A Música se chama Naná Vasconcelos

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Por Floriano Martins

A CEPE – Companhia Editora de Pernambuco publicou em 2024 o volume Fotobiografia Naná: do Recife para o mundo, sob a organização de Augusto Lins Soares. O músico Naná Vasconcelos (1944-2016) tem o seu espírito amplamente revelado pela lente de fotógrafos como Lizzie Bravo, Itamar Crispim, Franklin Correa, Claude Barouh, Zeca Guimarães, Monica Vendramini, incluindo a cortesia de diversos acervos pessoais e o Acervo Naná, sob os cuidados de Patrícia Vasconcelos, viúva e curadora da obra de Naná. O livro também apresenta textos de Milton Nascimento, Michelle de Assumpção, Renato Contente, Daniel B. Sharp, José Telles e Patrícia Vasconcelos, que finaliza com uma preciosa lição a todos os herdeiros de grandes mestres da arte: Aprendi que manter um legado como o de Naná requer equilíbrio entre grandes projetos e pequenas ações. Cada homenagem, seja uma regravação ou uma exposição, carrega a grandiosidade da obra dele. O que ela diz ser um compromisso seu, deveria ser também de todos os herdeiros: assegurar que a arte dele permaneça eterna e inspiradora. O texto a seguir é uma forma de expressar nosso compromisso, assim como um brinde à publicação desta fotobiografia de Naná Vasconcelos.

A música se confunde com a própria vida, tudo nela é imensidão. Os sons da natureza são também os sons do corpo humano, o dentro e o fora se fundem, todos os sons que a floresta pode fazer nós os deciframos em nosso íntimo e nosso corpo corresponde a cada um, como uma síntese, como os sons de uma criança que ensina a própria alma a crescer. Quando em 1970 Naná Vasconcelos trabalhou com crianças em um hospital francês, a convite do psiquiatra Tony Lainé, observou que elas não o consideravam um músico, e sim a música. Naná recordou que esse momento foi um divisor de águas em sua vida, pois a partir dele concebeu uma nova dimensão para a sua criação. É possível, tanto pelo impacto da recepção daquelas crianças, a afinidade instantânea com seu mundo embriagante e atípico, como também por quem teve acesso aos vários projetos que ele desenvolveu com crianças. Duas décadas depois, já residindo no Brasil, ele criou o ABC das Artes e ABC Musical, com menores carentes em idade de 7 a 10 anos. Naná encontrou nessa meninada o que pode haver de mais gratificante na vida de um criador: aquele portal escancarado entre a vigília e o sonho, a realidade com seus incríveis desafios e a imaginação repleta de maravilhas incansáveis. Deixar essa passagem permanentemente em aberto é uma dádiva. Claro que Naná sempre foi propenso a essas outras vozes, venham do além ou de uma sincronia com diversos mundos. No entanto, com as crianças o que ele tinha diante de si era a perspectiva de traçar paisagens sonoras e visuais que alimentassem uma nova humanidade. Aquelas crianças significavam para Naná um verdadeiro encontro com o milagre. Se ele era a música, elas eram ele, preciosa transmutação de sentidos. Naná Vasconcelos é alguém que veio ao mundo para realizar-se no outro. Era essa a caligrafia de seu olhar, o dialeto de seu riso, sua expressão franca e extensa iluminada por ritmos constantes repletos de significado. Naná Vasconcelos era um símbolo. Não cabe compará-lo a ninguém porque os símbolos existem como a soma de linguagens. São mais do que um credo ou uma altercação do mistério. Os símbolos não relatam, modificam ou comparam. Eles são a essência das relações, modificações ou comparações da existência humana. O pintor Juan Gris disse certa vez: Pode-se inventar isoladamente uma técnica, um procedimento, não se pode inventar do zero um estado de espírito. Quando as crianças identificam Naná como sendo a música, é justamente isto o que se passa: elas o percebem como um estado de espírito.

