Afonso Henriques Neto e as variações inflamáveis da poesia / DOCUMENTA – Memória da poesia brasileira

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Por Floriano Martins

NOTA DE EDIÇÃO: Entrevista foi realizada em 2005 para publicação na Agulha Revista de Cultura do mesmo ano. Afonso Henriques Neto (Minas Gerais, 1944) é um daqueles notáveis nomes trazidos à cena literária pela antologia 26 poetas hoje (Coleção Bolso, 1976), organizada por Heloísa Buarque de Hollanda. Foi revelação importante à época, sem dúvida. E toda a poesia “suja, ruim e sem qualidade” que a crítica recebeu naquele momento, aos poucos foi substituída por uma poesia limpa, ruim e sem qualidade. Houve um equívoco de faxina. Removeram o que havia de essencial naquela geração e que a crítica encarcerava no adjetivo “sujo”. A própria Heloísa, já em 1997, chamava a atenção para o número de mortos dentre aqueles poetas. Mortos e desaparecidos, eu acrescentaria. O saldo, porém, foi brilhante, se pensarmos em Roberto Piva e Zuca Sardan, duas poéticas vibrantes, renovadoras, fundamentais para o desdobramento de nossa lírica. Se reconhecidos pela mídia ou não, esse é outro ponto. Henriques Neto, que acaba de assumir a direção da revista Poesia Sempre, da Fundação Biblioteca Nacional, em 2005 publicou um livro de tirar o fôlego, Cidade Vertigem. Não pelo título, mas sim pela inquietude extrema com que nos leva a percorrer suas mais de duzentas páginas. É obra fascinante, pela linguagem múltipla, que mescla poesia, narrativa e ensaio, e verdadeira, ao partir de experiências vividas pelo poeta.

FM | Em 1996, situavas Cidade vertigem como “um livro sobre a megalópole, poemas e textos imersos no puro delírio persecutório/labiríntico/atordoante de um meio ambiente cada vez mais adverso à vida humana e por extensão à poesia”. Qual o saldo desta aventura? De que maneira consideras satisfatória a aventura deste livro?

AHN A publicação de Cidade vertigem me deu grande prazer. Realizá-lo foi, sem dúvida, uma aventura. É verdade que, desde o início de minha trajetória poética, a preocupação com a vida humana nas grandes cidades industriais modernas sempre se mostrou presente. Mas foi a partir de 1985 que resolvi trabalhar um projeto com temática bem definida. Ou seja, iniciei, mais ou menos naquela data, a construção do livro sobre a cidade. Quando fui realizar doutorado na Escola de Comunicação da UFRJ, em 1993, propus como tese desenvolver um trabalho a partir daquele longo poema que vinha escrevendo sobre a ideia de cidade: busquei então “explicitar” as fontes que havia utilizado para a produção do poema, “explicando” assim a sua gênese, ou melhor, descrevendo os processos e os caminhos utilizados pelo eu literário (ou subjetividade do autor, ou ainda a tal voz poética). Foram escritos, assim, vários ensaios que procuraram dar conta dos principais assuntos tratados no poema: entre outros, a presença da utopia desde Platão até a atualidade; o exame da história da cidade e de algumas ideias de urbanistas que sempre me interessaram; e um passeio pelas visões urbanas de escritores como Baudelaire, Eliot, Kafka e Joyce. Utilizei também a prosa poética na forma de uma passagem do poema para os ensaios. Enfim, busquei revelar, pela linguagem, os delirantes, complexos e labirínticos mecanismos daquele “monstro” que se convencionou chamar de megalópole, esse meio ambiente adverso a tantos sonhos e esperanças. Quando, recentemente, fui dar forma final ao livro, procurei estruturá-lo sem me preocupar com um formato de tese, montando os textos (e escrevendo novos) com total liberdade, de modo que o resultado ficasse o mais interessante possível para o leitor.

FM | No livro, recolhes inúmeros depoimentos. Um deles é de Ferreira Gullar: “Uma cidade/ é um amontoado de gente que não planta/ e que come o que compra/ e pra comprar se vende”. Contudo, o livro não se limita a uma visão pessimista do homem e de sua condição urbana. Sob esse prisma, qual a utopia do Afonso Henriques Neto?

