A transformação como sul: uma leitura de Mundos de uma noite só

| |

Por Ernesto Vaz*

 “Desde pequeno repito o que não entendo. (…). Achamos divertido o que não conhecemos; gostamos do que não sabemos para que serve.” Começo esta resenha do Mundos de uma noite só (Faria e Silva, 2020), romance de autoria da escritora Renata Belmonte, citando esta passagem de Ricardo Piglia, no seu Anos de Formação. Porque estou certo de que a literatura tem o poder de transformar. Explico-me: depois da leitura de um bom livro, devemos ter a capacidade de perceber que não somos os mesmos. Ganhamos novas percepções, mudamos de opinião, absorvemos ideias, ultrapassamos fronteiras. Com o tempo, vemos como usar esta transformação da melhor forma. E a experiência a partir das repetições propostas por este intenso livro, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, nos permite uma compreensão profunda do nosso não saber e faz com que, ao fim de sua leitura, quando da descoberta de alguns dos enigmas fundamentais que rondam as personagens do livro, nos descubramos também um outro, alguém já livre dos muitos estereótipos que costumam formar nossa percepção sobre a experiência humana.

Desde criança, sou ávido leitor. O meu padrinho costuma contar com orgulho que o presente com o qual eu mais me emocionei, na infância, foi uma caixa cheia de livros da coleção vagalume. Deste modo, cresci lendo. E, no romance de formação que se constitui o Mundos de uma noite só, algo semelhante ocorre com a personagem principal. Enquanto um sujeito que não é capaz de dizer sua dor, ela passeia pela grande literatura como um modo de encontrar alguma segurança, se agarra nas palavras dos outros para construir um espaço estável para si. Assim, as referências literárias presentes, ao longo do texto, são também bastante sedutoras, desde o seu impactante início com Albert Camus, até Marguerite Duras, que se torna presença fundamental pelo passar dos anos e páginas. Além da beleza narrativa, Mundos de uma noite só é também uma ótima fonte de recomendações de leituras. Assim, como o curioso que sou, busquei, de forma até um pouco inconsciente, identificar as referências literárias implícitas na obra. E esta brincadeira de detetive foi divertida. Vi muitos pontos de contato no livro com o “Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra”, um dos meus preferidos do Mia Couto, também uma saga familiar cheia de conflitos e surpresas. Já escutei que o novo boom latino-americano de literatura, que no passado foi marcado por grandes nomes como Carlos Fuentes, García Márquez e Vargas Llosa, é atualmente terreno ocupado pelas mulheres. Autoras como Renata Belmonte confirmam esta observação. Percebi muitos pontos de encontro, ou talvez dores parecidas, do Mundos com algumas obras das argentinas Samanta Schweblin e Mariana Enriquez, grandes nomes da literatura contemporânea. As mulheres têm muito a dizer e é muito bom poder ter acesso a mais e mais escritoras de altíssimo nível.

As primeiras páginas do romance rapidamente prendem o leitor de forma peculiar, talvez até mesmo estranha, um pouco misteriosa e cinzenta. Este é um dos pontos mais marcantes do livro: a ausência de situações óbvias. As personagens são profundas, densas, complexas, incompletas, surpreendentes e até mesmo contraditórias, ou seja, humanas, dolorosamente humanas. Preciso revelar que, no início da leitura, experimentei um pouco de confusão e me perguntava se eu estava entendendo o que lia. Voltava um pouco, relia alguns parágrafos, mas não encontrava respostas óbvias. O Mundos é uma saga familiar cujas peças não se encaixam imediatamente. Assim como a vida. Cabe ao leitor, ao ser que está vivo, organizar sua experiência, se tornar autor, inventar um sentido. Nada na família que habita o romance é simplório, tudo pede um compromisso de compreensão. A moral comum a tudo destrói, não perdoa a diferença, impossível passar ileso de seus ditos. E, numa existência coletiva nestes termos, sem dúvidas, o desespero ganha contornos próprios e marca destinos. É como diz Tolstói, no seu célebre começo de Anna Karênina: “Todas as famílias felizes se parecem; cada família infeliz é infeliz à sua maneira.”

Já no parágrafo final desta resenha, preciso também ressaltar que a linguagem esmerada da obra reflete o trabalho árduo e doloroso da autora. Cada palavra parece ter sido escolhida com muito cuidado. Cada frase parece estar no lugar certo. Isso sem renegar a importância do enredo, isso como forma de gerar uma narrativa envolvente, algo único e especial. O Mundos tem como contexto um período conturbado da história brasileira e trata, sem recorrer aos panfletos tão comuns na contemporaneidade, de temas muito difíceis. Ele enfrenta e denuncia com coragem questões como o preconceito e o machismo. Sem dúvidas, não há como ser indiferente à sua leitura. E mesmo que ele pareça inicialmente um desafio, é justo no desconforto gerado pelo livro que se encontra o seu potencial transformador. Não se cresce em vão. Não se passa pela condição humana sem dor. Acabo por aqui para não entrar em mais detalhes da trama e não atrapalhar as descobertas e surpresas de ninguém. A experiência deste livro é capaz de nos levar ao sul de nós mesmos. Apenas recomendo que vivam a transformação.


*Ernesto Vaz nasceu em BH e, atualmente, vive em São Paulo, depois de ter passado por lugares como Lisboa, Luanda, Miami e Lima. Organiza grupos de leitura entre amigos e, no Peru, frequentou as oficinas de literatura do autor Jeremías Gamboa. Não é capaz de fazer uma lista de autores preferidos, mas também é incapaz de não mencionar Machado de Assis, Saramago, Vargas Llosa, García Márquez, Rulfo, Amós Oz, Amin Maalouf, Mia Couto, Chimamanda, Agualusa, Paulina Chiziane e Achebe. Em poucas palavras, acredita que a boa literatura é a que derruba estereótipos. Trabalha como advogado e fez mestrado em Direito na USP.

1 comentário em “A transformação como sul: uma leitura de Mundos de uma noite só”

Deixe um comentário

error

Gostando da leitura? :) Compartilhe!