Irene Soria Guzmán e os desafios do hackerfeminismo

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É só alegria e felicidade de poder compartilhar com vocês, leitoras-leitores-leitorx, o trabalho de Irene Soria Guzman, hackfeminista mexicana e amiga querida com quem estou compartilhando o processo dos dois primeiros anos do doutorado em Estudos Feministas na Universidade Autônoma Metropolitana, unidade Xochimilco, na Cidade do México. Passamos horas conversando e não consegui fazer um resumo de tudo, pois na verdade, todas as suas reflexões voltadas para o uso da tecnologia, o papel das redes sociais e as mulheres são fundamentais para conhecer as plataformas e os aparelhos que fazem parte das nossas vidas. Vamos falar em tecnologia e feminismos!

por Paola Marugán (correspondente internacional da Acrobata)

4 de dezembro 2019

 Cidade do México

Olá Irene, tudo bem? Acho difícil começar esta entrevista porque me parece que todas as perguntas estão interconectadas e duvido qual seria a primeira. Portanto, vou despegar e os próprios ventos dirigirão o nosso vôo. Certo? Então, vamos começar com uma pergunta básica. Sua prática articula o feminismo e o uso da tecnologia, como você se apresentaria?

Para mim também é difícil me apresentar, como geralmente acontece nas nossas práticas e devires… Bem, eu sou Irene Soria Guzmán, doutoranda no programa de pós-graduação de Estudos Feministas da Universidade Autônoma Metropolitana, unidade Xochimilco. Desenhista gráfica de profissão, porém me considero ativista também do movimento de Software e Cultura Livre. Atualmente sou representante líder de Creative Commons México. Algumas companheiras começaram a me chamar hack-feminista e a verdade é que eu gosto do termo, faz sentido para mim, mas ao mesmo tempo obvio que não me sinto digna dele. Em linhas gerais me considero acadêmica, ativista, pesquisadora, desenhista e feminista.

De que maneira o teu processo de consciência tecnológica deu início e que tipo de práticas você começou a desenvolver?

Como todo processo, não foi linear. Eu estudei design. Assim como muitas práticas dedicadas à comunicação e criação, o design está completamente permeado pelo uso tecnológico. Aquilo que era ensinado na universidade, além das teorias do design, eram programas piratas que eu tinha que descarregar com cópia não autorizada. Não eram os programas “originais” e esse fato me causou curiosidade e deflagrou perguntas: por que isso era ilegal? Por que usar minha tecnologia seria ilegal? Tais questões simplesmente ficaram lá. Também na prática do design aconteciam coisas como não poder abrir um arquivo ou que não podia ser compartilhado com um colega ou que a versão já estava expirada… sei lá! Naquele momento eu não tinha os conceitos para compreender o que acontecia, porém eu sentia que existiam muitos mecanismos de poder e nem havia uma pessoa atrás de tais mecanismos. Esse sentir foi se vinculando muito com minha prática tecnológica. Por exemplo, para mim foi muito importante acessar a internet quando eu era mais nova, com quatorze ou quinze anos. Entrar na internet representou uma coisa bem emocionante, um novo espaço, um lugar para ser habitado, um lugar muito interessante. Comecei a amar muito internet, pois tornou-se o meu espaço de brincadeira e lá aprendi muitas coisas. Aquilo que falava da universidade coincidiu com o acesso a internet havia cinco ou seis anos antes.

Isso tudo foi se vinculando até que cheguei no mestrado e na hora de decidir o projeto de pesquisa, pensei: “o que posso fazer?” Por que não fazer aquilo que sempre me perguntei… Será que consigo produzir design com outra coisa que não seja o software comum com o MAC ou Windows? Além disso, comecei a perceber que as pessoas que tinham o MAC eram melhor valorizadas das que não tínhamos. Era uma questão de classe social, claro!

Para mim era um impossível comprar o MAC. Eu sempre tive um computador Windows. Assim, decidi dedicar a investigação do mestrado a pesquisar outras maneiras de produzir design. Naquele momento, em 2006, participei de uma oficina intitulada “Medios electrónicos para promover el arte” no Laboratório de Arte Alameda (na Cidade do México). As oficinas mudam a vida (risos). Aí eu conheci pela primeira vez o Software Livre, GNU/Linux… Coisas estranhas que eu dizia, “o que é isto? Por que nunca vi isso anteriormente?” Com aquele descobrimento caíram várias fichas, pois achei resposta à questão de “será que é possível produzir design de outra maneira?” Sim! Sim é possível.

Esse processo foi concomitante ao devir feminista ou tinham percursos distintos e posteriormente você fez a conexão?

Eles foram processos distintos. Eles não estavam em paralelo, não. Porém quando se juntaram percebi que sempre estiveram juntos. Uma coisa estranha (risos). Quando eu decido prestar o mestrado, o processo dessa pesquisa abriu muitos caminhos que eu não conhecia e que chamaram minha atenção poderosamente, como foi o caminho do Software Livre. Eu pensei que era simplesmente uma ferramenta e mais nada, mas o Software Livre trouxe muitas outras reflexões.

Quando as pessoas falam besteiras da tecnologia, eu sempre digo que eu cheguei nos assuntos sociais graças ao computador. Aconteceu comigo ao contrário. Eu estava conectada ao sistema pelo fato de ser designer e ter recebido uma educação voltada para os interesses dele. Agora já posso falar sem medo. Muitas /os designers somos educadas para reproduzir os estereótipos e perpetuar as imagens hegemônicas.

