Elio Ferreira, a palavra como martelo de Ogum

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Entrevista concedida a Aristides Oliveira, Demetrios Galvão e João Paulo Peixoto, em março de 2018. Teresina, PI.

“Poesia, poesia / Sou o teu Cavalo”

Elio Ferreira é um ser regido pela intensidade – poeta, professor, pesquisador, militante negro, capoeirista. Filho de um ferreiro e uma mãe costureira, nasceu na cidade de Floriano, sul do Piauí, em 1955. Segundo ele, o que mais fez na vida foi ler livro. O seu percurso de vida não foi fácil e nem se deu parado em um único lugar. Morou em várias cidades, enquanto ia disseminando sua poesia e fazendo sua formação no campo das letras, até se tornar doutor. Hoje é professor da Universidade Estadual do Piauí – UESPI.

O poeta que martela palavras na cabeça dos caretas é um artista da performance, da vocalização enfurecida. Foi o criador da Roda de Poesia e Tambores que ampliava a palavra poética pelo coro-esticado da vibração africana, responsável por sustentar por uma década o principal sarau da cidade de Teresina.

Além de sua atuação com a poesia, Elio Ferreira é uma das figuras à frente do maior encontro acadêmico de literatura, história e cultura afro-brasileira e africana do país, o ÁFRICA BRASIL, nome fantasia do Encontro Internacional de Literaturas, Histórias e Culturas Afro-Brasileiro e Africana, que hoje se encontra na sua quinta edição.

Nos últimos dez anos, vem se dedicando mais ao ensino, à extensão e à pesquisa. Acredita que a educação é o melhor caminho para transformar as pessoas e mudar as realidades tão injustas e degradantes do Brasil, sobretudo no que diz respeito aos jovens negros, aos direitos sociais da população negra e ao direito territorial das nações indígenas.

Elio Ferreira publicou os livros de poemas: Canto sem viola (1983), Poemas de nordeste (1983), Poemartelos: o ciclo de ferro (1986), O contra-lei (1994), O contra-lei e outros poemas (1997), América negra (2004); e os livros acadêmicos: Literatura e cultura afro-brasileira (2013), Poesia negra das Américas: Solano Trintade e Langston Hughes (2006), dentre outros.


Elio, você é um professor de literatura da Universidade Estadual do Piauí (UESPI), com vários livros de poemas publicados e um vasto currículo acadêmico de estudos dedicados à literatura negra. Fala um pouco sobre como se deu o seu início na literatura e o seu percurso como poeta.

Minha vida é e tem sido uma longa caminhada. De início, foi a literatura oral que me seduziu, me encantou. As histórias contadas pelo meu pai, minhas tias, tios, pessoas mais velhas, amigos, vizinhos da minha casa, exerciam sobre mim um inexplicável fascínio e magia. Essas histórias mexiam muito comigo, com o meu imaginário. Um fato inesquecível e dolorido marcou a minha infância: a morte da minha mãe, quando eu completara seis anos de idade. O primeiro poema de minha autoria, que eu falei em público, foi numa festa em celebração ao Dia das Mães, realizada pela escola em que eu estudava. Muitas mães presentes choraram. De 1973 a 1975, entre 17 e 19 anos de idade, publiquei os primeiros poemas no Tribuna do Sul, jornal impresso de Floriano, Piauí, minha cidade natal. Os versos eram de teor lírico e crítica social.

Quando, em abril de 1976, peguei um ônibus para Brasília, pensava em conseguir um trabalho e ingressar no curso de Direito. Eu era um ferreiro e bombeiro hidráulico, com o Ensino Médio completo, hoje Ensino Básico, e um curso de datilografia concluído, deixando para trás vários poemas, que se perderam, numa velha “galo-de-briga”, mala antiga e rústica, feita de madeira. Naquele momento, já havia publicado alguns poemas nos jornais de Floriano, recitais em serenatas e eventos escolares. Carregava na bagagem a leitura de alguns romances de Alencar, Machado de Assis (a tríade machadiana), Jorge Amado, José Lins do Rego, José Mauro de Vasconcelos. Poemas de Gonçalves Dias, Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Humberto de Campos, Castro Alves, Da Costa e Silva, poesia de cordel, canções de bumba-meuboi, inúmeros contos da tradição oral etc. Também levei na mala um livro de poemas, que felizmente não o publiquei por completo, somente o poema O POVOADO DE MAIACÁ, no livro Canto sem viola (1982).

