ELENA FERRANTE: de mãos dadas com Lila e Lenu

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“É preciso aprender a amar a mãe para que se inaugure uma nova fase feminista”.

Emília Rafaelly Soares Silva

Doutoranda em Literatura Comparada, Universidade Federal do Ceará

Profa. do Instituto Federal do Piauí

A obra de Elena Ferrante é um sucesso editorial frenético, apesar do pouco que se sabe sobre a entidade física que está por trás de seus escritos. Seria Elena Ferrante uma mulher, um homem ou um conjunto de editores? Sua ausência dos holofotes se dá porque Ferrante, como afirmou em Frantumaglia (2017), espera que seus textos apareçam por si sós, sem a proteção de um nome que possa lhe conferir status. Tal como Befana, uma figura lendária italiana, Ferrante entrega suas obras ao público e desaparece sem ser percebida.

Sua ausência do cenário midiático, no entanto, não deixa seus leitores carentes de uma grande proximidade com a verdade literária. Seu realismo é tão profundo que faz com que a sua ficção pareça mais real que a própria realidade. O efeito de autenticidade com que a autora descreve suas personagens Lila e Lenu, da série A amiga genial (2011), é tão flagrante que transporta o leitor a vivenciar junto com as personagens uma Nápoles desde os anos 1950 até os anos 2000.

A amizade feminina, tema ainda pouco explorado com profundidade na literatura, é um dos vértices centrais da Tetralogia Napolitana, composta por quatro volumes, a saber: A amiga genial (2011), História do novo sobrenome (2012), História de quem foge e de quem fica (2013) e História da menina perdida (2014). Além desse tema, encontramos outros fios que entrelaçam a narrativa ferranteana, tais como: a violência, o machismo, a maternidade, o camorrismo, o abandono, a fuga e o dialeto napolitano, entre outros.

Nápoles, cidade situada nos campi flegrei (Campos Flégreos), região vulcânica, é uma das personagens centrais da ficção de Ferrante. A potência destrutiva da natureza de um vulcão é contrastada com a natureza violenta dos personagens masculinos que habitam esse cenário. A autora concentra sua atenção para vários outros personagens com o mesmo efeito de autenticidade utilizado na construção de Lenu e Lila, em especial podemos citar os irmãos Solara, responsáveis pela organização do crime no bairro, Melina, viúva louca e símbolo máximo do abandono feminino e Nino Sarratore, figura intelectual que poderíamos facilmente ilustrar como “esquerdo-macho” se compararmos com a nossa realidade brasileira.

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Há um jogo de rivalidade e companheirismo entre as duas amigas. Lenu é a personagem que busca o equilíbrio, a ordem, a partir de uma perspectiva de que, para escapar da pobreza e de suas origens, é preciso sair de Nápoles e, principalmente, fugir da figura “torta” de sua mãe. Desde criança, conhece Lila e vê em sua amiga uma força vital, uma “potência de sereia” que poderia transportá-la para perspectivas e mundos mais elevados. O primeiro deles foi o mundo da literatura. Lila, enquanto superdotada, desde cedo se interessou por livros e achava que se as duas se tornassem escritoras poderiam ficar ricas, tal como a escritora norte-americana Louise May Alcott (1832-1888) que escreveu o livro Mulherzinhas (1868).  As duas amigas seguem trajetórias diferentes: Lenu continua seus estudos, mas Lila é impedida de estudar, obrigando-se a casar cedo.  

Lenu e Lila formam os dois lados de um projeto de afirmação de uma intelectualidade feminina. A ideia de que é necessário que se crie um gênio feminino, uma gramática que elabore códigos para a amizade entre mulheres numa perspectiva que reconheça as singularidades dos caracteres. As personagens ferranteanas são vítimas dos difíceis códigos masculinos que não permitem à mulher emancipação e tomada totalmente deliberada das rédeas de suas próprias vidas.

