Por Andreza Modesto
A professora Patrícia Marcondes de Barros é doutora em História pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) e em Estudos Literários pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Possui uma trajetória acadêmica marcada pela interdisciplinaridade, concentrando seus interesses na contracultura em suas manifestações culturais, sociais e literárias. Nesta entrevista, compartilha suas reflexões sobre o orientalismo, elemento cultural marcante na literatura contracultural, analisando suas significações e o impacto que exerceu durante o período da ditadura militar no Brasil.
Andreza – Patrícia, como você definiria o conceito de Orientalismo, especialmente no contexto da literatura?
Patrícia – O Orientalismo de forma ampla é entendido como movimento artístico e campo de estudo, desenvolvendo-se na Europa entre os séculos XVIII e XX. Nesse período, os europeus demonstraram um forte fascínio pelo Império Otomano, que abrangia partes do sudeste da Europa, Ásia Ocidental e o norte da África. Esse interesse levou à produção de inúmeras obras que representavam o Oriente, muitas vezes através de uma visão exótica e estereotipada. Embora existam exemplos de orientalismo anteriores ao século XIX, o termo costuma se referir à maneira ocidental — especialmente inglesa e francesa — de retratar o Oriente na pintura, arquitetura e outras formas de arte. O teórico Edward Said, em “Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente” (1978), argumenta que essa construção não se baseia em uma realidade objetiva, mas em discursos moldados por relações de poder colonial e imperialista. Segundo Said, “o Oriente foi quase uma invenção da Europa, desde a Antiguidade, um lugar de romance, seres exóticos, memórias e paisagens assombrosas”. Em “Cultura e Imperialismo” (1993), Said amplia a análise que havia sido iniciada na obra anterior, explorando como a cultura ocidental, especialmente a literatura, contribuiu para a naturalização do imperialismo e para a manutenção de estruturas coloniais ao longo da história. Ele demonstra como a cultura eurocêntrica incorporou e normalizou narrativas que marginalizam os povos colonizados, estabelecendo uma posição global que ainda persiste. Autores como Lord Byron, Rudyard Kipling e Gustave Flaubert ajudaram a consolidar essas imagens orientalistas, muitas vezes justificando a exploração econômica e política da região. Por outro lado, o Oriente também foi idealizado como um “espaço” de refúgio espiritual e uma alternativa à modernidade ocidental no século XX. Na obra “Sidarta” (1922), Hermann Hesse construiu uma visão do Oriente como um lugar de sabedoria transcendental. Inspirado por sua viagem à Índia, explora temas como a iluminação espiritual e os valores do zen, como simplicidade e desapego. Já em “Demian” (1919), ele aprofunda a tensão entre o indivíduo e a sociedade, incorporando elementos da psicologia junguiana para representar a busca pelo verdadeiro eu.
“A vida de todo ser humano é um caminho em direção a si mesmo, a tentativa de um caminho, o seguir de um simples rastro. Homem algum chegou a ser completamente ele mesmo; mas aspiram a sê-lo, obscuramente alguns, outros, mais claramente, cada qual todos como pode”.
Embora os estereótipos orientalistas ainda persistam na mídia contemporânea, as críticas pós-coloniais e autores orientais têm contribuído para desconstruí-los, promovendo visões mais modernas e plurais sobre o Oriente.
Andreza- Pensadores como Alan Watts e Aldous Huxley auxiliaram através de suas obras a popularizar ideias orientais no Ocidente. Qual a contribuição deles para o entendimento do orientalismo?
Patrícia – Alan Watts e Aldous Huxley tiveram um papel fundamental na introdução e popularização de ideias orientais no Ocidente ao longo do século XX, especialmente em um contexto de desencantamento com a modernidade e busca por novas formas de compreender a si mesmo, a vida, a sociedade e a espiritualidade. Alan Watts, em obras como “The Way of Zen”(1957), apresentou os princípios do zen-budismo de forma clara e entusiasmada, desmistificando práticas e conceitos pouco conhecidos no Ocidente. Huxley, por sua vez, em “The Perennial Philosophy”(1945), explorou as conexões entre tradições místicas orientais e ocidentais, sugerindo uma unidade transcendental entre as religiões. Ao desafiar os valores do racionalismo, materialismo e consumismo predominantes no Ocidente, ambos defenderam que as tradições orientais ofereciam perspectivas mais amplas sobre a vida, a consciência e o lugar do ser humano no cosmos. Suas ideias influenciaram diretamente movimentos contraculturais, como o hippie, fomentando um interesse generalizado por estilos de vida alternativos.
Andreza – A contracultura dos anos 1960 e 1970 teve então a influência de fontes orientais, pode nos falar mais sobre essa relação na literatura?
Patrícia – O movimento contracultural das décadas de 1960 e 1970, caracterizado por sua contestação aos valores hegemônicos do Ocidente capitalista, encontrou nas tradições orientais um terreno fértil para questionar normas sociais, o materialismo exacerbado e a alienação provocada pela modernidade. Esse fenômeno manifestou-se de forma notável nas artes e na literatura — tanto internacional quanto brasileira — nos aspectos espirituais, filosóficos e estéticos.
As influências orientais foram percebidas a exemplo, nas capas de discos da Tropicália; no vestuário, com o uso de adereços artesanais, túnicas e quimonos; e na música, com a incorporação de instrumentos como a cítara e as tablas ao rock — evidenciando-se em fases dos Beatles (e George Harrison foi o principal responsável por essa aproximação que se deu com o mestre indiano Ravi Shankar), dos Rolling Stones e The Doors. Poetas brasileiros como Alice Ruiz e Paulo Leminski flertaram com o zen; e Rogério Duarte tornou-se monge Hare Krishna, produzindo inclusive uma belíssima tradução da Bhagavad Gita, feita diretamente do sânscrito para o português. Estes são apenas alguns dos muitos artistas que voltaram seu olhar para o Oriente.