Quando parti da minha cidade natal, não sabia muito bem o que eu queria ser, mas estava certo de que queria escrever livros, ser um poeta. Imaginem. Escrevi o primeiro poema aos nove anos. Por bem dizer, não o escrevi. Apenas fiz um improviso, somente o escrevi tempos depois, embora nunca o tenha esquecido: “Tucano, tucano / Tu engoles um homem? / Engulo, engulo até você / Quando você quiser morrer / Pode vir, pode vir / Onde estou eu”. Eu queria ter tempo para trabalhar e ler livros. Ler muitos livros. Então o caminho mais próximo seria estudar Letras. Fiz essa escolha sem saber muito bem o que seria se formar em Letras. Mas em 1979 me formei e hoje sou Doutor em Letras pela UFPE.

No Brasil, a ascensão social das pessoas negras é muito difícil, um caminho muito acidentado, muros difíceis de transpor. Mas não podemos nos intimidar com esses obstáculos, que são paredões de racismo e hipocrisia muito desonestos e cruéis, sobretudo porque o racismo no Brasil é dissimulado ao extremo e mais do que isso – homicida. As estatísticas comprovam isso, mais de 72% dos jovens assassinados no Brasil são negros. Isso é assustador, mas o poder público e a maioria das pessoas acham isso um fato normal. Nós, os negros, somos cobrados em triplo. Principalmente quando assumimos nossa história e negrura, o compromisso étnico e vital em defesa da igualdade de direitos.

Em 1979, concluí o curso de Letras. Na ocasião, trabalhava como Agente Administrativo no Ministério da Agricultura. No mesmo ano, transferi-me para Campo Grande, capital de Mato Grosso do Sul, a convite da Dra. Luíza e seu esposo, Dr. Martins, meus colegas de trabalho, para montar a Diretoria Federal da Agricultura em Mato Grosso do Sul. Dona Luíza era tia de Torquato Neto, prima legítima de Dr. Eli, pai de Torquato. Em Campo Grande, fiz teatro amador engajado ao problema do latifúndio, sob a direção do dramaturgo Marlei Cunha. A partir de 1982, publiquei o primeiro livro de poemas: Canto sem viola. Juntamente a poetas jovens sul-mato-grossenses, como Alex Fraga, Gutemberg, Altair, Guimarães, Marlei Cunha, criamos o Movimento de Poetas Independentes de Mato Grosso do Sul. Tornamo-nos um grupo forte. Realizamos o primeiro grande evento de poesia em Campo Grande, contando com a participação especial de alguns músicos amigos. Mobilizamos a imprensa, a televisão, o rádio. Lotamos o local da I NOITE DE POESIA DE CAMPO GRANDE, levamos mais de trezentas pessoas para o Paço Municipal, principal espaço de evento da cidade naquela ocasião, 1983. Fizemos caminhadas poéticas em homenagem ao poeta Manoel de Barros, de quem me aproximei, fizemos boas amizades e de quem tomei algumas lições de poesia, que me foram muito frutíferas. Fizemos inúmeros recitais em bares, praças públicas, universidades, em favor da preservação do Pantanal e do meio ambiente, das Diretas–Já, contra a repressão militar, contra a violência de fazendeiros latifundiários e grileiros das terras indígenas, cuja barbárie culminou com o assassinato de Tupã Y, Marçal de Sousa. Acerca desse episódio nefasto, escrevi o poema Tupã Y, publicado na ocasião em um jornal impresso de Campo Grande e na primeira edição de O Contra-lei.

Em fevereiro de 1984, regressei a Brasília no momento dos comícios e manifestações em favor das Diretas–Já. Vi a cidade sob a vigilância e proibições decretadas pelo Estado de Sítio do governo militar. Também me engajei ao movimento dos artistas de Taguatinga com recitações de poemas durante shows em prol da eleição direta, do voto popular para escolha do Presidente e Governador, antes nomeados pelo Regime Militar. Ainda em 1984, ingressei no Movimento Negro Unificado – MNU e na Revista Trabalho, segmento do Partido dos Trabalhadores. Aproximei-me dos poetas marginais de Brasília e participei de vários recitais em bares noturnos, eventos e locais públicos. No MNU, atuei como ator e codiretor na montagem de uma peça sobre Robson da Luz, operário negro que fora torturado e assassinado pela polícia do governo militar, motivado por racismo.