AHN É isso mesmo: o livro busca uma visão bastante abrangente do assunto, não se limitando à óbvia crítica dos aspectos desumanos da megalópole. A grande cidade tem a nos oferecer também possibilidades luminosas. Minha utopia permanece na direção de um humanismo socialista: educação, saúde, habitação, trabalho, liberdade e lazer para todos. O cinismo contemporâneo pode até falar na ingenuidade dessa formulação, colocada assim de maneira tosca (afinal, todos querem isso), mas, do meu ponto de vista, o trabalho poético quer sempre contribuir para o sonho de se tentar construir um homem melhor, que possa viver numa sociedade mais tolerante, defensora da justiça e da paz (mesmo quando a poesia vem carregada de conflitos, de sangue, de guerra: reflexo da crua realidade que nos submete ou que, ao longo dos séculos, nos submeteu). Seja como for, sempre procurei pensar uma cidade mais democrática, socialmente mais equilibrada, mais humana, e, se o nome disso é utopia, sigo com ela.

FM | Numa entrevista à revista Azougue, observaste que “a cultura de massa em todos os seus desdobramentos, inclusive pelos caminhos da informática, tem levado a uma mudança para pior na construção de obras literárias”. Em depoimento à revista Poesia Sempre, destacaste “a profunda crise atualmente vivida em função da multipresença da imagem televisiva e de certo tipo de retórica imbecilizante que invade a comunicação de massa”. De que maneira a poesia se sente, efetivamente, impedida por tais aspectos, e o que tem se modificado nesses últimos oito anos em que supostamente os poetas já deveriam ter aprendido a combater essa pirotecnia?

AHN Vamos separar as coisas para que fique mais claro o meu pensamento sobre essa tal cultura de massa. De um lado coloquemos a literatura de massa: são, por exemplo, os romances escritos para um amplo público, seguindo determinados padrões de estrutura e de estilo, com situações e personagens modelados pelo (ou colados ao) senso comum (falamos de um Sidney Sheldon ou de um Paulo Coelho). É óbvio que há que se ter “talento” para bem trabalhar nesse registro, pois o sucesso não está garantido pela simples aplicação de fórmulas mais do que gastas. Do outro lado do estereótipo, se movimentam as estranhas atmosferas que trocam de sinal todo o tempo, um oceano que se move no registro da permanente invenção, o reino sem palavras que costumamos chamar de espaço mitopoético (e que só pode ser tocado, paradoxalmente, por meio da utilização dessas palavras há muito gastas). Roland Barthes vai dizer que a literatura é o logro consciente, o jogo inventado pelo escritor para fugir do lugar-comum, esse monstro emboscado na curva de cada signo, de cada palavra. É por isso que a poesia “vende pouco”, nada tendo que ver com o universo da comunicação de massa: no poema circula uma linguagem rarefeita, uma língua sem traduções nítidas, delírio a dançar o infinito (mesmo que seja só jogo…). Portanto, penso que o poeta não deve se preocupar em excesso com a retórica imbecilizante de toda a comunicação de massa (ela estará sempre presente em todas as mídias, na sociedade do dinheiro/espetáculo, no discurso do mesmo, da redundância): o poeta precisa é afiar as suas armas e gastar a sua energia na produção de uma obra que valha a pena. Pois todo mundo sabe que a arte ajuda demais na construção do sentido/caminho para uma vida mais rica, mais plena.

FM | Nos poetas da geração de 1970, havia um certo descuido com a linguagem. Saltamos de uma geração que aparentemente tinha o que dizer, sem saber como fazê-lo, para uma que aprendeu o domínio de uma técnica – mas que nada tem a dizer. Como vês essa passagem, havendo mesmo uma?

AHN O mundo literário, como tudo mais, não é simples. Disse uma vez, em entrevista, sobre a minha “impregnação literária”, fruto principalmente da convivência com o meu pai poeta e com os livros da biblioteca dele. E falei também de certo “descaso” dos poetas da minha geração com a linguagem e com a busca de uma sólida formação literária. Mas veja o exemplo do Cacaso, um dos bons nomes da geração: ele produzia muitos poemas com certo ar “largado”, trabalhando dentro do registro coloquial, com pitadas irônicas um pouco à moda dos modernistas de 1922, mas todo mundo sabia de sua excelente formação literária, sendo ele inclusive professor de literatura (o ar “largado” era uma construção consciente). O mesmo aconteceu com a Ana Cristina César, com o Eudoro Augusto. O Francisco Alvim também produz obra bem construída e de grande força lírica, e nos seus poemas sempre ficaram nítidas as influências de vários mestres, como Drummond e Bandeira. Chacal, que já pertence ao time dos que não lidam de forma contumaz com o passado literário, aposta mais no seu “faro” poético, produzindo um trabalho de muita qualidade. E assim a coisa vai. A minha crítica ao “relaxo” de alguns poetas pode ser aplicada em qualquer tempo. O problema é que, como a tal “geração marginal” trabalhou muito no campo do coloquial, ficou mais difícil separar o joio do trigo. Mas ainda prefiro a atitude visceral da geração de 1970 do que certa retórica beletrista que vem povoando os livros de hoje: não basta o domínio técnico, uma certa postura formalista, para se fazer um bom poeta. O melhor, talvez, seja juntar as duas coisas: visceralidade e consciência técnica. Mas uma coisa é certa: se você quiser mesmo saber o que é grande literatura, siga os passos de Ezra Pound e procure Homero, Safo, Propércio, Catulo, Dante, Shakespeare, Camões, Fernando Pessoa. No Brasil, Gregório de Matos, Gonçalves Dias, Castro Alves, Augusto dos Anjos, Alphonsus de Guimaraens, Cruz e Sousa e os modernos.