É muito difícil abrir um diálogo. Não existe um interesse nas questões sociais em muitas das pessoas dedicadas à comunicação e o design. É uma luta constante. Curiosamente, a tecnologia, o Software Livre me fez olhar os temas sociais. Quando descobri outra tecnologia e vi que existiam processos colaborativos, Agf! Explodi! O que esses processos colaborativos eram? Qual é o significado do colaborativo? O que implica ser colaborativo? Aí minhas práticas mudaram radicalmente. Troquei o sistema operativo e comecei a usar outros softwares que não são os comuns. Troquei o Illustrator pelo Inkscape; troquei o Photoshop pelo Gimp e abandonei Windows para usar o Ubuntu, pelo que a transformação deu início com as ferramentas de trabalho.

E você aprendeu de maneira auto-didática?

Aprendi de maneira auto-didática, mas com muita ajuda da comunidade, também preciso dizer isso. Sozinha não podia. Eu perguntava em fóruns, perguntava a colegas que tinham 10 anos usando essa tecnologia. O início foi muito frustrante, mas quando lograva resolver as coisas por mim mesma sentia uma grande satisfação. Esse devir tecnológico me levou para o ativismo prol do Movimento de Cultura e Software Livre na minha comunidade de designers.

Eu via que os meus colegas do design não compartilhavam as coisas. Eles/elas estavam muito relutantes dos seus processos, pois se achavam gênios indiscutíveis. Isso estava muito conectado com o machismo, só que eu compreendi isso logo depois. TUDO era uma prática capitalista do design: o individualismo, não-compartilhar, a competência… Se tratava de ver quem usava os melhores filtros, quem tinha o melhor conceito, quem fazia o melhor design.

Aquilo não me fazia vibrar. É por isso que sofri tanto na universidade. Não era porque não gostava do design (hoje curto muito da profissão), mas o que me gerava um grande desconforto eram as formas capitalistas de funcionamento. Daí que me desenvolvo enquanto ativista do Movimento de Software e Cultura Livre; eu promovo fontes tipográficas livres e em geral começo a promover o uso do Software Livre. Isto era uma necessidade de colocar em xeque as práticas capitalistas em uma profissão, que me parece muito importante pelo fato de estar produzindo imagens e reproduzindo o status quo.

As/os designers têm interferência! Toda vez que eu queria mudar o conceito para fazer alguma coisa distinta a resposta era sempre negativa, pois devíamos prestar às necessidades do mercado.

Na comunidade do Software Livre eu era um bicho esquisito, porque eu não tenho formação de programadora, portanto, não sou do mundo tecnológico propriamente, também não sou da área das TI (Tecnologias da informação), eu sou meio artista… Por isso chamei muito atenção e além do mais era mulher! E novinha!

A galera do Software Livre do México me acolheu, mas também urinou em mim (risos) – hoje posso falar disso. Assim, as pessoas começam a me convidar para falar do que significa ser mulher na tecnologia. No início eu pensava: “tanto faz quem faz tecnologia, né?” Não me sentia distinta a um homem porque eu fazia exatamente a mesma coisa.

Aliás, a ficha caiu quando fui convidada  para dar uma palestra em Guadalajara sobre “mulher e tecnologia” (2015). Enquanto as interlocutoras iam ser mulheres jovens, eu decidi fazer várias leituras voltadas para pensar o papel da mulher na tecnologia. Se tão frequentemente a galera estava me perguntando por isso seria porque teria uma certa importância.

Por que não convidavam homens para falar do que significava ser homem na prática tecnológica? Depois daquela palestra tudo explodiu. A partir de lá, comecei a compreender as violências que eu sofri e que, porém, nunca percebi, como o acosso, por exemplo. Eu devo admitir que consegui acessar ao mundo da tecnologia pelo meu privilégio heterossexual. Comecei a ter relacionamentos com homens que eram respeitados. Eu tinha o meu falo que me abalava. Agf! Compreender isso foi muito forte.

Esses homens alcançaram um lugar de visibilidade pela meritocracia. Eram homens admirados pela comunidade e eu os conheci durante o processo da pesquisa do mestrado. Vários deles eram exemplos de casos de sucesso no uso do Software Livre na gráfica e nas artes, da minha dissertação de mestrado, e acabei me relacionando afetivamente com esses “casos”.

Quando eu estava com eles, as pessoas falavam “tá bem, ela é uma criança, mas traz o seu boy” e essa sempre foi minha luta. Foi pelo meu trabalho que eu fui acolhida na comunidade? Agora eu entendo que fui aceita de uma maneira bem paternalista.

O feminismo chegou anos depois, mas no real eu já o trazia, estava na incubadora. Agora consigo enxergar isso. Então não foi paralelo, primeiro sou ativista do Software Livre e depois me autorizo a ser feminista (entre 2015-2016).

Crédito: Acervo pessoal Irene

Estou interessada em você nos dizer, de que maneiras podem ser articulados os ativismos do Software Livre e os feminismos, sobretudo os feminismos em plural e situados no Sul Global?

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Essa pergunta é tudo. Podemos passar uma vida falando disso. Porém ela faz muito sentido para mim, sobretudo pela questão dos feminismos situados no Sul e a crítica que sempre devemos estar fazendo ao movimento do Software Livre e que há muitos anos eu ponderei como bandeira (e continuo, né?), mas cada vez eu sou mais crítica com ele.

Sempre que eu escuto você, compreendo que está fazendo a crítica da crítica.