Em fevereiro de 1985, regressei ao Piauí, para minha cidade de origem. Participei do Movimento Cultural de Floriano. Junto a esse grupo, editamos o programa de vocação literária, cultural e social, Quintal Aberto, que se manteve ativo de 1985 a 1989, publicamos algumas antologias de poemas, realizamos encontros, promovemos shows, teatro, recitais de poesia, debates políticos, campanhas de preservação do meio ambiente, de florestamento da ‘beira-rio’ do Rio Parnaíba. Em 1986, publiquei o meu terceiro livro de poesia, Poemartelos: o ciclo do ferro. Em 1990, transferi-me para Teresina. Neste ano, publiquei uma série de oito artigos sobre a poesia de Torquato Neto, além de vários artigos sobre a representação do negro e o preconceito racial na obra de autores como Aluísio de Azevedo, Carlos Drummond de Andrade e Guimarães Rosa, resultantes de ensaios escritos durante a especialização em Literatura Brasileira, realizada no PREPES/PUC/BH.

Foi também em 1990 que me vieram as ideias de falar meus poemas com megafone. Aquele fora um ano de intensa inquietação e crise política brasileira, governo do Presidente Collor de Melo. Foi também um ano de efervescência cultural e intensa criação para mim. Não havia muito espaço para eu falar os poemas, que me magnetizavam em noites de vigília. Confeccionei camisas com poemas. De um único poema, fiz uma edição de oitenta camisas, que se esgotaram rapidamente. Consegui emprestado um megafone grandão do Sindicato dos Bancários e mandei ver. Pintava a cara. Fiz, de uma bandeira do Brasil, um parangolé. Revezava a indumentária com uma capa preta, emprestada dos amigos do teatro: Francílio e Francisco Pinho. Falava poesia nas praças, avenidas, estações de metrô, rodoviárias, universidades, escolas, palcos de manifestações políticas, igrejas, parques de diversões, eventos culturais, bares, da sacada de prédios, de telhados de casas, adros de igrejas etc. Em 1992, durante o EREL, em Fortaleza, na UFC, depois de vários recitais e duas palestras lotadíssimas, ganhei de presente do DCE e da organização do evento um megafone menor e mais fácil de manusear. Depois disso, realizei diversas performances com megafone por diferentes cidades brasileiras, como Teresina, Fortaleza, Campina Grande, Brasília, Campo Grande, São Paulo, Aracaju, Recife, Floriano, Campo Maior, entre outras cidades.

Elio Ferreira encarnando o personagem Contra-Lei. Performance poética em frente ao Palácio de Karnak, Teresina. Década de 1990.

O que levou você a compreender a importância da prática poética na sua vida?

Talvez a poesia tenha sido o meu bem e o meu mal. Ela aponta o percurso da minha vida. Foi e continua sendo uma das grandes paixões da minha vida, embora, no momento, eu esteja mais afeito a escrever fábulas, recontar as histórias que ouvi na infância. A poesia quase me matou e também me devolveu ao recomeço de tudo. A poesia me ensinou a fazer a leitura do mundo. A ler os sinais e os significados da vida. A poesia também tem senso de beleza, justiça e correção de mim mesmo e do mundo. O poema “Poesia, poesia” traduz, creio, meu apego, abandono, epifania e retorno à condição inicial de nada-feito, tudo por fazer, estaca-zero e fragilidade da utopia humana.

Quando você despertou para a performance poética? Comenta as suas atuações caracterizado com figurino e maquiagem. Como era esse personagem, o “Contra-Lei”?

Sentia-me sufocado com a criação intensa dos poemas que vinha escrevendo. Sentia-me angustiado com a ausência de espaços para falar meus poemas. Eu acreditava que meus poemas e um megafone poderiam interferir na vida política do Brasil, melhorar a vida das pessoas, mudar o mundo. Perguntei a mim mesmo onde falar aqueles poemas, que a mídia recuava e se assustava quando nas manifestações do Trabalhador Sem-Terra, sindicatos classistas, manifestações do movimento negro se arremessava contra as instituições, tão duvidosas quanto à sua licitude. Eu também não tinha noção (e ainda não consegui ter, de fato) do significado dos meus poemas para o meu tempo.