Esse encontro cultural buscava uma filosofia de vida que enfatizava a experiência interior, a simplicidade e a harmonia com a natureza. Tais perspectivas foram interpretadas como formas de resistência cultural e pessoal, promovendo a valorização do momento presente e o conceito de instantaneidade — a ideia de “viver intensamente o agora”. Esse ideário desafiava a obsessão ocidental pela produtividade e pelo consumismo atrelado à promessa de um “futuro promissor”.
A literatura contracultural brasileira absorveu esses elementos tanto na forma quanto no conteúdo. Os impressos alternativos da época frequentemente explicavam ao público brasileiro a relevância dessas perspectivas filosóficas e impulsionavam um mercado específico também, promovendo cursos de meditação, ioga, alimentação naturalista e a difusão de textos sagrados hindus e budistas. Diante da censura e da repressão impostas pela ditadura militar, criar “reinos fora da história oficial” tornou-se um imperativo para parte da juventude brasileira. Nesse contexto, emergem figuras messiânicas e gurus caricatos, revelando um certo grau de fanatização que atravessou o imaginário contracultural. A ideia de “profanar o sagrado e sacralizar o profano” esteve no cerne desse movimento, iluminando o processo de orientalização do Ocidente — um fenômeno marcado por apropriações culturais que ora diluíam, ora ressignificavam práticas tradicionais. Simultaneamente, expressões antes marginalizadas pela cultura ocidental passaram a ser legitimadas como formas autênticas de espiritualidade e busca de sentido. A valorização das culturas indígenas, o interesse por religiões orientais, o uso ritualístico de drogas psicodélicas e a exaltação da liberdade sexual são exemplos dessa sacralização de experiências anteriormente consideradas desviantes.