Sim!

Primeiro, porque você está fazendo Software Livre do Sul e segundo, enquanto feminista do Sul também.

Posso falar das dores dessas dores (risos). Para mim o Software Livre e os feminismos fazem todo o sentido. Não apenas têm um bom convívio, mas deveriam se permear, se misturar… Não sei como seria essa mistura, porém sei que ela é muito necessária hoje. Primeiramente, devemos por em contexto.

O que é o Software Livre? Eu falo dele não tanto como uma ferramenta (que é fácil e barata), mas como um movimento político, que coloca em xeque um tema que tem pouca visibilidade e discussão, como é o fechamento do código, quer dizer, que as grandes corporações (Microsoft, Apple, Google, Amazon, Facebook) decidiram fechar o seu conhecimento, decidiram ocultar a receita de cozinha com a que fazem o software que hoje controla e permeia as nossas vidas.

Para mim, este fato deve ser frisado e não podemos esquecê-lo. Foi uma decisão política das corporações! E aí, eu digo que o código é político. O Software Livre coloca acima da mesa que as corporações fecharam o acesso à receita de uma maquinaria que iria controlar as nossas vidas. Richard Stallman já anunciou nos anos 70/80 que isso iria ser um problema.

Olha! Hoje estamos vivendo os estragos do que aconteceu com o fechamento do código. O movimento Software Livre pondera que os assuntos tecnológicos, que permeiam as nossas vidas, que usamos todos os dias nas nossas práticas e atividades quotidianas, têm que ser abertos e livres. O que significa isso? Pois que nos deveríamos poder ver como a tecnologia é feita. Quando falamos do movimento Software Livre é uma apelação à liberdade.

Apelamos a saber de que maneiras as coisas são feitas; apelamos à cultura hacker (que eu gosto muito dela) para conhecer como funciona a tecnologia visando modifica-la. E enquanto eu falo isso, também poderia ser uma definição do feminismo, dos feminismos, né?! Os feminismos revelam a falência de liberdade, aquilo que é invisível e que nos permeia, que coloca os nossos corpos em xeque (os corpos das mulheres, os corpos abjetos).

Os feminismos propõem analisar como o sistema funciona para ver de que maneiras poderíamos transforma-lo, pois estamos sendo afetadas por ele cada dia. E o Software Livre vem dizendo isso dos anos setenta/oitenta também.  E de fato, sim, está nos afetando. E trazendo a perspectiva do Sul Global, eu diria que existem corpos e países que são ainda mais afetados, em um sentido extrativista, pois, as grandes corporações estão desenvolvendo sua infraestrutura no Sul global.

Elas estão saqueando as nossas terras, o extrativismo que tão bem conhecemos aqui no México, por exemplo. E se a gente falar de dados, o que podemos contar? Não só extraem a água, mas nossas vidas e os nossos dados, a nossa informação. Daí, como fazer a conexão entre os dois ativismos (Software Livre e os feminismos)? Ambos movimentos têm muito em comum enquanto que procuram até certo ponto, a liberdade, tomar consciência; eles são movimentos críticos que estão problematizando a hegemonia, são projetos de vida.

Uma vez que transformadas as nossas práticas, devem ser um assunto muito presente no cotidiano. Por isso, eu digo que o hackfeminismo faz sentido para mim. No caso do Sul Global, os feminismos e o Software Livre devem ser mais críticos juntos, porque dentro do movimento do Software Livre também existem estruturas de poder.  Quando você joga a moeda, percebe que Richard Stallman – homem que admiro e amo profundamente – é um homem branco do Norte Global e claro que é machista…

Mesmo ele seja o guru do movimento do Software Livre, não está isento de problemáticas de poder. Ele é considerado “O Pai”. E já o nome do pai… Para mim fica claro que eu continuo estando do outro lado. A alteridade continua atuando dentro da mesma alteridade, porque eu sou uma mulher usando o Software Livre e as pessoas do movimento me convidam como se eu for literalmente uma espécime.

“Vê-la! Ela é a prova de que o Software Livre funciona” Até as mulheres podem usá-lo! Eu percebi que era convidada aos eventos, não como produtora de conhecimento e reflexão, mas como uma espécime. E quando eu percebi isso? Quando comecei a me assumir feminista e tonar visível às estruturas de poder do Software Livre.

Aí os machos alçaram a voz… E foi muito duro para mim, sobretudo nos chats, mas também fisicamente. Naqueles chats e grupos que eu frequentava, via os machos libertários aparentemente de esquerda reclamarem, e estou falando do Software Livre no México, mas me parece que é muito do que acontece em outras parte da América do Sul. Inclusive este movimento, que tem no seu coração um posicionamento crítico voltado para as relações de poder, continua a produzir a diferença sexual e o poder econômico que tal organização social implica. Não é por acaso que os projetos de Software Livre de sucesso têm verba das empresas privadas e também do estado, sabe? O processo é replicado por uma questão de liberdade. Nesta geopolítica, o movimento do Software Livre é cooptado.

Não por acaso, no México, o discurso foi que o Software livre podia ser usado pelas empresas por ser mais barato. E os líderes do movimento – as pessoas mais respeitadas – são empresários.

Eles têm os servidores e são técnicos muito expertos, bons hackers. Eles têm práticas muito poderosas, porém têm empresas e falam de grana, daí que a dimensão do social e crítico ficou no esquecimento. No início, o Facebook, o Twitter usaram o código aberto.

Ah eh? Não fazia a menor ideia.