Hoje, depois de vinte e quatro anos da primeira edição do O Contra-lei, muitas pessoas que foram lideranças de movimentos sociais têm confessado pessoalmente para mim – “Como tuas poesias me davam coragem e ânimo ao te ouvir recitar”. Eu também sempre acreditei que os meus poemas não só protegiam a mim mesmo como aos meus filhos, minha mulher, meus familiares e amigos. Há poemas que tenho como uma infinita oração e invoco-os, recito-os, para afastar e eliminar as interferências das energias negativas e o mal. Ah, antes que me esqueça, quero repetir o que dissera antes em outras ocasiões. Uma vez, na Roda de Poesia & Tambores, fizemos um recital para chover. E choveu. Era mês de novembro. Estava muito quente e seco. Reunimos poemas que falavam de chuva, de água, com acompanhamento da alfaia, da timba, do caxixi, agogô, cabaça, maracás, instrumentos de chiados para evocar a chuva. E choveu. Choveu muito naquela sexta-feira.

Devo a divulgação dos meus poemas sobretudo à publicação nos jornais impressos de Teresina – O Dia, Diário do Povo e Meio Norte, como também às rádios de difusão e mesmo à TV, onde costumava falar meus versos. Sou muito grato a jornalistas como Ana Kelma; ao falecido poeta e jornalista RAL; ao Kenard Kruel, Magalhães, Marco Vilarinho. E ainda aos programas de TV da Maia Veloso, Amadeu e muitos outros que abriram espaço para mim e a poesia.

Por que pintar o rosto? Isso vem da minha ligação com a ancestralidade, os meus ancestrais africanos, negros e indígenas. Pintar o rosto e o corpo me dava força, energia, vigor poético, criatividade, repente, coragem. Eu estava antenado com o mundo ao meu redor, numa atmosfera de magia inexplicável. Era uma sensação de ser um “cavalo” da poesia: “Poesia, poesia / Sou o teu Cavalo”. (…). “Todo mundo quer ser Deus / e Deus é Deus”. – Diz O Contra-lei. Eu não era somente eu. Éramos muitos falando por minha boca e da minha boca. Muitas vozes, milhões de vozes dentro de mim. De dentro de mim, para mim e para o mundo. Era uma sensação de estar aqui, perto muito perto dos fatos e acontecimentos, querendo interferir nas relações, nos acontecimentos, mas que também estava no além, captando energia na ancestralidade. Algo assim, num trânsito de realidades passadas e presentes. No entanto, estava muito consciente de cada palavra proferida.

Como era esse O Contra-lei? Usei esta palavra para seduzir, encantar e traduzir a poeticidade da minha insatisfação contra a falta de compromisso político. Foi um grito, e continua sendo, contra a tal maldita corrupção dos maus políticos brasileiros. O fato é que sempre me dediquei no labor poético, na música, nas imagens e encantamento. Na época, eu era funcionário público, concursado, um Técnico em Assuntos Educacionais, nível superior, na Delegacia Regional do MEC, em Teresina, e professor de Literatura na UESPI. Percebi de perto a prática incorrigível e a prepotência dos representantes do poder. A Lei a serviço dos gestores e seus aliados políticos. Tal situação, hoje, parece ter se tornado mais grave ainda. Um câncer progressivo, que se alastrou pelos gabinetes, pastas e bancadas do governo atual. Portanto, ser O Contra-lei significa ser contra a Lei do poder estabelecido, esse poder que é o mal, a corrupção, a violência, a falta de compromisso com o bem-estar e os direitos humanos do homem e da mulher. O mais grave na vida política do nosso país é o cinismo dos políticos brasileiros. O homem cínico é um incorrigível. Além da gravidade do racismo, do machismo, da homofobia e a desonestidade de uma grande parcela de brasileiros.