Quando ouvi Naná Vasconcelos pela primeira vez eu era um garoto. Minha adolescência se passou majoritariamente entre músicos. Frequentávamos a casa de um deles, Ricardo Bezerra, em bairro afastado de Fortaleza, e ali descobri uma capa que me chamou a atenção, do disso Amazonas (1973), que então era considerado seu primeiro disco. O vinil estava em uma caixa que pertencia a Raimundo Fagner, na época já residente no Rio de Janeiro. Fagner assina a produção do disco e a capa reluz o rosto negro de Naná e os afluentes inesgotáveis de seus ritmos. Seus anos europeus lhe haviam dado a distância necessária para fixar uma identidade. Entre uma margem e outra do Atlântico tínhamos dois discos – havia um anterior, Amazonas não era o primeiro –, e a soma deles dava a seu criador um fundo de alma que fundaria algo revelador na compreensão da música brasileira. Algo que os estudiosos ortodoxos não souberam compreender porque observavam com apenas um olho. Naná Vasconcelos nos permitia a visão completa do que éramos, do que somos. O primeiro disco se chama Africadeus (1972). A capa reproduzia praticamente o mesmo rosto do disco seguinte, com uma diferença precisa: em Africadeus os olhos de Naná estavam fechados, abertos em Amazonas. Um passo e cruzamos o oceano, de um lado os compassos estranhos, de outro um ouvido que aos poucos vai se reconhecendo em cada ritmo. Gravado em Paris, o primeiro disco chama a atenção de uma crítica brasileira que na capital francesa era correspondente de O Globo: Não saberia dizer aqui o que mais faz a alma vibrar com aqueles sons – se, pela voz do próprio Naná, nas suas canções de aboio, se o berimbau como fundo e força, se a mistura das vozes – sim, ele junta vozes para fazer sons de instrumentação. Elas ficam atuando como percussão. Naná rege as vozes, que ficam de fundo nas suas cirandas, sambas de roda, como se elas fossem percutidas. É interessante perceber que Nina Chaves se surpreende com as vozes percutidas. Sim, deve ter sido um espanto estar diante daquelas vozes ajustadas a uma inusitada reverberação. O próprio Naná viajava então para o Brasil curioso de como as pessoas reagiriam àquela música.

Por onde passava com aquele protagonismo determinado pelo berimbau, Naná refletia um espanto e uma afinidade. Viagens, amigos por toda parte, o encontro com brasileiros longe de casa, cada vez mais a música evocava seu espírito repleto de sons e ritmos, tanto assombrosos quanto um caudal de maravilhas. Aos poucos ia definindo uma espécie singularíssima de voz do inconsciente que abrange todos os seres. A descoberta de instrumentos ligados a raízes asiáticas e africanas, a sua casa espiritual sempre presente em todos os seus momentos de descobertas do mundo. Na época em que residiu em Nova York dividindo apartamento com Glauber Rocha e o curador cinematográfico Fabiano Canosa, este recorda que Naná andarilhava pela casa conversando com o berimbau, tratando o instrumento como uma extensão de si mesmo. Quando o vemos tocar, o modo como lida com a cabaça, a sensualidade do encontro amoroso entre a varinha e o caxixi, essa voz incrivelmente mágica e singular define o modo de ser de alguém que se descobriu a essência da música. As crianças tinham razão.