Claro! O coração do Google, Facebook, Twitter eram Software Livre. Eles tinham um código que naquele momento inicial foi aberto, mas que decidiram fechar. O coração de MAC! Paola, 97% do que acontece na internet (infraestrutura, servidores, etc) tem como base um sistema operativo de Software Livre o GNU/Linux, em algumas das diferentes versões. Por que? Porque além de ser bem econômico, é mais seguro, porque muitos olhos estão enxergando-o e qualquer falha pode ser modificada.

Existem muitos fatores ao redor do sistema do Software Livre que permitem que a infraestrutura seja robusta, entendeu? Enquanto o código é aberto e livre, tem muitos olhos revisando o funcionamento e portanto, existem mais possibilidades de identificar a falha e modifica-la. É por isso que GNU/Linux tornou-se muito seguro.

Por exemplo, os sistemas de aeronáuticas não usam Windows. Um código aberto e colaborativo responde ao coletivo. Um código fechado responde a uma necessidade de um gerente, “líder de projetos” de uma grande corporação. Obviamente, se a gente localizar essas práticas no Sul Global, percebe outras opressões que os boys do Norte Global não enxergam e que estão relacionadas com os processos de colonização. Não é casual que as pessoas que geram maior quantidade de código e mais limpo sejam do Norte Global.

Eles têm mais tempo, estrutura… Enfim, privilégio! Aliás, muitas das pessoas do Movimento do Software Livre não querem compreende-lo. Eles continuam a falar que a parte divertida da programação é justamente que no virtual ninguém sabe quem é e portanto, existe sim uma horizontalidade.

Mas os corpos estão atravessados…

Exatamente! Tente explicar isso para um engenheiro. Ele não é capaz de enxergar isso! Se eu me conectar no computador por meio de um avatar, pois supõe-se que todos somos iguais. Finalmente conseguimos a horizontalidade! Agf brother, não é assim não, porque o programador que está na Índia tem um salario menor; tem um tempo menor de dedicação para a criação do código… Ele é pior pago do que um programado de Washington, Nova Zelândia ou Finlândia, né?

Por exemplo, na Rússia que é um lugar de muito frio, as pessoas estão fechadas nas casas e têm muito tempo para programar. Assim, acho que ser programador/a no México não implica as mesmas condições de um programador/a do Norte Global. Isto que parece tão obvio, é quase impossível de explicar nos congressos que assistimos. Quando eu falo do Sul Global, nesta possibilidade de que o Software Livre seja aberto, os processos são distintos. Por que? Porque aqui não podemos nos permitir um trabalho colaborativo voluntário, pelo esforço que requer; porque nossos governos não dão suporte para certas práticas nas verbas públicas, por exemplo… E MAIS OUTRA VEZ, o Software Livre chega até nós feito e pronto do Norte Global.

E além do mais, agora todo mundo quer ter um MAC (risos). Não estou dizendo isso para punir, eh? Mas a população em geral tem essa aspiração, todos estão sob o controle de MAC. E as mulheres, que estamos tentando fazer tecnologia no Sul Global, ainda somamos outros processos relacionados com as opressões que os nossos corpos carregam. Por isso, me interesso por este tema. Falar em tecnologia no contexto do feminismo é muito importante, porque as feministas estão extremamente afastadas desse assunto.

Você diz que o código também é político, você poderia explicar para o público geral, não especializado, o que quer dizer isso?

Eu não acunhei a ideia da dimensão política do código, é algo que venho escutando de outros colegas e que vem se compreendendo do movimento do Software Livre há tempo. Quando a gente fala que o código é político é a respeito do código de programação. O que é isso do código de programação?

Vamos pensar em todos os nossos aparelhos tecnológicos. Todos eles funcionam através de um programa de cômputo o software, que é o que em algum momento disseram que era a “parte lógica”. Portanto, nós temos a parte lógica e a parte física, quer dizer, o software e o hardware. Este último é a tela, o mouse, o teclado… Tudo aquilo que você pode tocar. E o software é aquilo que não vemos, mas que o funcionamento dele é construído por meio de uma escrita que alguém faz e é aí onde as vicissitudes começam.

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Escrever o software implica que a pessoa entenda os códigos que permitirão o funcionamento do hardware. Esse software permitirá que quando você digite a letra “H”, o “H” aparecerá na tela de um programa de processamento de texto. Por trás de digitar uma letra existe todo um processo que é fascinante, um processo complexo que alguém escreveu, embora hoje já é menos complexo que há 30 ou 40 anos.

Cada vez mais as linguagens de programação são mais acessíveis a nós, são uma mistura do inglês e as matemáticas. Nos anos sessenta ou setenta essas linguagens eram chamadas “linguagens ensambladoras” e eram bem mais complexas e rígidas. O código é a maneira na que um programa é escrito. É uma expressão utilizada dentro do algoritmo que faz funcionar o software.

E os algoritmos são os passos para fazer alguma coisa. O código é uma forma de ver uma decisão. O código manda a ordem de digitar uma letra para aparecer na tela. Aliás, o código também ordena salvar uma cópia do que estamos fazendo. O código pode impedir projetar um filme se o computador não estiver conectado a um projetor, entendeu? Aí, existe alguém atrás de todas essas ações tomando as decisões do que você pode fazer ou não.

Só para eu entender, o que você está dizendo é que esse “alguém” com interferência está tomando uma série de decisões que afetam as nossas vidas, e como feministas sabemos, que todas as escolhas são sempre feitas do nosso lugar de fala.