Eu também fui o criador e a criatura. Não distinguia o poeta do poema. Não separava a obra de mim mesmo. Eu era as duas coisas ao mesmo tempo, pessoa e protagonista/personagem da minha criação. Vivi a mesma dimensão do personagem que criei. A minha poesia tinha muito senso de justiça, engajamento, revolução social, moral e estética. Busquei na ancestralidade, na minha experiência de ferreiro na oficina do meu pai, nas batidas mágicas e encantatórias do tambor, os ritmos dos meus versos, cantados com instrumento ou sem instrumento musical. O martelo na bigorna, o martelo contra o ferro. O ABRACADABRA ABRA ABRACADABRA. O BATE MARTELO TEM TEM. O TAMBOR TUM TUM. O BIT BIT DIGITANDO BIT etc. Esses sons e imagens onomatopaicas e mágicas inebriavam a mim e ouvintes, crianças e adultos. Foi algo que se intensificou com a repetição, com mais de trinta anos de intensa criação da poesia. Queria ser apenas um poeta e isso foi muito para mim. Tão bom quanto ter filhos, amar uma mulher, lutar pela preservação do meio ambiente, lutar a favor dos direitos humanos e contra o racismo e racistas desprezíveis.

Gostaria que pudesse comentar e traçar alguns pontos de aproximação e de afastamento entre os teus livros “O Contralei” e “América Negra”?

O Contra-lei foi uma espécie de furacão da descolonização e desobediência da poesia brasileira dos anos 1990. Um livro do aqui-e-agora. Escrito para ser cantado, dançado, recitado, falado, gritado na rua, em lugares públicos, acompanhado ou não por um instrumento musical. O Contra-lei é um livro de fronteiras, de trânsito e confronto social e estético, de evocação e invocação da força e magia da Palavra, da Natureza, dos Orixás, de Deus, do Universo para a poesia. Referindo-se a este livro, dissera Lourdes Teodoro: “A poesia de Elio Ferreira faz rir as crianças e estremecer os adultos”. Creio que a evocação da palavra “ABRACADABRA abra abracadabra”, repetida, fragmentada, rearticulada, magnetizada, sonorizada junto aos sons do “tem-tem-tem” do MARTELO contra o ferro, o “tum-tum-tum” do TAMBOR, o “bit bit digitando bit” do COMPUTADOR, a contundência e eloquência dos versos, adicionados à cara pintada de pasta branca, o cabelo rastafari-moicano, o parangolé, a capa preta, tenham sido efetivamente os principais motivadores das minhas performances, responsáveis pelo encantamento das crianças, sedução dos jovens e temor dos adultos.

O poema do martelo, pela sonoridade e poder de sedução e encantamento da própria palavra, marcada por sons de metais, martelos, bit bit de computador e tambores, pelo som onomatopaico e a performance dos versos recitados. A palavra abracadabra por si só, na sua origem, já remete à força e magia da ancestralidade, pois, segundo a tradição, essa palavra era evocada pelos sacerdotes e bruxos do bem para afastar os maus presságios, calamidades e ruínas das aldeias e povoações. Outros metais, livro II, do livro O Contra-lei, é um livro de ficção científica, premonitório, que fala de energia solar como energia do futuro, de naves espaciais movidas a energia solar, de exportação de energia solar do Piauí para o Japão etc. Mas esse livro tem passado desapercebido. Já o livro I, O Contra-lei é um livro de crítica social e demolidor de valores morais ocidentais, sobretudo a moral judaico-cristã, se levado ao pé da letra. Também uma espécie de metapoema que recupera a tradição genesíaca da poesia, não apenas por aproximar a poesia da música, da canção, da tradição oral, mas por ser a própria música e não se distinguir desta.

O Contra-lei cumpriu sua parte como poema, que recupera a oralidade dos cantos e canções dos nossos antepassados africanos e indígenas. Um retorno à matéria prima e sábia da poesia para o contexto brutal da sociedade contemporânea. Enfim, O Contra-lei parece estar além da minha compreensão. Há poemas que não recitaria mais, não porque tenha me arrependido de escrevê-lo, mas porque sou outras experiências como homem depois que escrevi este livro.

América Negra (2004) e América Negra & outros poemas (2014), são livros essencialmente narrativos e de caráter étnico-racial, de memória ancestral, experiência pessoal e coletiva da diáspora africana, de narrativas da escravidão e racismo contra o negro no Brasil. É um livro didático, que conta das guerras de captura, sequestro e exílio do africano nas Américas, da invisibilidade social e do genocídio do negro brasileiro. O Contra-lei e América Negra se aproximam no quesito do engajamento étnico-racial e social, na oralidade, embora o América Negra esteja mais próximo do poemaprosa, da narrativa eloquente e didática dos antigos contadores de história da tradição africana. O Contra-lei é um poema para ser cantado, performado e acompanhado por tambores. Um poema inventivo no poetar. São versos de confronto e destronamento da hegemonia poética ocidental. O América Negra seria a construção e re-territorialização de cosmogonias, experiências sociais, histórias, gêneses, narrativas mítico-poéticas da diáspora africana no Brasil.