Tinham razão Milton Nascimento, Don Charry, Egberto Gismonti, Pat Matheney, uma enxurrada de músicos singulares que a seu lado buscaram uma origem que estava além da biografia pessoal de cada um deles. Naná costumava dizer que em cada estado brasileiro se deu uma África diferente. No encontro com esses músicos todos, o que vemos é uma alteridade sua, um abraço carinhoso, uma aceitação da cultura do outro. Uma vez, ao conversar sobre como conheceu Pat Metheny, Naná revelou:

Fui eu que coloquei voz na música dele. Ele começou a compor pensando em voz por minha causa. Uma vez, eu estava terminando uma turnê com Egberto pelo Japão e o promotor nos disse que dois dias depois iria começar uma turnê com Pat Metheny. Então houve um jantar para a gente de despedida, e aí fomos eu, Egberto, o Pat e a banda dele. Depois do jantar voltamos todos para o hotel, e aí eu comecei a cantar uma música do Pat. Ele parou e disse: nunca vi minha música sendo cantada. Aí passou um tempo, eu fui para Nova York e o Pat ligou para mim, dizendo para eu participar do primeiro disco de Lyle Mays, As falls Wichita so falls, que foi onde cantei pela primeira vez com eles. Aí eles me convidaram para ser da banda, mas eu não podia, pois já tinha o Codona”.

Essa passagem joga com a sedução que Naná Vasconcelos definia, com todo seu espírito, como um dom de transcender todas as seções isoladas da alma humana. Ele costumava dizer: Meu coração bate e já é percussão, o que no Brasil talvez tenha sido confundido como um intuitivo sem base sólida. Longe disto, mas é sempre bom que se diga, a essência da criação artística no Brasil radica nessa alquimia entre o gênio puro, a observação do entorno, o manuseio curioso com várias técnicas. Na música, por exemplo, não teríamos como chegar a espíritos arquetípicos sem a compreensão desse caldeirão de primárias referências. Naná Vasconcelos incansavelmente referiu suas origens. Os bares populares da infância, incluindo o palco que frequentava nos cabarés. Quando chegou ao Rio deu de cara com a Bossa Nova e a Tropicália. Uma biografia dissonante logo o levou a Buenos Aires, Paris, Nova York. Por onde passou sempre esteve a lembrar, sobretudo a si mesmo, que duas vertentes atuavam em seu íntimo como um desafio: seguir os passos de Villa-Lobos no que este compreendia, de modo raro, os sons da natureza, e buscar dar ao berimbau o mesmo cofre de essências que Jimi Hendrix havia dado à sua guitarra. Este era o espírito de Naná. Mesmo quando, de retorno ao Brasil, descobre a maravilha da relação entre música e infância, a vertente esplêndida de um diálogo entre dois mundos, aquele que detém um mínimo de experiência à qual se dispõe arejar a consciência em busca da outra metade, a que desconhece tudo o que tem pela frente.

Todos temos diante de nós um Naná, alguém a quem imaginamos seja o recorte perfeito de nossa identidade. Quando ouvi Amazonas pela primeira vez eu pensei exatamente nisto. A verdadeira vida seria uma experiência impossível de esquecer? Alceu Valença disse que Naná se confundia com tudo aquilo a que se dedicava. Naná era um berimbau. Era uma disposição irrecusável para toda e qualquer experiência sonora. Era seu amor maravilhado por Patrícia Vasconcelos. Ele era a música. Ela era a sua música. Naná conseguiu um feito extraordinário: ser o Brasil. Assim era visto lá fora. O Brasil é uma impossibilidade. Naná deu um jeito de tornar este país possível. É imensa a lista de músicos brasileiros com quem tocou. Sua disposição para doar tudo de si. Anos dedicado a abrir o carnaval de Recife regendo as alfaias. As crianças. O berimbau que se tornou um instrumento clássico. Disse certa vez: Tenho um lado espiritual que se apresenta no que eu toco. Minha música também é muito visual. De volta ao símbolo e sua completude elementar. Naná Vasconcelos propiciou um encontro fabuloso entre todos os ritmos. Lembrou que as dissenções geográficas e mesmo humanas podem ser realinhadas de acordo com um encontro em palco de seus músicos mais representativos. Deixou para nós todos um desafio: se a vida humana é um jogo, então que seja algo revelado no ritmo de nossa alma. Aquelas crianças tinham razão: Naná Vasconcelos não era um músico, era a música.

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