Floriano Martins, poeta, editor, ensaísta, tradutor, letrista e arista plástico. Tem se dedicado, em particular, ao estudo da literatura hispano-americana, sobretudo no que diz respeito à poesia. Vários livros publicados, que incluem poesia, ensaio, traduções e antologias. É diretor da Agulha Revista de Cultura, juntamente com Márcio Simões, e da coleção “O amor pelas palavras” (coedição Editora Cintra/ARC Edições), ao lado de Leda Rita Cintra.
Espinhaço de Bjork
Meus olhos reconhecem a paisagem guardada em tua voz.
A colina acidentada do tempo que tão logo a escalamos dá em outra com
sua imensidão de reflexos hospedados no desejo.
A folhagem líquida de meus olhos reconhece os segredos que fomos
esquecendo enquanto me perdias por trás de cada beijo.
Escrevo que vim apenas te buscar,
e tudo à nossa volta transcreve as vertigens mais íntimas.
Os meus olhos abrigam a paisagem refeita,
o lápis numinoso de tua voz onde o tempo recobra suas árvores.
Silhueta ancorada no abismo com seu plano decifrado pelo acaso.
Escrevo o que soletram as tuas costelas,
eco entrecortado de silêncios onde a noite transborda.
Quantas luzes deformam os vultos que foram por ti compostos para meu
regresso?
Será verdade que já estive aqui alguma vez?
Quantos ficamos antes da multiplicação de tua voz?
Ninguém saberia dizer o que acontece agora se começas a cantar.
Braços de Janis Joplin
Recorto teu corpo uma vez mais, até que a memória revele a música por
trás de seus truques.
Seios me dizem quais luas irei encontrar a caminho, os traços sutis do
vento, a vegetação anotando planos sobre a pele que talvez não sejam
cumpridos.
O olhar descreve um secreto ninho de acidentes.
Onde estás? Os objetos à volta recusam a tua ausência.
Os dias estão desaparecendo e já não reconheço a cor de tua queda.
Pérolas apreendidas na bagagem do mito.
Sombras escorregadias no leito da oração com que tinges a palidez de
minha dor.
Respiro o teu nome e volto a conferir os rascunhos que fiz de teu corpo.
Eras nuvens ativadas dentro do espelho da paisagem, fragmentos de
abismo que não chegamos a mastigar.
Sonhos empoeirados que guardamos para outras noites.
Um tufo de imprevistos deixado embaixo da cama sem motivo algum.
Os teus dias passaram todos comigo. Jamais saímos daqui.
Ao recolher aqueles esboços todos um deles resplendia no arquivo como
uma fagulha.
Dediquei-me então à façanha de criar esta tua última astúcia.
Mãos de Clarice Lispector
Uma última noite contigo e as palavras se foram todas.
As tuas mãos sempre atuaram como um narcótico porque deixei diversas
vezes o mundo passar frente a meus olhos.
O que fazemos são anotações de um incerto fogo que nos guia.
Guardo teu nome e com ele me movimento de uma sala a outra de um
labirinto que ainda não sei ao certo se compreende sua razão de ser.
Toco a tua pele quase invisível e me deixo invadir pelos rumores de sua
inquietude.
Gosto de começar a viver pelo teu nome.
Um dia imaginei um bosque em que os teus lábios traduzissem toda a
folhagem.
Não somos uma fábula, somos?
Sempre penso em ti como uma infância perdida.
Difícil aceitar que seja a minha.
Eu te amo como um plano de fuga ou foste exatamente a primeira mulher
em minha vida?
Ler é o que toca aos olhos e tudo o que vemos se transforma em nova
miragem.
Talvez as palavras se gastem menos que a realidade de seus temas.
Porém não fazemos ideia se o que tocamos não é senão a palavra.
O mundo sempre se desfez por um excesso de bíblias.
Frank Zappa
como abrir o olho da noite a história do olho cravejado de visões
o espetáculo da lágrima tropeçando na verdade de seus mitos olimpo
desgarrado
pranto de máscaras recriadas a partir das cicatrizes o olho que faz rir
o olho que cobra em riso a função teatral a cada noite debruçada na
corcova do mistério
nada está fora do precipício da balança da lixeira de pedra o olho
implacável diz que tudo é humano que ele próprio é humano que o
humano não faz ideia do que não seja humano
que o homem chora e ri no deserto de suas indagações aparência é
renúncia
a lâmpada crescendo no centro do olho é a essência pendular de todas
as ilusões
os músicos recortam o cenário para estimular a ironia o olho
transbordando fagulhas
pérola em chamas bosque recostado em cada pupila chora a terra o
húmus de sua dor
o homem mastigando a raiz do desvario besta recriada por si mesma
deus protetor apenas do chapéu do invisível
olá minhas musas por onde andaram com seus romances de falos
enlutados?
minhas carolinas que graças ao segredo da pilha nunca souberam o que
é ficar sem nada na vida
facho de luz cacarejando como uma velha índia bêbada que rasga as
entranhas do destino e dali retira ainda quente o instante em que o
homem se perde de si e se põe a rir fatigada
não há música fora do palco
trevo de angústia trevo de remorsos trevas mordidas
não há café expresso camisinha com sabor framboesa música de
Albert Ayler nada fora do empório da relutante espécie perdida
os deuses se riem de suas potências obscuras
o rock não me ouviu muito bem o blues muito menos jazz por onde
andei
a caixa de luzz deixada na soleira do fabricante de fogos de artifícios
o sexo tem uma pontinha preta de orgulho onde fica? onde fica? no
olho sagrado da noite que planeja os melhores furtos
ao contrário do que possam pensar todos vocês eu sou mesmo daqui
Hermeto Pascoal
o tocador quer beber
um chá de vísceras as entranhas do mito passarinho aboiando
nuvens
franzindo a testa do acaso eu juro que vi o que ninguém podia o
universo soprado ao revés a tarde costurada na boca do sapo
silhueta do som que só podemos fazer juntos
eu fico assim só de ver o céu desfolhado por dentro
o trevo de quatro quimeras que era para ser e não foi escondeu a
pastagem dentro do bolso
onde eu fui te buscar a surpresa havia encantado outro nome
um tufo de luz matutando na escuridão
a festa peneirando ritmos por todo o casario
eu criei os meus meninos para que a viagem devore a própria cauda
a flauta que soprei no coração indo embora de Cannonball Adderley foi
para dizer que ele se sentisse livre para ir ou ficar
e dizem que deus é intocável
quem quer uma capelinha plantada no varal que venha beber o sol na
palma da minha mão
eu toquei tuba dentro da escaleta a chaleira imitando um coreto místico
cigarras solfejando o milagre da existência
eu fui pegando os pedaços do mundo que ninguém soube mascar
soletrando o pavio dos desencontros ouvindo a sinfonia que alguém
deixara de escrever
nunca soube amar a vida de outro jeito ela sempre me dizendo toque
mais um pouquinho eu fui o seu bebê em tudo
irredutível sede não sei parar de nascer
Poemas quase prosa em que o lirismo desafiador faria João Cabral sorrir. Poesia memória de sons, corpos, suores, gemidos eletrônicos e, principalmente, poesia poética…