Sim! A decisão tomada no caso específico do fechamento do código, por exemplo, é uma decisão política, quer dizer, é uma decisão que não apenas afeta àquelas pessoas que o fecham, mas ao resto da humanidade que usa esse maldito programa. A escolha do fechamento do código afeta muitíssimas pessoas e por isso é político. Nós temos que falar disso por uma questão de responsabilidade. Daí que o opressor fica diluído. Já não é Steve Jobs ou Mark Zuckerberg, não, o poder é bem mais confuso.

Então quando você diz que o código é político quer dizer que também existe um ser individual com uma série de características (privilégios, fundamentalmente) que está tomando uma decisão de fechar o código e manter a nossa informação toda.

Isso! E esse ser é um homem branco, heterossexual, oriundo do Norte Global na sua maioria, mesmo também existem mulheres, sim. Tem homens fazendo isso para receber um salario, porque assinaram um contrato em que indicava que o código devia ser fechado. E tudo bem com isso, porém vamos falar com clareza.

Vamos dizer que a decisão de Steve Jobs foi fechar o código de todas as suas maravilhosas invenções (que a realidade é que todas elas foram resultado de um código aberto, isto é, de um trabalho colaborativo) e essa decisão foi política, sim, foi sacanagem.

Portanto, abrir o código é político, porque todos somos afetados/as por ele. E falo assim direto, porque a grande maioria das pessoas dedicadas às TI / Tecnologias da informação esquecem a dimensão social que tais práticas implicam. Parece que tudo é direito, claro e sem margem de erro, porque é tecnologia e não tem seres humanos. Parece que só pode ser “sim” ou “não”, um binômio.

Isso, claro, dá muita tranquilidade. Essas pessoas trabalham com o computador e se não funcionar, tudo bem, se organizam por sistemas quantitativos. E justamente os assuntos sociais são invisíveis para eles. Não existe reflexão além de saber se a máquina responde ou não, se fizeram um bom código ou não. Quero sublinhar isso porque nesse trabalho existem muitas coisas que respondem à dimensão social e política. Enquanto usuários/as, as decisões do código afetam muito as nossas práticas. Porém, enquanto fazedora de código, eu me coloco na situação de pensar que efetivamente o pessoal é político. O que eu faço afeta ou pode afetar o resto da população.

Portanto, se eles decidiram fechar o código, deveriam assumir a responsabilidade que isso implica. E, nós, usuárias/os não podemos esquecê-lo. NÃO ESQUEÇAMOS que Mark Zuckerberg decidiu até hoje, embora a sua plataforma tem tantas pessoas quanto um país inteiro, continuar como o código fechado.

UAU!

NÃO ESQUEÇAMOS que tanto ele quanto Twitter, Google e o resto decidiram continuar com o código fechado ainda hoje na era pós-Snowden. E continuam mantendo essa decisão com firmeza. Que a história não os esqueça! (risos) Por isso sinto muita raiva quando as pessoas dizem que sem o Facebook a revolução feminista não poderia existir. Aí, eu preciso respirar, porque também não quero punir às usuárias. É que eles não nos deixaram escolha! Como artistas, por exemplo, quais oportunidades de graça temos hoje para difundir os nossos trabalhos?

Publicações de Irene sobre o tema

Pois é, sem dúvida é a melhor…

Não é branco ou negro, mas a reflexão é muito importante.

O mundo hacker funciona por meio de identidades estratégicas (pseudônimos, avatares), você conhece mulheres que façam isso? Elas se enunciam feministas? Você conhece alguma que se apresente como hacker feminista?

A pergunta é interessante porque tem a ver com o meu projeto de pesquisa do doutorado. Me interesso pela procura de mulheres que tenham um domínio da técnica e compartilhem a filosofia hacker (a definição do hacker tem sido e ainda é muito complexa). A cultura do hacker vem da década dos sessenta, quando um grupo de homens começaram a usar essa nova ferramenta para fazer funcionar a maquinaria.

Para eles, isso era muito divertido e interessante. Tem uma questão que efetivamente dá para sentir no próprio corpo, pois eu já experimentei isso.

Fazer que o aparelho faça o que você quiser, né?! É um assunto de controle. A cibernética é o controle do câmbio, essa é a definição. Muito positivista, por outro lado. O movimento hacker dos anos sessenta pugnou por conhecer, mas sobretudo pela curtição, pela dimensão lúdica.

A situação de passar horas resolvendo um problema, só pelo simples fato de poder fazê-lo, de saber que a máquina pode ser modificada, tem a ver com o estudo do funcionamento do aparelho e da possibilidade de propor uma solução. Eu sempre digo que as feministas fazem isso o tempo todo. As pessoas que vivem no feminismo dia a dia, percebemos que a negociação é constante.

Cada dia precisamos decidir, pensar, inventar as estratégias. Ser hacker é completamente estratégico, da mesma maneira do que ser feminista. Tudo é estratégico. Existe um espírito ao redor da cultura hacker que tem a ver com o lúdico, a sagacidade, a curtição e também com o desafio de conseguir resolver um problema – é muito masculino, né?

Fazer alguma coisa só pelo prazer de saber que pode fazê-lo. Enquanto tudo está associado ao saber-fazer, o mundo hacker tem uma recusa à Academia. Existe uma rejeição aos títulos nobiliários. Aí, o doutorado não presta. “Show me the code”, falam. Eu gosto muito disso porque me sinto interpelada. Aqui o teu doutorado não presta, mostra o que tu sabes fazer. Muitos dos hackers são autodidatas. Não existe escola hacker.

