Desde que iniciei minhas leituras sobre Psicanálise, descobri um universo rico para estudar e compreender a complexidade do ser humano e suas demandas emocionais, mas também percebi que muitas pessoas ao meu redor emitem impressões equivocadas sobre o assunto, como opiniões genéricas e até mesmo preconceituosas. Para desfazer essa névoa, vesti minha roupa de entrevistador e procurei a psicanalista Luzia Nolêto para conversar com ela sobre essas questões e outros temas relevantes que ocupam o ofício das(dos) profissionais que se dedicam a estudar o inconsciente. Com vasta experiência prática e leitura sobre o tema, Luzia me ensinou bastante e gostaria de compartilhar essa experiência com vocês. A estrada dela é longa: praticante da psicanálise lacaniana e supervisora clínica. Atende em consultório particular há mais de 17anos. Analista membro em formação pelo FCL-Lagos (Fórum do Campo Lacaniano da região dos Lagos, RJ). Pós em Saúde Mental (UFRJ). Pós em Bioética e Direitos Humanos (Instituto Anis/ ICF). Pós em prevenção e posvenção em suicídio (CDM- Faete). Pós em psicanálise clínica com crianças e adolescentes (Ipog).
Como foi que você iniciou sua trajetória entre a psicologia/psicanálise? Quando uma área se “confunde”, se “mistura” com a outra na sua vida?
A minha formação acadêmica é em psicologia. Psicanálise não é psicologia. No Brasil, há uma tradição de os currículos dos cursos de psicologia conterem uma disciplina de psicanálise que é confundida e tratada até hoje como uma abordagem da psicologia, o que de fato não é verdade. Psicanálise é um campo do saber. Psicologia é outro e com objetos de estudos bem definidos. Psicanálise tem o inconsciente como objeto de trabalho, que é o que marca para sempre a diferença entre os dois campos do conhecimento. A psicologia se ocupa do consciente. Faço formação em psicanálise desde que concluí a minha graduação no curso de psicologia… A formação em psicanálise é permanente. Não há mistura ou fusão entre as duas áreas em minha vida.
Hoje em dia, vivemos uma onda em que todos recebem variados diagnósticos a curto prazo, seja de autismo, TDAH, etc. Como você analisa esse processo?
Sim, atualmente há uma verdadeira enxurrada e popularização dos diagnósticos psiquiátricos. Penso que isso é algo bem característico, um fenômeno contemporâneo de um mundo digitalizado… A cada nova edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, que está na Quinta Edição (DSM-5), a quantidade de transtornos só aumenta. Fazendo uma alusão ao livro “O Alienista”, de Machado de Assis, o DSM-5 e o acesso cada vez mais fácil aos diagnósticos encarnam o Dr. Simão Bacamarte na atualidade. Estamos todos enquadrados de certo modo a algum transtorno psiquiátrico. Diagnóstico é um nome e, para alguns, tê-lo como referência dá uma certa identificação ou mesmo uma amarração para algo subjetivo. Atualmente, também há benefícios que podem ser alcançados a partir de políticas públicas com alguns diagnósticos. Uma questão que se apresenta clinicamente é que por vezes há uma cola de alguns aos diagnósticos, o que dificulta o tratamento. Em psicanálise, diagnóstico tem função clínica para direção de tratamento e não para enquadrar sujeitos em classificações. Um diagnóstico, quando bem conduzido pela escuta do caso clínico por um profissional, pode ser de extrema importância para o tratamento e bem estar de um sujeito, evitando a ação da porção destruidora que cada um possui.
Já presenciei algumas situações em que pessoas não especializadas reduzem Psicologia e Psicanálise a “mesma coisa”, ou seja, acreditam que tanto uma como a outra se igualam enquanto campos do conhecimento. Baseado na sua larga experiência atuando nas duas frentes, como você diferencia a Psicologia da Psicanálise?
Essa é uma questão histórica. Em psicanálise, trabalhamos com o sujeito do inconsciente. Em psicologia, o trabalho é com o consciente, com o EU. A conceituação de sintoma em psicanálise também é diferente da psicologia. Isso, de forma não aprofundada, marca uma grande diferença entre os dois campos do saber. O meu trabalho clínico, enquanto técnica, teoria e prática de tratamento, é pela via da psicanálise e para tal estou em formação permanente. Sirvo-me da psicologia apenas para expedir documentos necessários no ofício, como laudos, declarações, atestados… Para isso, existe um Conselho de Psicologia regulamentador. Portanto, no que se refere a tratamento, não trabalho nas duas frentes.
Nos seus estudos lacanianos, qual teoria você tem dedicado mais tempo nas pesquisas e leituras?
Dedico-me a estudar sobre o corpo e tábua da sexuação (em cartel), amarrações estruturais (segunda clínica de Lacan), clínica contemporânea em psicanálise, formação do psicanalista, sujeitos nos seus limites com a vida. Essas são resumidamente algumas áreas no ensino de Lacan que pesquiso e estudo.
Qual é sua observação sobre a inserção atual da(o) psicanalista no mercado de trabalho? Você acredita que é necessário implantar um curso de graduação ou as formações fora dessa rede institucional são suficientes? Ter apenas ensino superior completo basta para ser um profissional da área?