Capa da primeira edição de O Contra-Lei, 1994.

Por muito tempo, você organizou, no centro da cidade, no Clube dos Diários, a Roda de Poesia e Tambores. De onde veio essa ideia? Fala um pouco da dinâmica do evento.

A experiência com movimento e grupo literário de poetas foi sendo construído numa trajetória de várias experiências. Mesmo em Floriano, quando retornava das férias da faculdade e do trabalho de Brasília, nos reuníamos na beira-do-rio com poetas e músicos e fazíamos recitais. No entanto, de forma mais organizada, como já me referi em páginas anteriores, a experiência inicial foi em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, quando juntamente a um grupo de poetas, criamos o Movimento de Escritores Independentes de Mato Grosso do Sul, durante os anos de 1982 a 1984. Em Teresina, conheci os recitais do bar Nós & Elis, nas quartas-feiras poéticas, nos anos 1986-94. Mas a ideia da Roda está relacionada diretamente à tradição cultural de matriz africana. As rodas de capoeira me despertaram para a noção de canto e movimento. As performances de rua, que realizei durante dez anos, foram também ingredientes fortes para isso. A capoeira foi um grande aprendizado para minha vida de poeta, autodefesa, vitalidade e cidadania. Em 1998, estive em rodas de poemas com os poetas dos Cadernos Negros, em São Paulo, que também fomentaram a ideia de criação de uma roda de poesia. Mas foi em Fortaleza, em 1998, que durou, se não me engano até 2000 ou 2001. Em 2000, mais precisamente a 13 de outubro de 2000, aconteceu a edição número 1 da Roda de Poesia & Tambores, no Espaço Cultural Osório Júnior, Clube dos Diários, anexo ao Theatro 4 de Setembro, em Teresina. A roda teve aproximadamente noventa edições e tivera a última edição no Clube dos Diários, em dezembro de 2010.

Capa de América Negra & Outros Poemas Afro-brasileiros, 2014, versão ampliada da primeira edição de América Negra, 2004.

A roda era realizada na primeira sexta-feira de cada mês. A dinâmica seguia um rito de abertura. No primeiro momento, a leitura de poemas autorais pelos próprios autores e textos lidos por outras pessoas. No segundo momento, os escritores homenageados eram apresentados. Os poemas recitados e/ou lidos pelo homenageado, por outros poetas, atores; performados, cantados por músicos, conforme o desejo do autor e parcerias da noite. Num terceiro momento, acontecia o Concurso de Poesia Falada e o Concurso de Poesia Escrita, com premiação para os primeiros colocados. Depois disso, num quarto momento a roda era reaberta para os autores e pessoas interessadas em falar seus poemas ou de outrem. A roda, às vezes, chegava a durar três horas. Além da presença constante dos tambores, executados por percursionistas profissionais, havia a participação de músicos e cantores, que lançavam seus cds. Acontecia ainda e sempre, inúmeros lançamentos de livros de poesia, conto, romance etc. Houve ocasião em que foram registradas a participação de quarenta e três autores recitando seus poemas. Entre esses, os jovens poetas: Demetrios Galvão, Thiago E, Kilito, Adriano Lobão, João Henrique, Laís Romero, Luiz Filho e outros nomes.

Roda de Poesia & Tambores, Clube dos Diários. Teresina.