Quando surgiu o movimento, várias mulheres faziam parte dele em um primeiro momento, depois nos anos oitenta, no mesmo contexto, a quantidade reduziu. Começou o entendimento de que o computador era um aparelho técnico, tecnológico e que era só para os homens, quando na verdade não foi assim no início. A publicidade teve um rol muito importante na criação de estereótipos.

Assim, as mulheres que permaneceram nesse mundo usaram um pseudônimo, para ninguém saber que eram de fato mulheres. Aí é que a gente fala o gênero importa, sim! Não é certo que a virtualidade não é real, que seja horizontal, que faça parte de outro mundo. O mundo virtual é parte da sociedade, deste mundo capitalista em que vivemos. Alguma vez um hacker falou para mim “o que vai saber mais uma mulher do que eu”. Ele reconheceu que quando encontrava um código com nome de mulher, automaticamente ele achava que esse código não era bom.

O que vai saber uma mulher mais do que eu, se eu estou aqui o dia todo e ela se dedica a outras coisas. Este padrão repete-se muito. As mulheres têm que demonstrar três ou quatro vezes mais o que sabem e isso é muito cansativo.

Então, é uma estratégia de supervivência a troca do nome e a ocultação da identidade de gênero.

Exatamente! Os tempos estão mudando e os feminismos chegam em todos os recessos. Embora essas mulheres hacker que trabalham em empresas já entenderam que é importante que nós mulheres estejamos nisto. Minha intuição é que ainda é um discurso fraquinho, pois ainda, as pessoas continuam a falar tanto faz ser homem ou mulher. Até o presente identifico dois grupos com características diferentes: primeiro, que as mulheres hackers (que administram sistemas, servidores e fazem código) não são feministas, inclusive elas preferem não falar disso porque entendo que para elas deve ser doloroso; segundo, existe outro grupo de mulheres, que não trabalhamos esse nível de expertise (conhecemos um pouco, conseguimos dialogar, mas ainda não administramos sistemas), porém sim temos uma consciência feminista. 

Quando a gente fala de hackfeminismo, eu identifico um grupo de mulheres, em que eu me incluo, que não necessariamente têm um grande domínio da técnica, mas são politizadas. E sobretudo, as mais novas têm uma consciência feminista muito firme. As mais veteranas ou as mulheres que chegaram no feminismo depois ou durante suas práticas, é muito difícil, é muito doloroso. Muitíssimo.

Irene, você oferece oficinas de segurança digital, o que é isso? Você poder nos dar algumas dicas?

Existem muitas lentes das quais abordar a segurança digital. Inclusive tem pessoas que não gostam do conceito “segurança digital”, porque o termo “segurança” é muito problemático. Todas estas coisas são aprendidas no caminho. Algumas colegas usam o conceito “cuidado digital” ou “autocuidado” e essa é a terminologia que eu gosto.

O tema da segurança e o autocuidado refere-se justamente à tomada de consciência dos cuidados/mecanismos de segurança que devemos ter quando usamos um aparelho eletrônico conectado à internet.

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A perspectiva empresarial está muito focada na segurança digital e são as empresas que vendem os softwares que irão nos proteger… Trata-se da venda de um produto. Trata-se dessa ideia bem capitalista de se instalar um software para não ter vírus.

Existem diferentes posicionamentos. O meu, junto com outras colegas, é primeiro reconhecer qual é o perigo. Existe ou não perigo, finalmente? Quais tipos de perigo? E obviamente muitas das oficinas que eu ministrei foram dirigidas a mulheres, pois as moças chegam angustiadas por serem culpadas por terem compartilhado fotos peladas, por exemplo. Eu gosto de falar de autocuidados digitais mais do que de segurança digital. E isso consiste em conhecer primeiramente o que é o que está acontecendo com a equipe de cômputo, com o uso generalizado do celular, que também é cômputo.

Eu concentro o trabalho naquilo que é conectado na internet, porque é uma forma de por o nosso corpo no espaço urbano. Falar desses cuidados é conhecer o espaço, saber onde é que eu estou, o que está acontecendo no meu bairro e decidir o que vou dizer ou o que vou calar, entendeu?

Eu não tenho um domínio tão avançado para falar de intervenção telefônica, mas o meu trabalho pedagógico aqui tem a ver com conhecer o espaço que habitamos. E isso abrange muitos assuntos. Me parece importante dizer que não é um tema que eu entendi sozinha, mas é parte de um processo de trocas de conhecimento com colegas.

Eu identifico dois níveis: o nível usuário, que é quando alguém está acessando na rede ou quando alguém roubou fotografias de uma pessoa e as postou sem permissão, e falo especificamente de corpos de mulheres, ou quando alguém está fazendo cyber-bullying; o nível global é quando uma estrutura de poder bem mais complexa exerce um poder aos usuários, fazendo vigilância massiva ou com o extrativismo de dados ou colonialismo de dados.

Estas plataformas são GAFAM: Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft (com todos os seus produtos).

Participo de todas exceto Amazon (risos).

Essas cinco corporações controlam as nossas vidas. GAFAM faz um extrativismo de dados bizarro. Estes dois níveis que falei pode soar muito esmagador, mas conhecer o funcionamento de maneira geral permite nos situar no panorama e ser cientes do que está acontecendo. Nós estamos presas! Me diz uma outra opção para encaminhar um correio? O Facebook tem Whatsapp e Instagram. A economia da atenção das gerações mais jovens e inclusive as nossas está aí, nessas três plataformas. Eu uso o Instagram e o Facebook também. Temos todas um perfil.