FM | Concordamos em relação a Jorge de Lima e Murilo Mendes. Eles “alcançam grandiosidade imagética a partir de um catolicismo vivido na profundidade da presença de um Cristo cósmico, arquiteto de todas as tessituras da vida e da morte etc.”. Encontramos essa mesma dimensão ou zona de tensão, por exemplo, em um poeta como o boliviano Jaime Sáenz (1921-1985). No Brasil, Jorge e Murilo acabaram sendo vítimas de um duplo preconceito, mal compreendidos ora por serem católicos, ora por serem surrealistas. Essa ausência de uma coexistência de princípios opostos entre nós não te parece impeditiva de certo crescimento existencial, garantia inclusive de uma miserabilidade intelectual?

AHN Sem dúvida alguma. Murilo Mendes e Jorge de Lima foram “esquecidos” por longo tempo por serem católicos e desenvolverem suas imagens a partir da estranheza do universo surrealista. Até hoje ainda esbarramos com esses preconceitos, apesar de eles se encontrarem mais diluídos. Acho que Murilo e Jorge são atualmente curtidos com mais liberdade, sem essa bobagem de “esquerda” ou “direita” no mundo da qualidade literária, e isso é muito bom. A verdade é que os melhores poetas apresentam sempre múltiplas faces no seu trabalho, pois a mente humana não é linear, e sim exemplo bem-acabado do que hoje se costuma chamar de campo da complexidade.

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>>> POEMAS <<<

FORJA

Forja dos deuses de olhos de insônia
eis os instrumentos de vossas chamas
os metais ferventes de vossas insânias
as sementes de relâmpagos
que vieram acender palavras tormentosas
verbos a rasgarem o granito
o fundo do firmamento
o tecido silencioso do mito.
Não haver poesia
sem o hálito em fogo de maresias.


QUASE CINZA

eu sei onde ladram os ventos pelos ladrilhos
dos mistérios inexistentes.
eu sei de que matéria esta sensação de derrota
é feita, moldada, entre instrumentos de tortura
e pálpebras e espelhos amassados.
eu sei dos que falam no escuro a flauta da voz
das fábulas.
eu sei através do vídeo o vácuo do sangue atrás e além
da imagem, violentos planetas vomitando o drama.
eu sei as tartarugas infinitas.
os bodes expiatórios.
os lavabos cheios de unhas vivas.
a eternidade do gesto humano
morrendo no longo tombadilho.
sei das certezas e incertezas verdes.
sei do resumo de tudo a dançar na chuva mais cotidiana.
só não sei do teu sorriso se diluindo em nuvem.
só não sei do teu corpo quase infantil
de mulher amanhecida.
só não sei do timbre de tua voz
entre borboletas e musgos fluindo do único verbo.
só não sei do opalescente rastro de teus pés
entre cachoeiras apagadas.
só não sei da galáxia a resumir vazia
o silêncio mortal de tua alma quebrada.
ai de mim
que eras ouro e breve.


RELÂMPAGOS PODRES

O plágio é necessário. O progresso o implica.
Segue de perto a frase de um autor, serve-se
de suas expressões, apaga uma ideia falsa,
substitui-a por uma ideia justa.

