Das realidades invisíveis: onde estão as mães que escrevem?

| |

por Jo Melo

A escrita, especialmente sobre eventos traumáticos, pode ajudar a reduzir os sintomas de ansiedade e depressão.

Você sabia que não precisa ser mãe/pai ou lidar com crianças para aprender mais sobre maternidade? Sabia que a maternidade também é política? Sabia que existem mulheres exaustas e sobrecarregadas que, desde o momento em que se tornam mães, são vistas pela sociedade como incapazes de realizar as tarefas que faziam antes? Bem-vinda, pessoa leitora, ao mundo da maternidade.

Como diz o famoso ditado: “ser mãe é padecer no paraíso”, só que não. Essa ideia do instinto materno faz parte de discursos baseados na romantização, muitas vezes imposta pela própria sociedade.

Existem milhares de mulheres que após serem mães buscam se reencontrar, mas perdem sua identidade, amigos, empregos e até relacionamentos.  Então quer dizer que ser mãe é algo ruim? Não. Mas muitas pessoas acham que, ao falar sobre os desafios diários da maternidade, você está questionando o amor que sente pelo seu filho. E isso é um equívoco. O que muitas mães lutam e reivindicam hoje em dia é o direito de pertencer, de ter uma rede de apoio, de acessar políticas públicas, de se relacionar, de trabalhar e de ter lazer. Isso não tem nada a ver com amor.

A sociedade espera que sejamos santificadas, que aguentemos tudo pela casa e pelos filhos, ou que sejamos “guerreiras” por fazermos tudo sozinhas. Mas, na verdade, somos sobrecarregadas por uma sociedade que ignora nossos pedidos de ajuda. Isso não é só sobre você ou sobre mim, é sobre todos nós.

As pessoas acreditam que criar uma criança é apenas papel da mãe, esquecendo que o pai, e toda a sociedade, também são responsáveis. Dizem que “Quem pariu Mateus que o embale”, mas não é bem assim que funciona. Na verdade, é preciso uma aldeia inteira para criar uma criança. Nossos exemplos, nosso dia a dia, nossas ações, tudo isso impacta a criação de uma criança. Ela não fica 100% do tempo em casa; ela vai para a escola, para a casa dos amigos, e começa a viver em sociedade. Somos todos responsáveis por como essa criança vê o mundo.

A escrita como rede de apoio

Quando fui mãe, em 2010, eu não sabia nada sobre maternar. Naquele ano, não tínhamos todas as informações de hoje. O máximo que havia eram blogs e fóruns. As mulheres viviam isoladas em suas bolhas, muitas vezes sem saber o que fazer. Eu era uma dessas mulheres. Tive um parto difícil, sofri várias violências obstétricas e, sozinha, tive a responsabilidade de criar uma criança. Eu era uma jovem de 20 anos em 2010. O tempo passou, e a solidão materna me colocou em uma situação em que eu sentia que precisava de alguém.

Leia também:  Cia Borandá de Teatro - processo criativo

Foi então que, em meados de 2015 para 2016, decidi postar no Facebook, perguntando se alguém gostaria de se encontrar comigo para conversar sobre maternidade. Marquei um dia, horário e local, e fui até lá. Quando cheguei, encontrei algumas mulheres, e aos poucos mais foram chegando, até que éramos cerca de 20 mulheres com suas crianças naquele parque. Fiquei surpresa, porque o que era para ser um encontro entre duas ou três pessoas se tornou algo muito maior. Foi ali que percebi que eu não estava sozinha no que sentia.

Nós conversamos, brincamos com as crianças, e foi um momento de troca muito importante, algo que eu não tinha desde que havia me tornado mãe. Depois desse encontro, muitas me perguntaram quando seria o próximo, e então eu decidi criar o coletivo Encontro de Mães Feministas.

Durante todo o ano de 2016, realizei encontros mensais com rodas de conversa sobre maternidade, direitos, criação de filhos, violência doméstica, e tudo que envolvia o nosso mundo. Além disso, criei aulas gratuitas de redação para o Enem e organizamos uma festa junina.  Logo depois, percebi que poderia alcançar mais mulheres. Então, criei um blog e convidei as mães a compartilharem suas experiências com a maternidade. Em 2017, o blog evoluiu para a revista, e hoje somos a primeira revista feita inteiramente por mulheres-mães.

A Revista Mães que Escrevem (https://maesqueescrevem.com.br/) é um espaço onde as mulheres podem desabafar, não apenas sobre maternidade, mas também sobre seu dia a dia.

Muitas pessoas já me disseram que só tem reclamação na página. Mas é nesse espaço que as mulheres se sentem seguras para falar. Iniciativas que enaltecem a maternidade são muitas, e claro que há um lado lindo na maternidade, mas também há um lado solitário. E o que fazemos com esse lado solitário? Não o abafamos; falamos e escrevemos sobre ele. Hoje, a revista Mães que Escrevem já publicou mais de 1.500 textos.

Além do site, temos a revista digital, que chegou à 13ª edição, com cada edição abordando um tema diferente, sempre com textos das próprias mulheres. Nosso espaço na mídia é muito limitado, principalmente por conta da romantização da maternidade, então seguimos sozinhas, porém juntas na esperança de reconhecimento.