Quando o meu Whatsapp está cheio e eu vazio a informação toda, realmente é apagada?

Não, concretamente no México, a lei federal de comunicações diz que o serviço de telefonia deve manter dois anos guardada toda a informação, no caso precisar dela. Mas em geral, o tema da segurança digital é bem mais abrangente porque primeiro, é importante saber que quem precisamos nos cuidar e depois, de quem é essa segurança digital. Por isso gosto mais do autocuidado.

Eu sei que na sua larga rede digital-afetiva você tem contatos no Brasil, no Nordeste (na Bahia) e no Sul, certo? Quem são? O que fazem? De que maneira você se conectou com elas?

Os meus contatos no Brasil vêm por meio da minha pesquisa de doutorado. Graciela Natanshon, que é pesquisadora e professora da UFBA, escreveu um livro intitulado “Internet em código feminino”, e é em feminino porque não a deixaram colocar “feminista”. Esse livro é parte da minha bibliografia básica e está em espanhol e português. Por meio dessa leitura me conectei com coletivos brasileiros (também por meio de colegas mexicanas hackfeministas tal como a coletiva Tormenta).

Esses coletivos de mulheres brasileiras são MariaLab, o coletivo Clandestinas ou Vendeta, mas eu acho que são as mesmas mulheres atuando em diferentes coletivos. Não são três coletivos de mulheres distintas, entendeu? Um coletivo é um hackerspace, o outro é a parte tecnológica por meio da qual procuram obter recursos, porém são as mesmas mulheres.

Elas se auto-definem feministas?

A verdade é que a maioria das pessoas hackers não se apresentam enquanto tal, porque o conceito em si mesmo implica que você não pode se nomear assim. É desaprovado se nomear hacker. Aliás, existem coletivos que se apresentam abertamente como feministas na tecnologia, as mulheres de Marialab, por exemplo.

Elas trabalham com Software Livre?

Trabalham.

Crédito: acervo pessoal Irene

Pensando na famosa frase de Audre Lorde, “as ferramentas do mestre nunca irão desmantelar a casa do mestre”, o ativismo ciberfeminista das redes sociais tem muitas limitações. O que você acha do uso das redes como Facebook, Twitter ou Instagram como ferramenta para nos auto-organizar, convocar e continuar a trabalhar pesado contra o sistema patriarcal (capitalista, racista, escravocrata e colonial)?

Eu sou muito crítica do uso das redes sociais, porém o feminismo me ensinou justamente a sair do esquema do julgamento. Então acho legal começar dizendo que o meu posicionamento contra não é para julgar as companheiras que decidiram escolher as redes sociais como espaço de luta.

Eu acho que já existem muitos “não(s)” no mundo. Tudo é não. Isso não por ser capitalista. Isso outro também não por ser patriarcal. Aquilo não porque é heterossexual. Muitas negativas, né? Por isso, quero começar dizendo que não pretendo fazer julgamento nenhum. Simplesmente, eu estou colocando o dedão na linha de uma parte do “texto” que não estamos enxergando com clareza.

E não é tão claro não, porque justamente o mecanismo foi criado para não ser enxergado. Como disse anteriormente, o poder e o opressor estão diluídos. E nas redes sociais, o poder é diluído com muita facilidade, pois elas são fáceis, rápidas, e satisfazem nossa necessidade produzir uma ação rápida. Eu não me considero cyberfeminista. Não sei o que eu sou (risos), mas não me identifico com o cyberfeminismo. Não sinto essa chamada.

As colegas cyberfeministas mostram a eficácia das redes sociais, o Facebook, por exemplo, quando as notícias viralizam. E se a gente faz essa correlação, pois as redes sociais são uma ferramenta muito boa para isso. Em termos quantitativos, o Facebook é uma ferramenta para a resolução de alguns problemas graças à viralização deles, pois agora não precisamos aguardar 10 anos.

Porém aí eu pergunto, qual é a diferença entre um caso viral nas redes sociais na Cidade do México e um caso televisivo dos anos oitenta que acabou se resolvendo por causa da atenção pública recebida? Naquele momento, as pessoas entendiam que era graças à mídia que as autoridades escutavam. Agora, se não for porque o assunto viralizou… Aliás, o que acontece com o resto de casos? Como é que podemos fazer para que a entrega de justiça não seja por meio do viral? Porque aí tem relações de poder: muitas mulheres com privilégio de morar na Cidade do México e contar com uma rede de mulheres feministas. O Facebook sabe disso.

O Facebook sabe que é um tema cojuntural do país, o tema da violência contra as mulheres, daí que certa informação viralice. O que é o que me parece grave e o que é o que eu critico dessas redes “maravilhosas”? Que o poder está difuso e oculto. Não sabemos como funciona, não sabemos de que maneiras o algoritmo foi feito, não sabemos quantas vigilâncias tiveram que acontecer para um assunto ser viralizado. O poder está no Norte Global, o poder é de Zuckerberg e ele não nos deixa vê-lo. A crítica que eu faço é que não apenas estamos usando as ferramentas do opressor, mas que essas ferramentas não estão disponíveis para nós.