LAUTRÉAMONT

Não deixem que apagados cabelos
brotem outra vez da cabeça decepada.
Não deixem que o poema puxe a carroça
dos sonhos destroçados.
Ou seria justo o contrário?
Lautréamont dizia que os juízos sobre a poesia
têm mais valor que a própria poesia.
Pois são a filosofia da poesia.
Esta não poderá prescindir daquela
mas a filosofia poderá dispensar a poesia.
Abra mão dos sinistros mistificadores
e o poema escorrerá nos gramados azuis do infinito.
Todo pensamento é uma pedra de azul imenso.
Uma espada de relâmpagos em chão de música coagulada.
O pensamento a empurrar no vento o poema imemorial.
Ou deixemos que apagados cabelos
brotem ainda nas cabeças condenadas.
O verso é este cogumelo espinhento
a nascer sobre os escombros de tantos outros desatinos.
Os nomes e os traços dos mortos se vão esquecendo
igual a essas folhas que se acumulam no chão
e logo são varridas por ventos insensatos.
Para quê tamanha destruição?
Por que tão louca repetição?
As coisas permanecem ano após ano
no eterno e absurdo diapasão
de folhas sobre folhas tocadas pela tempestade
que espedaça cada um dos espelhos
sob as imagens dos tormentosos fluxos
de um sangue a cobrir os nomes e os traços
de todos os mortos da terra.
A divindade sempre será algo sinistro e alto
pois jamais tocaremos seus jardins abomináveis.
Construímos um amontoado de casas soporíferas
imaginando espantar o sono
que se espalha em aranhas pustulentas
fluidos magnéticos a arranharem os extremos dos olhos
tal um ser hipnotizado que despedaça o silêncio
com uivos de carvão
antes que o silêncio cresça
sobre o horizonte opaco e decepe os braços abertos
para o amor que nunca alcançará a luz
nesses velórios abafados.
As palavras são relâmpagos podres
que imaginamos iluminados por uma violência
que a tudo deixará de rastros.
E ainda há quem diga que seremos julgados
nesta montanha de poeira que os ventos varrem
para além dos portões dos crematórios
bocarras prateadas e desdentadas
a se esfumarem por todas as esquinas
dessas cidades de esfinges e manicômios.
Não haverá alma que suporte tanta carnificina.
As palavras vazias escorrem detrás deste disfarce
de julgamento
desta farsa de um tribunal construído sobre ossos
e orgias de ópios vomitando abismos.
Os nomes e os traços dos mortos são centopeias sem pernas
que deslizam sobre as pústulas de prostituídos universos.
Por isso as religiões tentam abafar com perfumes tardios
os narcóticos miasmas de uma podridão sem remédio.
Os nomes e as digitais dos mortos se esquecem
nas estradas dos seres imaginários.
E os cogumelos crescem para a asfixia de todas as traqueias.
Uma voz a escorrer tal um rio gelatinoso
diz que nada é incompreensível
mas eu me volto para o punhal das pulsações em coma
que salta da nuvem de concreto e horror
e vem atravessar os corações assustados das andorinhas secas.
Tudo se torna então travessias sem sentido
e o pouco que tentamos compreender
se apaga nas nuvens de uma tempestade amordaçada.
E veremos os serafins que se apunhalam até os confins do tempo.
Se alguma divindade provocou a expansão inicial
deste universo de inimagináveis dimensões
emendado a outros que nem podemos sonhar
o certo é que os deuses deixaram que tudo trabalhasse
a esmo e ao cósmico vento sujo a se inchar
em cogumelos que sufocassem cada garganta
cada silêncio das cores sobre planetas do escombro.
O suicida então caminhou no vento em cãibras
dispôs no chão o casaco e outros pertences de treva
antes que os instrumentos tenebrosos fluíssem do inferno
e viessem arrancar a pele dos recém-nascidos
ao som dessas flautas de excrementos
sirenes da ausência de todos os sentidos.
Mesmo sabendo ser inútil entoar cânticos
para uma primavera saqueada por mortíferas aranhas
exigirei o carimbo que ninguém reconhecerá na testa
do primeiro morto no primeiro dia da criação
essa montanha de estrume para celebração das bactérias infecciosas
a ruminarem uma humanidade tombada nos iodos das infecções.
E será do alto das cordilheiras onde se esmagam espectros
que se entronizará o grito de Altazor, pois quantas vezes
serei Altazor, o imenso poeta,
cérebro forjado em verbos de profetas,
angústia semeada nas planícies dos olhos
na forma deste adorno de um deus alucinado?
Altazor ou Maldoror?
Navegar onde for.
Águias negras de uma gramática brutal
motores dos cadáveres em céus de estupor.
Cantos de Maldoror, fúrias de fervente cristal,
maldição a ganir além da dor.

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