SELA | Uma imensa abelha me subjugou! Um ensaio pictórico

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Por Maria Selenir Sela

Prólogo

O ensaio a seguir foi escrito em junho de 2020, em plena pandemia, experiência traumática que atingiu toda a humanidade e nos ensinou que somos vulneráveis. Neste momento, quase cinco anos depois, retomo o texto então escrito, acrescentando a reflexão em epílogo.

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No isolamento social meu olhar se ajusta aos limites do muro, no meu jardim, espaço colorido, vivo. Percebi na contemplação que ali há ritmo, intervalo, harmonia, contraste na forma em que as vidas crescem, se acomodam, se associam e cooperam; elas têm sua lógica no espaço de que dispõem. A percepção dos detalhes permite aprofundar, e também ampliar, a consciência estética do que acontece próximo de nós, e principalmente o fato de que existe uma estética na vida dos bichos e plantas.

Se está sendo um desafio, para mim, ficar em casa num espaço reduzido, também o é pintar em suporte menor, pois costumo pintar em grande escala. Como um retorno a mim mesma, entro no meu jardim: um espaço introspectivo e uma plataforma de ensaio para o relacionamento social, agora com bichos e plantas, e considero que devem ter sido, também, um exercício de introspecção os jardins cultivados, em seus momentos e lugares, por artistas como César Manrique, Claude Monet, Frida Kahlo, Jacques Majorelle, Mary Mattingly. O isolamento social pode ser a oportunidade de ampliarmos a visão, a consciência. Agora estamos no intervalo, este tempo que sempre nos faltava para olhar o que está próximo; planta, bicho, casa, o outro. Podemos cultivar um olhar mais cuidadoso, mais demorado, com mais senso e sentido de cooperação. E quem sabe, até, depois da pandemia revermos o próprio gesto, o que ele tem sido nesse espaço menor, e redimensionar a importância das coisas para uma melhor adaptação nossa à realidade existencial – falando de bioempatia, mesmo, de sentir-se parte de um sistema vivo. E não sempre da forma dominante e avassaladora como temos feito.

Percebo, diante do isolamento forçado, que a pandemia que colocou em xeque a sociedade contemporânea planetária – pois não sabemos o que vai acontecer, o que poderemos fazer no próximo mês – me possibilitou a prática do exercício de gulliverização que o filósofo do imaginário Gilbert Durand trata em As Estruturas Antropológicas do Imaginário (1997) – uma classificação antropológica das imagens com base em arquétipos coletivos que ele agrupa em dois regimes do imaginário: o diurno e o noturno. Durand considera a imagem no seu caráter simbólico e aplica o trajeto antropológico, um dispositivo para o estudo da imagem que abarca tanto a subjetividade do ser quanto os influxos do meio. Nessa obra, concretamente dentro da estrutura do regime noturno místico da imagem, o autor apresenta os símbolos que caracterizam o matriarcado (o retorno à mãe, o retorno à terra), os processos de miniaturização ou gulliverização (a valorização do átomo, a intimidade da substância); aparecem a terra, a água, o movimento da descida, a eufemização (a queda se torna lenta descida); defende que o átomo, essa porção mínima, é capaz de promover as transmutações mais importantes; que o atomismo é um processo de gulliverização e, assim como a alquimia, é substancialista.

A seguir cito uma passagem da obra referida:

[…] os processos de gulliverização não passam de representações por imagens do íntimo, do princípio ativo que subsiste na intimidade das coisas. O atomismo — essa gulliverização com pretensões objetivas — reaparece sempre, mais cedo ou mais tarde, no panorama substancialista, ou melhor, uma teoria dos “fluidos”, das “ondas” escondidas e constitutivas da própria eficácia das substâncias. […] Porque é a interioridade “superlativa” que constitui a noção de substância. “Para o espírito pré-científico, a substância tem um interior, melhor, é um interior”, e o alquimista, como o poeta, só tem um desejo: o de penetrar amorosamente as intimidades. Esta é uma conseqüência do esquema psíquico da inversão: a intimidade é inversora. Todo invólucro, todo continente, nota Bachelard, aparece com efeito como menos preciso, menos substancial que a matéria envolvida. A qualidade profunda, o termo substancial não é o que contém mas o que é contido. (DURAND, 1997, p. 257)

As próximas linhas expressam de modo subjetivo uma vivência que relaciono com os conceitos propostos por Durand.