Fonte: Revista Rolling Stone, 1972. Arquivo pessoal de Patrícia.
O filósofo e jornalista Luiz Carlos Maciel desempenhou um papel essencial na introdução de conceitos como o taoismo e o zen-budismo ao público brasileiro, por meio de suas publicações em livros e jornais alternativos. Essas ideias ressoavam fortemente junto à juventude contracultural, incorporando-se ao repertório filosófico da época.
Diversos autores daquela geração adotaram um olhar místico e reflexivo sobre a existência, influenciados tanto pelo zen-budismo quanto pelas experiências psicodélicas. Essa influência extrapolou o campo da filosofia e moldou também o estilo narrativo, resultando em experimentações literárias que evocavam estados meditativos e alterações da forma de percepção da vida. O romance “O Lobo da Estepe” (1927), de Hermann Hesse, tornou-se um manifesto literário para aqueles que se sentiam marginalizados pela sociedade industrializada. A narrativa de Harry Haller, dividido entre seu lado “humano” e “lobo”, refletia a angústia existencial do indivíduo moderno e sua busca por uma vida autêntica. Muitos leitores interpretaram as trajetórias de iluminação do protagonista como metáforas para experiências proporcionadas pelo LSD e outras substâncias psicodélicas — tema também explorado por Timothy Leary em suas obras e palestras.
Além de Hesse, os poetas da geração beat, como Allen Ginsberg e Jack Kerouac, exerceram grande influência sobre a juventude brasileira. Ginsberg, ao adotar a meditação, incorporou essa prática em seus poemas, capturando a experiência contemplativa e a percepção do instante presente. Em “Howl” (1956), expressa um anseio espiritual e uma crítica ácida ao american way of life. Já Kerouac, em “Os Vagabundos Iluminados” (1958), narra a jornada de Ray Smith (seu alter ego) e Japhy Ryder (inspirado em Gary Snyder), personagens que mergulham na meditação zen e no ascetismo, celebrando a liberdade e a conexão com a natureza.
No Brasil, escritores ligados à geração mimeógrafo e à prosa experimental também assimilaram influências orientais, tanto na forma quanto no conteúdo. A fragmentação textual, a valorização do silêncio e a busca por estados alterados de consciência foram incorporadas de maneira intuitiva. Essa tendência na literatura contracultural não se restringiu a um modismo passageiro, mas integrou um movimento mais amplo de reconfiguração da sensibilidade artística e filosófica, abrindo espaço para novas formas de expressão e questionamento da realidade.
Seja na prosa introspectiva de autores experimentais, na poesia libertária dos anos 1970 ou na difusão de ideias que confrontavam o materialismo ocidental, a herança das perspectivas filosóficas orientais na contracultura permanece como um marco significativo na história literária brasileira. O contato com essas tradições proporcionou um olhar expandido sobre a existência e a arte, ressignificando o papel da literatura e da experiência humana
Andreza – Que autores ou obras no âmbito literário você recomendaria para quem se interessa pela temática orientalista no movimento contracultural?
Patricia – Para aqueles interessados na influência do pensamento oriental na perspectiva da contracultura, algumas obras e autores são referências fundamentais. No cenário internacional, além de Hermann Hesse e dos escritores beat já mencionados, destacam-se Gary Snyder, cujo livro “Turtle Island” (1974) combina o budismo zen com uma visão ecológica e espiritual da existência; Timothy Leary, que em “The Psychedelic Experience” (livro lançado em 1964, com Ralph Metzner) relaciona as experiências psicodélicas com conceitos budistas de transcendência e, em sua autobiografia “Flashbacks: Surfando no Caos”, reflete em muitos capítulos sobre sua relação com essas influências orientais; e Robert Pirsig, que em “Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas”(1974) mescla filosofia zen e reflexões sobre a modernidade, questionando a lógica racional ocidental a partir de suas viagens de moto pelos Estados Unidos.



Em termos de publicações nacionais, enfatizo novamente as obras de Luiz Carlos Maciel que teve um papel central na difusão das ideias contraculturais, especialmente ao explorar o zen-budismo e o taoismo. Em obras como “Anos 60”, “A Morte Organizada”, “Geração em Transe: memórias do tropicalismo” e “Underground: Luiz Carlos Maciel” (coletânea de textos de sua coluna no semanário Pasquim, organizada por Cláudio Leal), ele aborda temas como psicanálise, orientalismo e psicodelismo, sempre tendo a questão da liberdade como eixo central de reflexão, mote da contracultura.



Jorge Mautner e José Agrippino de Paula também são dicas de leitura importante pois dialogam com esse universo. Mautner incorpora elementos orientalistas de forma híbrida e inovadora, misturando referências do hinduísmo, budismo e taoismo com sua visão anárquica e tropicalista. Seu sincretismo filosófico e espiritual reflete o espírito libertário de sua produção artística e literária. Já José Agrippino de Paula assimila o orientalismo de maneira experimental e sensorial, alinhando-se à estética da contracultura e ao caos criativo dos anos 1960 e 1970. Sua obra “PanAmérica” (1967), um dos marcos da literatura contracultural brasileira, constrói uma colagem frenética de referências culturais globais, misturando cinema hollywoodiano, figuras históricas, cultura pop e misticismo oriental em um fluxo de consciência alucinante. A própria estrutura do livro remete aos koans zen, que desafiam a lógica ocidental e induzem estados meditativos. Além disso, o romance dialoga com o psicodelismo e o conceito oriental de dissolução do ego, algo presente tanto na cultura beat quanto nas experiências lisérgicas.

Esses autores e obras me vieram a mente, mas existem muitos outros também que ilustram como a contracultura ressignificou o pensamento oriental dentro de um contexto de contestação e resistência, especialmente sob a repressão do regime militar. Mais do que uma moda passageira, essa aproximação com o pensamento oriental abriu novas possibilidades de existência e experimentação estética, marcando de forma duradoura a literatura brasileira.
Andreza Modesto é paraense e pesquisadora, doutoranda em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná. Mestra em Estudos de Linguagens pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Especialista em Língua Portuguesa e Literatura (UTFPR-2022). Graduada em Letras (Habilitação em Língua Portuguesa) pela Universidade Federal do Pará (UFPA-2019). Professora de Língua Portuguesa, Literatura e Redação. Tem experiência na área de Letras com ênfase em Literatura Brasileira, atuando principalmente nos seguintes temas: literaturas modernas, interseção entre relato de viagem e escrita de diário, romance e fragmentação, espaços ficcionais, relações entre literatura e sociedade.