÓSIA EM DOVRE

Manobrar o corpo sobre armadilhas profundas, sobre buracos cheios de água e poços abertos, sobre o pelo molhado do animal com terror nas costas. Galhos afiados batem e espalham manchas de sangue na pele dos meus dedos, meu rosto de esmalte azul contra fibras nuas de urtiga. Do outro lado da fundição, na beira do lago turvo, vejo Zachris chegando muito perto do poço. Aproximo-me da cabeça, apesar das correntes baterem com metal fosco na rádula febril. Aqui, uma fronteira subterrânea clara atravessa uma passagem de fístula em direção ao Mare Imbrium. Eu exploro a ligação muscular contra as máquinas que batem na ferida. Que mal pode acontecer contigo, que mal pode acontecer contigo aqui perto de águas pesadas. Na forja, os trilhos doloridos do Daudekören gritam contra espetos afiados. Bastonetes de quitina, pórfiros, cristais de carbono frio. E minhas mãos rígidas em concha, e minhas mãos rígidas em concha na superfície de teu crânio negro.


RAIO X

Os lêmures são azuis iridescentes. Seu som nítido e vítreo que emerge apenas de frequências raras. Os sons em sua totalidade são mortais – poderiam arrancar os tímpanos de nossos ouvidos se não mantivéssemos constantemente contraído de forma rígida o músculo bifocal. Posso ajustar meu corpo em um ângulo, de preferência no Light Pocket entre as bandas de comprimento de onda óptico. Eu seria então capaz de sentir o feixe nervoso do buscador, ou talvez sob certas formas de crepúsculo esparso. As nuvens primordiais de nosso sistema solar se moveriam então em equilíbrio – através do Skreaklyfta como ondas de éter vermelho-dura e suavemente franzidas. Eu também seria capaz de localizar o ponto focal das lentes com base no cheiro vagamente acre.

Os lêmures refletem um azul radiante. Para forçar minerais com ondas de luz. Ninguém volta com vida da montanha. Aqui está a nitidez – espectro concentrado – aqui está o vidro focal líquido. Eu também seria capaz de localizar o ponto quente do Purgatorius pelo cheiro vagamente rançoso. Na cripta há um clangor mortal e um crepitar miserável: aqui descansam as rainhas dos lêmures da córnea. E nas prateleiras de minério nas cavernas internas de Skrea escalam feras de vidro estridentes e pesadamente carregadas.

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