Numa das incursões pictóricas pelo jardim durante estes dias de isolamento, visitando o mundo dos insetos e das pequenas plantas, fui subjugada por uma abelha! E ela me diz que, apesar da séria ameaça de extinção, ela é, sim, imprescindível para a continuidade da vida de várias espécies no planeta: ela produz vida, ela é responsável por mais de 70% das culturas alimentares globais que a humanidade consome – é verdade o que a ONU News publicou (2020) – e defende que elas são fundamentais para a segurança alimentar e para a conservação da biodiversidade! A espécie humana está no planeta há apenas 350 mil anos, enquanto que as abelhas estão aqui desde 100 milhões de anos atrás. Quando voltei do jardim estava impressionada com a grandeza daquele inseto. Que gigante!

Elaboro minha visão de mundo através da pintura, então comecei a investigar com as cores que fenômeno era este de meu entorno gigante, meu jardim que se tornou imenso, e a abelha também. Penso que os pintores pré-históricos tinham uma visão mais acertada quanto à importância do indivíduo humano no planeta, pois nos representavam em poucos traços, em figuras com simplicidade e pouca importância aparentes diante de animais majestosos nas paredes das cavernas.

Também me parece que no romantismo nórdico os artistas pintores redimensionaram a presença do indivíduo ante a Natureza. Por exemplo, na pintura Monge junto ao mar (1809), de Caspar David Friedrich (ROSENBLUM, 1993, p. 16), o pintor ilustra o ser humano contemplativo, no silêncio e na quietude, imerso numa paisagem imensa, engolidora, o indivíduo impotente diante da natureza. Em momentos de crise, quando o cacique é tornado curumim, Friedrich e outros pintores românticos defendiam um retorno à natureza.

Esta excursão ao meu jardim desperta em mim o desejo de que a sociedade contemporânea possa considerar amorosamente a intimidade das pequenas vidas no meio ambiente ao seu redor e se descubra não como proprietária exterminadora e agressora, mas sim como parte do sistema vivo, como notou Bachelard nas palavras de Gilbert Durand: a essência, a profunda qualidade, a substância não é o invólucro, o dominante mas sim o que é acolhido. A qualidade profunda está no que é contido.

Se há esperança, eu a vislumbro entre as folhas: que a superação desta crise da sociedade humana possa germinar da nossa aceitação, primeiramente, da vulnerabilidade humana; em segundo lugar, da inconsequência e truculência de nossos gestos em direção aos outros seres do meio ambiente; depois, da confiança na sabedoria e no senso de equilíbrio natural da vida que até mesmo os pequenos insetos expressam; e, por fim, da nossa aceitação de que é possível nos sentirmos parte do sistema vivo que é o planeta, com todos os biomas, e de sermos acolhidos por este nosso continente maior – quem sabe como filhos pródigos? – perfazendo o caminho do eterno retorno,  segundo Mircea Eliade: “Como Hegel observaba con noble suficiencia, nunca ocurre nada nuevo en la naturaleza” (2001, p. 97). Porque tudo se repete num eterno retorno: os dias, as estações, nascimento, crescimento e morte, ascensão e queda das civilizações.

Florianópolis, junho de 2020.

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Epílogo

Na pós-pandemia, quatro anos depois de ter escrito esse ensaio, me parece adequado fazer algumas considerações. Retomando a conclusão, também retorno à reflexão.

A experiência relatada aconteceu no Jardim Sebastião, que construí ao longo de vários anos na casa em que morava, em Florianópolis. O nome do Jardim foi uma homenagem ao meu pai, que amava plantas e bichos; O destino do Jardim Sebastião, local dos meus devaneios na Ilha de Santa Catarina – Florianópolis, chegou, por um lado, urbano, previsível e melancólico: assim que eu saí da casa e mudei o atelier pra Brasília, o proprietário cimentou o espaço para adaptar o local para fins comerciais. Não sobrou nenhuma planta, nenhuma rosa, os insetos, abelhas e pássaros que ali grassavam/acorriam para interagir com flores, ervas aromáticas e um maracujazeiro produtivo não encontraram mais nada além de cimento. Por outro, seu destino foi vivaz e esperançador: antevendo o que viria a acontecer, distribuí as plantas do Jardim, mais de quatrocentas mudas, para amigos e vizinhos. Portanto ele foi expandido, multiplicado e espalhado pela cidade e pelo bairro. Esse movimento, depois de realizado, me lembrou dos mitos cosmogônicos do deus sacrificado de algumas sociedades matriarcais, agrícolas, onde ele é assassinado violentamente, esquartejado e tem distribuído cada parte de seu corpo a cada indivíduo da população, assim passando a viver de modo pleno e revivido na própria sociedade. Joseph Campbell (2018) é quem conta esse mito, comum no Sudeste Asiático, nas Ilhas do Pacífico e nas Américas sobre sacrifícios nas primeiras culturas agrícolas:

Era um tempo onírico que fluía, indiferenciado, até que num certo momento – o momento final – acontece um assassinato. Em algum dos mitos, o grupo todo trucidava a vítima. Em outros, o ato era cometido por um indivíduo contra outro. Mas em todos eles o corpo era retalhado, os pedaços enterrados, e deles cresciam as plantas comestíveis que sustentam a vida humana e seu mundo. Nós vivemos, por assim dizer, da substância do corpo do deus sacrificado. p. 21.

Desta maneira mitológica se originaram o milho, a mandioca, o coco, o inhame, o açaí, o guaraná e outros.

Sai do meu jardim, da minha casa, durante o isolamento, em 2020, diretamente para a Capital do Brasil, outro bioma, ao qual sigo me adaptando. Em Brasília tive o prazer de conhecer pessoalmente, em espaços tais como o Palácio Itamaraty,  jardins de Roberto Burle Marx ­– uma de suas pinturas, já que ele tratou seus jardins como tela. E são jardins espetaculares: ingressar neles é entrar numa obra de arte. Ele, em um claro sinal de implicação com sua terra, usa vegetação nativa na composição.

Em 2024 fiz um retorno à ancestralidade da pintura no Brasil e visitei um importante sítio de arte rupestre no norte de Minas Gerais, o Parque Nacional Cavernas do Peruaçu, criado em 1999 pelo IBAMA, um sítio arqueológico que teve ocupação humana desde há mais de 12.000 anos. Ali podem ser apreciadas centenas de pinturas sobre grandes paredões. Os temas variam de abstratos a figurativos (embora essa terminologia ocidental e contemporânea possa resultar anacrônica) da flora, fauna e figura humana. As cores são muito ricas, realizadas com pigmentos naturais, e as cavernas são de grandes dimensões, o que faz o visitante sentir-se muito pequeno e imaginar que aqueles locais de expressão artística já foram locais de grande trânsito e circulação humana.

Quanto ao imperativo da pandemia de fazer a população humana desacelerar, foi também, igual a peste, passageira, já estamos acelerados e grandes como antes, e tão negligentes com a vida como antes.

A adaptação de trabalhar em suportes menores, no processo criativo, foi válida para o domínio técnico das dimensões. Ainda assim, prefiro mais espaço para a expressão. E o meu tema após a pandemia circula mais entre flora e fauna, percebo que tem mais importância para a vida atual, estamos mais implicados, no meio ambiente, do que costumamos pensar ou desejar. Uso o termo “implicados” no sentido que Ailton Krenak dá à essa visão ancestral sobre a existência, feliz e oportunamente recuperada para a contemporaneidade:

Essa liberdade que tive na infância de viver uma conexão com tudo aquilo que percebemos como natureza me deu o entendimento de que eu também sou parte dela. Então, o primeiro presente que ganhei com essa liberdade foi o de me confundir com a natureza num sentido amplo, de me entender como uma extensão de tudo, e ter essa experiência do sujeito coletivo. Trata-se de sentir a vida nos outros seres, numa árvore, numa montanha, num peixe, num pássaro, e se implicar. A presença dos outros seres não apenas se soma à paisagem do lugar que habito, como modifica o mundo. Essa potência de se perceber pertencendo a um todo e podendo modificar o mundo poderia ser uma boa ideia de educação. Não para um tempo e um lugar imaginários, mas para o ponto em que estamos agora.

