Fora do prazo de validade – a poesia é vida sem prazo

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Por France Gripp

Produtos são rotulados com prazo de validade, com o fim de que o consumo aconteça com segurança, ou sua utilidade se verifique conforme pretendido pelo produtor; ainda que o futuro nunca se dê por exato.

O produto fora do prazo de validade está destinado ao descarte, seja como for; o que deverá fomentar a não interrupção da máquina de produção, aquela que, segundo seus donos, não pode parar para sentir, e pensar a respeito das relações entre vida e ambiente. Isso, talvez até que tudo se desmonte por si, um dia.

Nesse contexto, a escrita literária está também contemplada com o caráter de produto, e escritores são enquadrados como produtores de objetos culturais subordinados às leis de mercado. Assim, subjetividades que poetas e ficcionistas convocam ao escrever, e toda a contribuição que isso possa oferecer aos leitores, parece importar menos que atender o que alguns publishers prescrevem como demanda do público leitor. Além disso, como se fosse um mero detalhe, cada vez menos se lê no país.

Os escritores, cedo experimentam alguma desesperança de verem seus escritos em mãos leitoras, dadas às dificuldades de inserção e divulgação de seus livros, na disputa pela atenção em livrarias e outros espaços. Nesse cenário de enquadramentos, podem acontecer manifestações de rebeldia, conforme se nota na poesia de Ana Paula Dacota.

Fora do prazo de validade põe em evidência certas situações no mundo livro, apontando-as como limitadoras e restritivas, especialmente para jovens escritores. O título e o texto da primeira página funcionam como advertência e orientação aos leitores – “Modos de ler” – alegando que, a esse discurso poético, não interessa atender expectativas conforme um pensamento hegemônico e predefinido.  

Assim, grande parte dos poemas de Dacota tematizam a escrita e aspectos problemáticos da publicação, relacionando-os a figuras centrais na intermediação livro-leitor – como o editor, o crítico e o livreiro. Por isso, uma interlocução irônica acontece no rodapé das páginas, local inusitado para o tipo de crítica provocativa:

“muito editor é vigarista”; “este poema traz elementos que podem incomodar a comunidade de editores; já a dos fascista e os neo-pens vão querer fazer um churras de você” (p.21); “os críticos não merecem ser exaltados” (p.22).

O clima nesses diálogos é tenso, e evidencia rejeições que sempre podem impactar negativamente, quaisquer ilustres escritores desconhecidos: “a livraria que cobra 40%” (…) “na pequena fila para autógrafos/ em cada rim um tempo investido” (p.25); “depois vem a dor de cabeça para fazer o acerto do estoque de livros” (p.26).

Nessa lógica, há motivos para que, ao invés de suprimido, o verso tachado seja exibido no poema: “no preâmbulo o crítico/ no crítico o olhar prismático” (p.22).

O desconforto da poeta parece atingir um clímax, e a intrincada conexão autor-escritor-pessoa física faz emergir versos que podem ser lidos como expressivos depoimentos. Por exemplo, no potente poema “a desilusão da poeta”: “Não agrado os influentes/ digo não às falsidades (…) meia dúzia de fãs/ elogiam meus versos (…) por que diabos insisto em escrever/ se às vezes mal tenho o que comer?” (p.31)

O destemor que parece autobiográfico, desvela seu contrário, isto é, a mescla de temor e drama que acomete algumas mulheres contemporâneas:

“coragem / escrevo noite e dia/ da arte sou artivista/ daqui de dentro/ só nascem livros/ queria ter parido gente (…) mas a máquina capitalista/ trituradora de sonhos / criadora de demônios / plantou medo (…) talvez em algum momento (…) a coragem arrebata meu desejo/ e do ventre venha um rebento” (p.20).

A coletânea de poemas de Fora do prazo de validade aborda de modo interessante a relação com o mundo virtual, como em “cyber safari”. O exotismo do título aponta o espaço onde conflitos se repetem insolúveis, tal qual na vida fora das telas: “nas savanas digitais/ avatares digladiam (…) “o cerne dos significados/ ferido sangra/ quase morre(…) onde está o resgate/ para salvar a verdade e a ética?” (p.35).

Ainda: “estou exausto de tantas telas (…) tudo é só brilho e glamour/ nas redes sociais/ sorrisos plastificados (…) os corações se perdem/ e o cansaço reina” (p.42)

O livro de Dacota, que se apresenta transgressor até certo ponto, tem uma linha lírica que se ata a uma tradição literária para qual o “prazo de validade”, não existe. Ou seja, a poeta convoca Carlos Drummond de Andrade e João Guimarães Rosa, desde a primeira página. Esses autores canônicos surgem como portos de recorrência seguro, sob cuja influência lírica alguns poemas poderiam ser lidos.

 O lirismo de Ana Paula Dacota desponta de várias maneiras, por exemplo, em belos versos em que o forte conteúdo imagético quase dispensa a conexão sintática: “outonada/ outonear/ dobrar esquinas/não mais desperta/ nenhum mistério/ lagrimar/ lembrar dobrado/ do amor não-logrado/ numa tarde um beijo/ que nunca teve bis/ desenterrar o enterrado/ a dor do escritor” (p.53)

Ou no poema “nadanada”, de tema atualizadíssimo: “sempre dizes sim/ dizer sim é sua sina/ ensinada assim – de sim em sim/ chegaste aqui/ se nada colhes – nadanada – menina levada / sempre a fim – de seres afins/ partes do nada -fim” (p.59)

Um livro de poemas é um caminho vivo, e Fora do prazo de validade tem qualidades da vida vivida na atualidade; em sua heterogeneidade e humores intensos, mais do que os suaves. Que haja lugar para ele nas prateleiras dos leitores!


DACOTA, Ana Paula. Fora do prazo de validade. São Paulo: Libertinagem, 2024 Ilustrações Sanzio Marden.76p.

Francirene Gripp de Oliveira – escritora, professora de letras, mestre em Estudos Literários (UFMG), publicou os seguintes livros de poesia:Todo Instante Pulsa Todo,  Coração Incendiário, Vinte Lições, Eu Que Me Destilo e Trililili Paralela (poesia infantil). E as obras narrativas: As aventuras de Bera Titan (infanto-juvenil) e O rei dos imóveis (novela adultos).

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