Malcolm de Chazal (Ilhas Maurício, 1902-1981) – Série Um Século de Surrealismo / Poetas

| |

Série Um Século de Surrealismo – Poetas, 24
Organização e tradução de Floriano Martins

Malcolm de Chazal (1902–1981). Poeta e pintor. A obra que o situa como uma referência internacional se chama Sens-Plastique, de 1948. Este livro reúne uma espantosa seleção de dois mil pensamentos, aforismos e declarações poéticas. Durante toda a sua vida, Malcolm foi marcado por uma forte influência mística. Embora reconhecido pelos surrealistas, em especial por Breton, ele jamais quis ser identificado como integrante do grupo. Os temas de sua pintura são até certo ponto de natureza naïf, paisagens, pássaros, vegetação etc. O poeta Auden chegou a considerá-lo o autor francês mais original originado do pós-guerra. Seus aforismos eram de uma exuberância excepcional, e não à toa Sens-Plastique é por muitos considerados um livro de culto.


[O OLHO HUMANO]

O olho humano vê cheio e a boca vê vazio. Na mulher a boca vê cheio e o olho vê vazio. “Possuímos” a mulher com o olhar, a mulher nos possui com a boca, tomada de posse dos rostos, comparáveis ao acoplamento bífido dos caracóis.


[SEMPRE SE LEVA]

Sempre se leva algo da própria mentalidade a tudo o que se sente. Sempre pomos algo do cheiro de nossa alma no que nos rodeia. Recriamos os perfumes. O olfato é a melhor fábrica de cheiros e um perfumista de primeira ordem.


[COMO DUAS RETINAS]

Como duas retinas que se viram entre si tão próximas e iludiram uma à outra, na voluptuosidade logo se chega a um estado em que já não sabemos se somos nós ou o corpo do outro que penetramos, como os nervos cruzados perdem o rastro de sua origem. Na ascensão da voluptuosidade morremos progressivamente em nós para ressuscitar em outra. E na descida dos altos cumes do prazer morremos em outra parte para ressuscitar em nós. A voluptuosidade é um ciclo de transposição de vida.


[COMO O FOGO]

Como o fogo, a luz também tem sua “fumaça”, que só desprende a água e o cristal incolor nos quais ela se difunde. A aranha de cristal, a catarata em que arde a luz, desprendem uma luminosidade gasosa, espécie de névoa de claridade com cintilações translúcidas, o que por momentos dá a impressão de um forno de luz que arde no seio da água e do cristal criando efeitos de crescente de luz na massa de vidro que se expande e na massa de água que cai.

No jorro de água que brota, a luz precede o fio de água. Lance uma esfera de zinco com suficiente velocidade ao espaço e ela se dividirá em uma bolinha de luz com uma bolota de zinco a reboque. O brilho se coloca sempre à cabeça do auto-bólido. A estrela fugaz talvez não seja mais do que o brilho de um corpo celeste que vai muito atrás a reboque.


[CORTA A ÁGUA]

Corta a água
Tudo o que queiras
Não encontrarás
Jamais
O esqueleto
O esqueleto do vento
É a vida toda.


POEMAS (seleção)

A última
sensação
do enforcado
é
deixe
seus
pés serem arrancados.


***

O pássaro
que
tem medo
sente-se
enjaulado.


***

A margarida
é
a mais bela
de todas
as roupas de cama.


***

A mesa
adormeceu.
A conversa
a entediava.


***

O galo
tira
a prateleira
quando bica
e a coloca de volta
no choro.


***

O beijo
é o seio
que amamenta.


***

A chuva
manchada
de vento
foi
lavar
os olhos
na lagoa.


***

As nádegas
não têm

Imaginação.

Deixe um comentário

error

Gostando da leitura? :) Compartilhe!