Georges Bataille (França, 1897-1962) – Série Um Século de Surrealismo / Poetas

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Série Um Século de Surrealismo – Poetas, 36
Organização e tradução de Floriano Martins

Reproduzo aqui uma valiosa síntese da relação entre Bataille e o Surrealismo, de acordo com um as palavras do jornalista e editor inglês Erik Empson:

Conforme mapeado no autobiográfico “surrealismo do dia a dia”, o primeiro encontro de Bataille com o surrealismo foi por meio de seu amigo Michel Leiris. Visto por seus efeitos sobre Leiris e como isso os dividiu, a atitude inicial de Bataille é totalmente negativa, embora pareça neste ponto, por seu próprio relato, não um julgamento bem informado. Nas passagens seguintes, onde Bataille fala de seus primeiros encontros com Breton, Artaud e Aragon, ele dá a impressão de estar bastante distante das atividades do grupo e da associação pessoal com sua influência central, André Breton. Não seria correto deduzir disso que Bataille nunca foi um surrealista. Em meados dos anos 20, Bataille estava socialmente envolvido nos círculos surrealistas parisienses, frequentando socialmente tanto a Rue de B… quanto a Rue de Chateaux. Bataille tinha um pé dentro e um pé fora do surrealismo (e ele nunca sucumbiu ao tratar Breton como um semideus, que era o destino de muitos outros participantes infelizes). Esta atitude tornar-se-ia evidente no caso que se seguiu à publicação do Segundo Manifesto Surrealista (último número (n.º 12) de La revolution surrealiste ).

Este manifesto e suas consequências representam um dos pontos baixos do movimento surrealista e da simpatia de Bataille por ele. Lutando para manter um navio firme com a proliferação de atividades vagamente na veia surrealista, em 1929 Breton instigou uma espécie de expurgo, expulsando e excomungando aqueles que ele sentia que haviam se desviado dos princípios centrais do movimento. Buscando por meio da exclusão renovar a identidade interna do grupo, Breton, junto com muitos de seus antigos colegas mais próximos, alvejou Bataille no ataque e criou a ocasião para uma competição de lançamento de merda totalmente exposta que duraria alguns anos.

Seria muito fácil ver na disputa que se seguiu, apenas uma rivalidade amarga entre um Breton louco por poder, moralista e dogmático, de um lado, e, do outro, a figura imoral, ciumenta e intelectualmente superior de Bataille. Nessas trocas em que Bataille é acusado de uma fascinação mórbida por todos os pontos baixos da existência e Breton é acusado de ser um padre (e um boi entre outras coisas), de perpetuar uma religião e, finalmente, de ser um idealista: há também, por baixo do fedor da batalha, por assim dizer, o desenvolvimento das diferenças mais profundas entre o cultista revolucionário e o revolucionário cultista.


O VAZIO

Chamas nos rodearam
sob nossos passos se abriu o abismo
um silêncio de leite de gelo de ossos
nos envolvia como um halo

és a transfigurada
meu destino te rompeu os dentes
teu coração é um soluço
tuas unhas encontraram o vazio

falas como o riso
os ventos alisam teu cabelo
a angústia que o coração oprime
precipita tua zombaria

tuas mãos detrás de minha cabeça
não agarram senão a morte
teus beijos rentes não se abrem
senão à minha pobreza de inferno

sob o sórdido baldaquim
de onde pendem os morcegos
tua maravilhosa nudez
não é mais do que uma mentira sem lágrimas

meu grito te chama no deserto
para onde não queres vir
meu grito te chama no deserto
onde se cumprirão teus sonhos

tua boca selada à minha boca
e tua língua em meus dentes
a imensa morte te acolherá
cairá a imensa noite
então terei feito o vazio
em tua cabeça abandonada
tua ausência estará nua
como uma perna sem meias

esperando o desastre
em que se extinguirá a luz
eu serei suave em teu coração
como o frio da morte.


[ATÉ AS BOTAS NOS OLHOS]

Até as botas nos olhos
até as lágrimas do barro
até as mãos inflamadas de pus
conduz o caminho do desafio

dos longos estertores da tumba
onde assobiou uma morte sem ar
e da ausência de esperança
nasce a estrela da nuvem


[SONHAVA ALCANÇAR A TRISTEZA DO MUNDO]

Sonhava alcançar a tristeza do mundo
na beira sem esperança de um estranho pântano
sonhava com espessas águas onde recobraria
os caminhos perdidos de teu beijo profundo

senti entre minhas mãos um animal imundo
que escapara da noite de uma selva de espanto
e soube que era o mal de que tu morrias
o que entre risos chamo a tristeza do mundo
uma luz louca um fulgor de estrondo
um riso libertando tua extensa nudez
um imenso esplendor ao final me iluminaram
e vi a tua dor como uma caridade
irradiando na noite a extensa forma clara
e o grito de tumba de tua infinidade.


ORESTIA

Orestia
orvalho celeste
cornamusa da vida

noites de aranhas
de inumeráveis obsessões
inexorável jogo de lágrimas
oh sol em meu peito lenta espada da morte

descansa sobre meus ossos
descansa o relâmpago és
descansa víbora
descansa coração meu

os rios do amor se tingem em sangue
os ventos despentearam meu pelo de assassino

Fortuna oh pálida divindade
riso do relâmpago
sol invisível
retumbando no coração
fortuna desnuda

fortuna de cumpridas meias brancas
fortuna de anágua de encaixes


POEMA

Minha língua inchada como um pau
Em tua garganta rósea de amor.
Minha vulva é minha carnificina
O sangue vermelho banhado de esperma
O esperma nada no sangue.
Em minhas meias de cor malva um perfume de maçã
O panteão do pau majestoso
A bunda de cadela aberta
À santidade da rua.
O amor peludo de minha perna um panteão de esperma
Durmo a boca aberta à espera
De um pau que me afogue
De uma esporrada enjoativa de esporrada pegajosa.
O êxtase que me enraba é o mármore
Do cacete manchado de sangue.
Para me entregar às pombas
Pus
Meu vestido que parte a alma.

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