A preservação das abelhas polinizadoras se faz necessária e urgente e a principal medida é deter o uso de agrotóxicos nas plantações. Porém, o Brasil continua aumentando o uso segundo artigo no Jornal da USP: “No período de 2003 a 2021, o Brasil obteve um crescimento no consumo anual de agrotóxicos de 392%, o que coloca o país na primeira posição entre os maiores consumidores desse tipo de composto” (PAZ & REZENDE, 2023). A humanidade, com essa prática negligente e egocêntrica, se constitui como o algoz do meio ambiente, sem perceber que, sendo parte dele o meio ambiente pode muito bem lhe sobreviver, mas não o contrário. A consciência ecológica é fundamental para não sermos passageiros como uma peste.

Brasília, janeiro de 2025.


Uma nota autobiográfica

Com cinco ou seis anos de idade, descobri a terra como pigmento e potencial expressivo, essa poética foi tema da minha monografia no curso de artes plásticas na UDESC (Universidade do Estado de Santa Catarina) 2008. Exposição individual com pinturas de grandes formatos Mater’s no MASC (Museu de Artes de Santa Catarina) 2009, a convite do diretor, artista, historiador e curador João Evangelista de Andrade Filho. Desenvolvi a marca de tintas para pintura artística Sela Tintas de Terra®. A primeira exposição coletiva em Cambuquira em MG, 1998. Com várias exposições nacionais coletivas e individuais como no Museu de Arte de Blumenau SC, na UFU Universidade de Uberlândia MG, MASC Museu de Arte de SC, Salão de artes em Vinhedo SP, Museu Nacional dos Correios DF, Galeria Fernanda Curado DF, Galeria MD’Azevedo, DF, Galeria Cia Arte Cultura, SP, Painel  de pintura coletivo no Ministério da Cultura DF; E internacionais como, pintura em Galerias Fivars Espanha, pintura Alanus University Bonn/Alemanha,  Cerâmica em Colégio de arquitectos, Monterrey/México, pintura e livro de artista em 2024 Galeria da Biblioteca Cívica em Cambiano – Torino, Itália e Galeria Imaginarte, Barcelona.
Minibio literário: Colaboração na antologia “Por trás das Pinceladas”, com um poema /ekphrasis da pintura de Vincent Van Gogh “Vinhedo Vermelho” de 1888. Poema Subterrânea publicado em Revista Trama Bodoque, Nº 186-2023. Antologia de poesia pela Editora Tenha Livros 2023. Tradução intersemiótica de uma poesia de Delmira Agustini (uruguaia, séc. XX) com Pablo Cardellino Soto em Revista de Letras da UFC Universidade F. do Ceará 2023. Ilustração de capa do livro de poesia Tigre sin alas- de Paco Manhães, Argentina, no prelo. Tradução de livro espanhol para português, com Pablo Cardellino Soto, Ética bixa, de Paco Vidarte da N-1 edições, 2019. Ilustração Escrita Criativa, Mini-contos pela PUC-MG de Filipe Alverca 2020. Publicação coletiva livro 7º Conto e Poesia – Sinergia – Florianópolis, 2011 e 6º Conto e Poesia – Sinergia – Florianópolis, 2008. Publicação coletiva Sofá-Caixa pela Udesc Universidade do Estado de Santa Catarina, 2006.

Maria Selenir dos Santos – Sela, janeiro de 2025

Referências

CAMPELL, Joseph. Deusas: Os Mistérios do Divino Feminino. 3.a ed. Tradução de Tonia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2018.

DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário: Introdução à arquetipologia geral. Tradução de Hélder Godinho. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

DURAND, Gilbert. The anthropological structures of the imaginary. Translated by Margaret Sankey & Judith Hatten. Brisbane: Boombana Publications, 1999.

ELIADE, Mircea. El mito del eterno retorno. 1a ed. Traducción de: Ricardo Anaya – Buenos Aires : Emecé, 2001.

FRIEDRICH, Caspar David. Monje junto al mar (1809). Pintura. In: ROSENBLUM, Robert. La pintura moderna y la tradición del Romanticismo nórdico: De Friedrich a Rothko. Madrid: Alianza Editorial, 1993.

ONU News. Brasil e Portugal são analisados em relatório da FAO sobre polinizadores. 9 jun. 2020. Página web. Disponivel em <https://news.un.org/pt/ story/2020/06/1716152>. Acesso: 15 jun. 2020.

PAZ, Juliana Vieira; REZENDE, Vanessa Theodoro. Agrotóxicos no Brasil: entre a produção e a segurança alimentar. Jornal da USP. São Paulo, [s.a.], [s.n],  11 dez. 2023. Artigos, [s.p.]

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