Leia também:  Alô alô tropicaleiras e tropicaleiros! Processos sonoros criativos nas mixagens de Grazi Flores

Por causa de tudo isso, em 2018, criei um projeto dentro da própria revista chamado “Saúde Mental das Mães Importa”. Porque não adianta abrir um espaço sem oferecer apoio a essas mulheres. O projeto conta com mais de 20 psicólogas parceiras que atendem nossas leitoras a preço social, em todo o Brasil, e até fora do país. Temos psicólogas que atendem presencialmente e online, de várias linhas de atendimento. Também temos advogadas especializadas que prestam assessoria jurídica para mães que precisam; nutricionistas e pedagogas. Todas as mulheres que um dia foram alcançadas pela revista e que desejam retribuir, criando essa rede de apoio.

Infelizmente, a revista não tem fundos; sobrevivemos de doações das leitoras e de recursos próprios. Criamos uma loja para tentar manter, pois há custos e ainda não temos patrocinadores.

Somos um ecossistema que funciona por colaboração. Como editora-chefe, meu processo criativo envolve receber esses relatos e publicá-los na íntegra, fazendo somente pequenas alterações textuais. Temos uma equipe com três revisores e uma curadora que recebe os textos. Eles passam por uma revisão final, feita por mim, antes de serem publicados.

Já colocamos no ar, textos anônimos para evitar exposição, e já tivemos pedidos de maridos para retirar textos das esposas porque se sentiram ofendidos. Muitas mulheres escrevem sobre suas violências e vivências usando pseudônimos para não serem descobertas, com medo do que pode acontecer. Isso mostra a importância desse espaço.

A revista sempre tem chamadas abertas para textos, sem um tema específico. Recebemos contos, poesias, desabafos sobre maternidade, relacionamentos, questões raciais, crônicas, entre outros. Esses textos passam pela curadoria, revisão e, finalmente, por mim, para edição e agendamento das postagens no site e nas redes sociais. Temos, em média, de 7 a 10 publicações semanais, fora os textos das colunas, então são em torno de 25 a 30 textos no mês . Além disso, estamos sempre de olho nos assuntos do momento que podem interessar ao nosso público.

Também realizamos um concurso cultural de crônicas, que começou este ano, chamado “Escrevivências Maternas”. Recebemos os textos e publicamos todos. Nenhum texto é descartado. Selecionamos as ganhadoras, quando é do concurso, quando é da edição em PDF, criamos um número de mulheres que serão publicadas, por exemplo, 40, se recebemos 80 textos, os 40 restantes continuam. Ou seja, os textos que não entram na revista são publicados no site, porque acreditamos que toda escrita é válida.

Leia também:  Processo de criação de Adé - projeto audiovisual do livro "aos meus homens”

Esse é um trabalho que demanda muito tempo e dedicação. Eu sou uma mulher autista, a escrita é meu hiperfoco e ferramenta de regulação emocional, e acredito que pode ajudar outras mulheres.

Está comprovado cientificamente que a escrita ajuda as pessoas. Independentemente do que ou como você escreve, às vezes, uma mulher não tem com quem conversar, mas ao enviar um texto, mesmo que anônimo, ela consegue expressar o que sente. Isso ajuda tanto!

As pessoas acham que, ao falar sobre maternidade, estamos incentivando as mulheres a terem filhos, mas não é isso. Queremos que as pessoas entendam nosso lado e vejam que não somos apenas “reclamonas”. Nossas mães e avós, por exemplo, não falavam sobre o que sentiam porque seriam muito mais julgadas do que somos hoje. Pergunte para sua mãe ou para qualquer mulher que seja mãe se, na época dela, ela não precisava de alguém para desabafar. Ela certamente dirá que sim, porque independentemente da idade, mãe é mãe, mas antes de tudo, ela é mulher. E, muitas vezes, é uma mulher cansada que precisa de ajuda.

Referência:

COLLODEL BENETTI, Idonezia; FERREIRA DE OLIVEIRA, Walter. O poder terapêutico da escrita: quando o silêncio fala alto. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental/Brazilian Journal of Mental Health, [S. l.], v. 8, n. 19, p. 67–76, 2016. DOI: 10.5007/cbsm.v8i19.69050. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/article/view/69050. Acesso em: 20 ago. 2024.

Sobre:

Jo Melo é escritora, jornalista, mãe e autista. Em 2017, fundou a revista Mães que Escrevem para criar um espaço de acolhimento e rede de apoio para mães. Formada em Letras com especialização em Português e com pós-graduação em Comunicação e Marketing Digital, Jo é autora dos livros Hipérboles (2022 – Editora Viseu) e Os Cinco sentidos (2024 – Editora Patuá). Também publicou em algumas antologias e revistas de literatura. Além disso, é ganhadora do Prêmio Talentos Helvéticos-Brasileiros na Suíça. Instagram @jomelo.escritora.

Deixe um comentário

error

Gostando da leitura? :) Compartilhe!