O leitor ora pende para a determinação de Lenu, ora para a coragem de Lila. No final, percebe que uma não pode existir sem a outra, que são as suas grandes diferenças em amálgama que as impulsionam a seguir em frente. O companheirismo e a sororidade são caminhos ainda tortuosos na prática, pois carecem de um aprendizado contínuo, de mudança de perspectiva. Lenu e Lila vivenciam esses tortuosos labirintos de vai-e-vem rumo a consolidação da amizade genial.

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O cenário napolitano foi modificado diante do sucesso da série My brilliante friend exibida desde 2018 pela HBO que já conta com a renovação da terceira temporada. Paredes e janelas apresentam os corpos de Lila e Lenu no Rione Luzatti, o qual provavelmente a obra faz referência. A série, que reuniu sete milhões de expectadores na Itália em sua estreia, é conduzida pela direção de Saverio Costanzo e atuação das atrizes Marguerita Mezzuco (Lenu) e Gaia Girale (Lila). Conta também com a participação de Elena Ferrante no roteiro. A autora se dispôs a se fazer presente no processo de produção desde que a história fosse preservada. Conta-se que até mesmo a escolha das bonecas de Lila e Lenu passou pelo crivo de Ferrante. My brilliant friend, apesar de ser uma nova leitura da obra, apresenta a visão feminina, a subjetividade e a sensibilidade previstas no texto da autora e conta com o acréscimo de diálogos em dialeto napolitano, o que na obra de Ferrante é bastante referenciado, porém pouco aparece diretamente. Um fato interessante é que as atrizes, nas duas fases (infância e juventude), foram selecionadas com o critério de saberem falar o dialeto; uma escolha do diretor que conferiu mais verossimilhança à série.

Lila, em dois momentos, ainda na infância (no porão do temido Dom Achille e durante uma tentativa frustrada de conhecer o mar), toma a mão de Lenu e a carrega para destinos, depositando propósitos mais audaciosos para a amiga. Na ausência de uma figura materna forte e admirável, Lenu resolve seguir sua amiga por enxergá-la como a condensação da coragem humana. Nada acontece sem a presença ou até mesmo o fantasma de Lila, tamanha a importância da personagem para a vida de Lenu e da própria Elena que, coincidentemente ou não, possui o mesmo nome da narradora napolitana.

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Lila é uma escritora ideal: aquela que consegue se expressar sem os artifícios da palavra escrita, aquela que é o próprio acontecimento da narrativa, aquela que nunca publicou um livro, mas causa inveja a sua amiga escritora. Lila é a personagem que abandona seus propósitos (ou talvez os propósitos que a sociedade estabeleceu para ela: riqueza, casamento e maternidade). Seu único projeto genuíno parece ser impulsionar a vida de Lenu, por meio do desejo que esta se torne melhor que tudo e que todos, e fazer com que sua amiga genial chegue aonde nenhuma mulher naquelas condições de pobreza havia chegado. Tal como a boneca que Lila joga no porão do temido Dom Achille, camorrista conhecido por sua “borsa nera”, Lenu tem a sua sorte lançada por meio de sua amiga. Irigaray, filósofa feminista belga, afirma que é preciso aprender a amar a mãe para que se inaugure uma nova fase feminista. A obra de Ferrante compactua com essa ideia e vai mais além: depois de se amar a mãe, é preciso amar também a ambivalente (temida e admirável) amiga genial.

Fonte da imagem de abertura:

https://www.jcnet.com.br/noticias/turismo/2019/12/706627—–a-napoles—————————————–de-elena-ferrante.html

1 comentário em “ELENA FERRANTE: de mãos dadas com Lila e Lenu”

  1. Emília Rafaelly Soares Silva;

    Sua resenha é um convite irrecusável para leitura da obra. Uma explanação banhada de sutis olhares de uma apaixonada pela literatura. Emocionei-me com o trecho: “Lila, em dois momentos, ainda na infância (no porão do temido Dom Achille e durante uma tentativa frustrada de conhecer o mar), toma a mão de Lenu e a carrega para destinos, depositando propósitos mais audaciosos para a amiga.” Somos um pouco das duas personagens ao longo da vida: tomamos as mão de alguém , por vezes, queremos que tomem a nossa mão porque a vida é assim…uma longa estrada de trocas de vivências.

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