5 Poemas de Lauren Mendinueta (Colômbia, 1977)

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Curadoria de Gladys Mendía | Tradução de Nuno Júdice

Lauren Mendinueta (Colômbia, 1977). Poeta, ensaísta, tradutora e professora universitária. Autora de doze livros, a sua poesia tem sido traduzida para seis línguas e publicada em vários países, sendo considerada uma das poetas mais prestigiadas da sua geração na Ibero-america. Ganhou quatro prémios nacionais de poesia no seu país e o Prémio Nacional de Ensaio e Crítica de Arte do Ministério da Cultura da Colômbia. Em Espanha recebeu os prémios internacionais César Simón por Del tiempo, un paso e Martín García Ramos por A Vocação Suspendida. É tradutora de autores portugueses como Ana Luísa Amaral, Maria Teresa Horta, Nuno Júdice, José Luís Peixoto, Fernando Pessoa e outros. Vive em Lisboa desde 2007, nesta cidade realiza um intenso trabalho de divulgação da poesia Ibero-americana em Portugal e da poesia portuguesa em Espanha e na América Latina. Partilhamos uma selecção de poemas de Vivir tão por dentro (Lisboa, 2024), o seu mais recente livro traduzido por Nuno Júdice.

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A poesia de Lauren Mendinueta combina duas características que, à partida, parecem opostas: a clareza da sua linguagem e a complexidade das questões que nos coloca. Não é uma poesia que deixe indiferente o leitor, antes o faz sentir o peso das interrogações essenciais do mundo e da vida. O que é permanente e o que é transitório, o tempo nas suas variáveis, e sobretudo a forma como as palavras revelam um rosto real no espelho de cada poema, são algumas das variáveis que  combinam, como num painel, as imagens do que somos. Lendo-a vamos encontrando as múltiplas referências que correspondem a metamorfoses no decurso dessa procura constante de uma harmonia com as condições da existência. Entre a infância e o presente, passando pelos lugares, leituras e experiências que a formam, temos uma escrita que se identifica com as múltiplas referências a uma realidade que nunca se afasta da familiaridade com o mundo concreto. É este total domínio da sua poética que conduz esta fascinante viagem em que nunca perdemos de vista o belo território que a  poeta nos ajuda a descobrir.

NUNO JÚDICE


A MINHA VIZINHA
 
Minha vizinha é poeta e vive só.
As paredes que nos separam 
são finas como folhas de papel.
Cada manhã ouço-a caminhar 
pelo seu longo corredor 
arrastando versos mudos,
quase consigo ouvir o gesto de sua mão 
quando a colherinha dá voltas no café.
Pelas tardes minha vizinha levita sobre o seu longo corredor.
Consigo ouvir a gravidade do seu corpo,
os gestos da sua mão 
enquanto escreve um poema iluminado.
Nunca vi o seu rosto, 
está sempre enterrado num manuscrito.
Na outra noite bati à sua porta com o meu punho fechado.
Várias vezes bati imitando o pulsar de um coração.
Vagarosa abriu-me a ombreira da porta
e via-a transformar-se em estátua no fundo do corredor. 
Não quis perturbar o seu sonho de compaixão. 
Às escuras e em bicos de pés limpei o pó da sua casa, 
purifiquei o seu banho, dei brilho à sua cozinha, pus a sua mesa. 
Depois fechei com delicadeza a porta 
e regressei ao meu livro.
 
*****
 
 
UM MUNDO NOVO
 
Antes. Depois. Agora. Quando?
Vou caminhando entre cadáveres. 
Não foi fácil habituar-me a viver.
Rodeio-os com meus braços e escapam-me.
Tinham nomes de família,
                  méritos, sonhos, 
fizeram planos para o próximo verão,
possuíam o talento das tormentas,
                  a sua vida.
À minha volta, nus no solo, 
meus amigos e amigas vivem o seu sono eterno.
Estamos reunidos, a festa começa.
É tempo de ressuscitar.
Hoje é o novo dia. 
                                                     Hoje é o mundo novo.
A algaravia dos sinos fúnebres
não é sonho,
o seu som fora do real
acorda os ciprestes profundamente adormecidos. 
Estou sentada no meio desta desordem de corpos.
No coro da igreja os eunucos cantam jubilosos 
o mistério da ressurreição da carne.
Gosto da melodia, mas não da letra da canção,
                    e finalmente enforcou-se Judas, 
cantam os eunucos com voz aflautada.
A quem culparemos pela nossa fragilidade?
O mundo agoniza.
 
Deixei a máscara no altar. 
Vesti o meu traje vermelho-escuro de poeta. 
Calcei as sandálias de pele de cordeiro. 
Bailar, 
                   bailar, 
                                    bailar.
Ainda ficamos com tempo para a algaravia e o luto.
A morte chama com os seus sinos. 
Havia um velho deus no mundo antigo.
Havia um novo deus no mundo novo.
Devem ter morrido ambos e não o soubemos.
 
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ROTINA DE ACORDAR
 
Acordamos e o ritual começa.
                 Outro dia sem sol.
Pedes-me que volte a fechar a cortina. 
Não suportas a cor sol-de-sombra que entra no quarto. 
Mais tarde, junto dos vasos,
um raio atravessa as pétalas da margarida.
                  Será real? 
Vemos o sol de hoje ou um resplendor de outros anos?
 
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TELEJORNAL
 
Matar-me-ia em março se acreditasse em tudo o que dizem os noticiários. 
Eu sei que há navios nus que passam pelo rebordo do mundo
ansiosos por ancorar o seu desejo em mares mortos.
Soube que uma sirene de fábrica 
enlouqueceu de amor um homem vulgar
e uma senhora de muita idade 
anunciou que consegue ver o Céu na meia-lua das suas unhas.
Nisso acredito, mas não em tudo o resto.
Se o medo não existe onde não existe o ser
então é suficiente apagar o ecrã.
Os museus estão fechados, mas abriram umas salinhas virtuais 
onde é permitido fumar e tirar fotografias com flash. 
Com presteza estamos adquirindo costumes estranhos
como o ordena o novo Rei.
Todas as tardes os meus vizinhos vão às suas varandas e aplaudem. 
 
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QUE NÃO TE FIRA UMA PALAVRA  
 
Uma palavra obscura pode ficar zumbindo 
dentro do coração.
Olga Orozco
 
Podes partir uma palavra em duas.
Podes ouvir o rangido da separação.
Podes desmembrá-la, estripá-la, degolá-la.
Podes conservar uma parte e atirar fora a outra 
como se atira um seixo ao lago.
Podes arrancar um pedaço de palavra com os dentes.
Podes mastigá-la até que não fique nenhum ar.
Podes derretê-la como um gelo na língua. 
Podes despenhá-la, arrojá-la, sacudi-la
como se sacode uma mosca com a mão.
Podes espetá-la com uma agulha até sangrá-la.
Podes amordaçá-la, crucificá-la, explorá-la.
Podes abandonar una palavra e pores-te a andar.
 

1 comentário em “5 Poemas de Lauren Mendinueta (Colômbia, 1977)”

  1. Está colombiana é poetiza de ponta, joga com as palavras como com os sentimentos
    Que bom que tenhamos poetiza desse quilate para apreciarmos e aprennder aqui debaixo do quase pouco ou quase nada.
    Muitas graças!

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