Ensino superior em psicanálise contraria totalmente as condições da formação de um psicanalista. A formação em psicanálise não se faz em cursos de graduação, como o que há em cursos de psicologia. Nenhuma escola de psicanálise garante a formação de um psicanalista, muito menos um curso superior em psicanálise garantiria. Um psicanalista precisa se provar o tempo todo em seu ofício para sustentar o seu ato. O exercício da transmissão da prática clínica depende da formação do analista… Lacan vai dizer que o psicanalista terá que dar mostração da sua capacidade de ser um passador da potência do ato psicanalítico. Para isso, há um percurso a ser traçado por cada um que se arrisca nesse lugar. A formação se faz basicamente no que chamamos tripé: análise pessoal, estudo teórico e supervisão.
Achei interessante sua fala sobre a constituição do sujeito e o “ideal de completude”. No mundo atravessado pelo boom das redes sociais, qual é sua compreensão sobre o modo como os indivíduos performam suas subjetividades nessa ilusão do “belo”, “perfeito”, através de uma edição da realidade que o mundo virtual proporciona?
Na fala à qual você se refere, numa aula por mim ministrada, eu discorria sobre a importância do estádio do espelho na formação do EU, e é aí que nasce a nossa fantasia humana e narcísica de completude. Atualmente, vivemos um momento em que o imagético ganhou grandes proporções com a amplitude que as tecnologias por meio que a internet nos deu. É importante ressaltar que a ilusão inicial de completude na constituição psíquica de um sujeito é de muita importância. O imaginário tem também essa função de nos colocar como seres especiais. Na atualidade, um dos pontos a pensar é sobre o excesso do uso da imagem em detrimento da palavra, por exemplo. Cada vez mais usamos emojis…, podemos usar filtros em nossa imagem, inteligência artificial, editar textos que produzimos. Ou seja, vamos cobrindo nossos buracos, falhas de algumas formas nesse mundo virtual. Essas possibilidades têm uma relação muito estreita com a nossa eterna ideia de sermos completos, perfeitos e belos. Furar o narcisismo é, para alguns, muito assustador, até desestabilizador. Lembrar que aqui estou usando “narcisismo” como um conceito psicanalítico, que é fundamental na constituição psíquica do sujeito.
A longo prazo, qual avaliação você faz sobre a “uberização” da saúde, onde somos atravessados pelas consultas breves, que não nos escutam o suficiente?
Esse é um tema em que cabe muita discussão, mas infelizmente é um modelo bem contemporâneo o da “uberização” da saúde…, áreas da saúde em que profissionais estão trabalhando atrelados a plataformas que ditam o tempo, o valor do serviço. Isso já chegou pelo menos para a medicina e para a psicologia. A regra básica é “time is money”. Penso que já estamos sofrendo consequências disso, mas a longo prazo são necessárias pesquisas para que algo seja dito sobre o tema.
Em tempos que a saúde mental é tão debatida na sociedade, quais são os desafios a serem enfrentados para democratizar o acesso ao tratamento psicanalítico?
Penso que a saúde mental foi colocada no centro de muitas discussões na atualidade. A mais recente é a nova atualização da lei que determina que as empresas cuidem da saúde mental dos seus colaboradores. Vivemos um mundo pós-pandêmico em que ainda estamos recolhendo os efeitos do que vivemos, e falar sobre saúde mental se faz necessário. Nessa esteira, a psicanálise ganhou muita visibilidade, inclusive se popularizou. Existem psicanalistas trabalhando em várias frentes: hospitais, em atendimento clínico por planos de saúde, em escolas, em instituições públicas e em seus consultórios particulares (em que cada profissional tem sua autonomia para decidir os pacientes a receber para tratamentos).
(Luna Garcia) Para fechar nossa conversa, que dicas você poderia dar para quem tem interesse em iniciar os estudos em Psicanálise e que desafios são enfrentados para atuar na área nos dias de hoje?
Primeiramente, oriento buscar uma escola de psicanálise para construir uma formação. Para tal, indico que se informe sobre a escola com pessoas que já participam dela (saber dos trabalhos, da dinâmica, de como a escola funciona). Participar de cartéis. Lembrar que a formação em psicanálise é permanente, não é pautada em títulos a serem colocados em currículo (estes são de outra ordem). A formação é permanente porque o psicanalista está, como disse Lacan, em provação constante no ofício através da análise pessoal, do estudo teórico, da supervisão, do cartel, dos congressos, na comunidade…, e sustentar isso não é simples. A formação permanente é inegociável a quem deseja se ocupar com a função de psicanalista, o que é diferente de quem só quer estudar psicanálise. A formação de um psicanalista se faz em um percurso de muito trabalho psíquico a partir da própria experiência como psicanalisando. Penso que a formação é o maior desafio para um psicanalista na atualidade, pois há muita “oferta” de “muitas psicanálises”… A construção da formação requer, para além do desejo, persistência e dedicação, investimentos de várias ordens. A formação é um tema que está sendo cada vez mais discutido pela comunidade psicanalítica.