Estamos dando ao opressor as nossas ferramentas para que saiba tudo das nossas entranhas. Estamos dando o nosso coração, Paola. É por isso que sinto tanta raiva. Estamos dando as nossas ilusões. Estamos dando as nossas alegrias em bandeja de prata. E ele está capitalizando isso tudo, está capitalizando as nossas emoções, está capitalizando o sentir que temos de quando a justiça atua resolvendo os conflitos por causa de serem viral.

Por enquanto aqui no México estamos com 10 feminicídios diários. Eu sou muito crítica quando as pessoas dizem “sem o Facebook isto não seria possível”. Me deixa com raiva, mas não pelas moças que falam isso, não! Estou com raiva porque esses boys ganharam, né? Ganharam o capital simbólico que eles queriam. Se legitimaram, Paola! Quando o Facebook percebeu o poder dele, bem antes do que nós, porque esses caras têm o código fechado, têm o know-how, começou a se reunir com mulheres feministas. Minhas colegas, minhas irmãs, minhas amigas se encontraram com o pessoal do Facebook e do Twitter.

Tiraram a foto, se legitimando com as organizações feministas e fazendo ver que eles estão atendendo as nossas necessidades. E sim, a verdade é que algumas atenderam: colocaram formulários específicos para o acosso, por exemplo, mas isso foram pequenas mudanças. Eu falo mais uma vez, sim tiveram mudanças, mas na casa deles. No fundo, a violência e a violência sexual continua. É importante tonar visível que o Facebook tem pessoas trabalhando em condições de marginalidade com salários ínfimos nas Filipinas, qualificando fotografias terríveis (violência, crime organizado, suicídios online) sem assistência psicológica.

Esse trabalho é feito por pessoas, que precisam se desconectar das suas almas porque não é possível manter esse trabalho durante longos períodos de tempo. O Google também trabalha desse jeito. Aí eu fico me perguntando, mas eles não tem a inteligência artificial tão avançada? Eles têm um algoritmo muito desenvolvido que pode nos sugerir amigos pelo fato de ter ficado por perto de uma pessoa, porém não podem criar um algoritmo para a qualificação de imagens. É extremamente cruel…

Eu estou em redes sociais, mas faço um uso diferente delas. Por exemplo, não tenho o aplicativo oficial instalado. Tento fazer vários hackings visando evitar a espionagem de informação, mas sempre tem escapes. Outro exemplo é que não falo abertamente de todas as minhas coisas no Whatsapp, porque quando eu falei de alguns temas, automaticamente aparece algum sinal que identifico dessas fugidas.

Se eu falar com alguém e faço uma piadinha sexual, logo seguido recebo publicidade de lingerie, porque pelo comentário reconhece minha idade, o meu momento hormonal, etc… E não são pessoas que estão fazendo isso, é simplesmente um algoritmo, são processos “relativamente” simples de probabilística.  

Tem filmes que explicam isso muito bem e que eu gosto bastante como “The Great Hacker” ou “Nada é privado” de Karim Amer e Jehane Noujaim. Estes filmes tratam das maneiras em que as questões políticas são manipuladas e como as pessoas são manipuláveis. Um exemplo são as Fake News, as notícias falsas dirigidas para pessoas indecisas politicamente.

A questão importante para mim é analisar de que maneiras os assuntos políticos são manipulados, mas cuidado! Não quero ter interpretações equivocadas do que estou apontando, não gostaria que minhas palavras fossem descontextualizadas. Não estou dizendo que o movimento feminista está sendo cooptado pelo poder. Não é por aí, não! O que eu quero sublinhar é que um movimento legítimo e transformador está usando as ferramentas do poder e ele sabe tudo desse movimento e desculpem! Mas as feministas não somos importantes para o poder.

Isso gera bastante angústia em mim. Essas corporações apenas têm um fim em comum: o capital. O único fim. E tanto faz se você é católica, cristã, de direita ou esquerda. O último fim é que o Facebook tenha ganhos cada ano. Por isso eu sou muito cuidadosa e nunca digo que as revoluções que estamos vivendo não seriam possíveis sem as redes sociais.

Não, companheiras! Sem redes sociais outra coisa teria acontecido com certeza. Não esqueçamos que as mulheres ganharam o direito ao voto sem internet. As Sufragistas reuniam-se, encaminhavam cartas, viajavam em barco, entendeu? Não esqueçamos que inclusive antes das Sufragistas, as mulheres tinham muitas maneiras de se organizar nesta geopolítica.

Qual é a diferença? Que as ferramentas que nós feministas estamos usando no presente são muito rápidas e simples, porém elas têm mais poder em nós do que nós nelas. Nós, mulheres feministas, não temos controle nenhum sobre aquilo que estamos comunicando. Nenhum! As pessoas dizem que a vigilância sempre existiu. Sim, concordo! Aliás, agora essa vigilância é bem mais específica, está dirigida às pessoas e hoje é uma máquina que está tomando as decisões. Estou com muita raiva e me dá uma vontade de chorar.

Eu também estou quase chorando, escutando você.

Como é que eu posso falar para uma colega cyberfeminista que construiu o seu jardim de flores maravilhoso e que ele se encontra em um espaço fechado e vigiado em que é impossível conhecer o processo de plantação de suas flores? O jardim é a rede sociodigital. Eles nos fizeram acreditar que esse espaço era livre.

No caso do Facebook ainda fico com mais raiva porque todos eles são homens. E insisto, minha raiva não é contra as colegas feministas. No final o que estamos fazendo é construir os nossos jardins lindos e privados, pagando um preço muito alto, pagando com nossas vidas, com nossos corpos.

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