O ferreiro e o martelo
Ao meu pai Aluízio Ferreira, in memoriam

O meu pai é ferreiro,
Ele acorda de manhã,
Bem cedinho,
Na hora dos passarinhos,
O martelo TEM TEM TEM…

O meu pai é ferreiro,
Ele acorda a casa,
Acorda a vizinhança,
Acorda a minha rua,
Acorda o bairro inteiro,
O martelo TEM TEM TEM…

O meu pai é ferreiro,
Um menino puxa o fole:
A oficina, a forja, o fogo,
O ferro em brasa, a bigorna,
A tenaz e a geometria do ferro,
O martelo TEM TEM TEM…

O meu pai faz enxada, foice e machado.
O meu pai faz chocalho, espora, brida e cabeçote.
O meu pai faz faca, facão, rifle e espingarda.
O meu pai faz marca de ferrar e ferradura.
O meu pai faz porca, parafuso, portas e portões.
O meu pai faz o diabo-a-4 de ferro.
O martelo TEM TEM TEM…

O meu pai é ferreiro,
Ele conta histórias bonitas para mim,
Ele acorda de manhã
Bem cedinho,
Na hora dos passarinhos.
O martelo TEM TEM TEM.

Você tem consciência de que a Roda de Poesia ajudou na formação de uma nova geração de poetas, e, também, de um público consumidor de poesia? Como você vê isso?

Talvez eu não tenha a verdadeira dimensão do significado da Roda de Poesia & Tambores. Ali muitos jovens tiveram a oportunidade de exercitar seus dons e crescer como poeta e pessoa. Tenho ouvido a declaração de alguns poetas e é partir de suas declarações que compreendo a tradução da roda para eles. O fato é que muitos meninos e meninas, que participaram da Roda de Poesia & Tambores, hoje são compositores de canção, autores de livros de poemas, contos, romances. Sinto-me muito lisonjeado com esse resultado, com a seara que foi semeada a partir daquela geração de jovens poetas.

 Como você vê a literatura contemporânea feita no Piauí e no Brasil por autores negros?

 No Brasil, provavelmente é o que há de mais vigoroso, belo e instigante na literatura brasileira, hoje. Por outro lado, tenho lido pouquíssimos autores brancos nos últimos dez anos. Acho tão bons os autores e autoras brasileiros, africanos e norte-americanos negros, que não me sobra mais nenhum tempinho para ler os autores brancos de quaisquer países. No Piauí, pouquíssimos autores/as se autorreconhecem como negro, mas há autores importantes como Júlio Romão da Silva, J. Miguel de Matos, Ruimar Batista. Entre os autores negros brasileiros, considero de rara beleza, vigor e magia os romances: Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves; Ponciá Vicêncio e Becos da memória, de Conceição Evaristo; Oboé, de Oswaldo de Camargo; o conto de Conceição Evaristo, Cuti, Esmeralda Ribeiro, Nei Lopes, Sacolinha; a poesia de Adão Ventura, Carlos de Assunção, Cristiane Sobral, Edmilson Pereira, Lê Pê Correia, Márcio Barbosa, Mel Adun, Miriam Alves, Miró, Oliveira Silveira, Salgado Maranhão, Tânia Lima, entre outras dezenas de contistas e poetas.

Roda de Poesia & Tambores, Clube dos Diários. Teresina.

Nos últimos tempos os escritores e a escrita negra têm ganhado mais visibilidade, a que se isso se deve?

Isso se deve à perseverança e iniciativa de autores e grupos como os Cadernos Negros, que teve sua primeira edição, o volume 1, em 1978, na cidade de São Paulo. A partir de então, Os CN vêm sendo lançados anualmente e ininterruptamente através da coletânea de poemas e contos. Um ano se publica poemas e no outro contos, além de antologias comemorativas de contos, poemas e ensaios de crítica afrodescendente. Este ano faz 40 anos da primeira edição dos Cadernos Negros. Este periódico é o divisor de águas, o toque de assentamento territorial da literatura afrobrasileira ou negra, assegurando o espaço dos autores negros em continuar escrevendo e publicando seus trabalhos. O advento da crítica literária com base nos estudos culturais, a crítica acadêmica fomentada pelos núcleos de estudo e pesquisa afrodescendentes e eventos literários e culturais realizados pelas universidades brasileiras. Além disso as inúmeras organizações de livros, periódicos virtuais com artigos e ensaios sobre literatura afrobrasileira e africana, publicados anualmente no Brasil.

A literatura é um instrumento importante para desconstruir a histórica única colonialista que foi criada ao longo dos últimos séculos. Como você vê a relação entre literatura, política e resistência?

Felizmente, a literatura contemporânea das Américas tem quebrado essa hegemonia doentia e castradora do cânon ocidental, que concebia como boa literatura somente a obra de filiação aos padrões literários europeus. Mas isso já foi superado e descolonizado. A literatura está acima e além de quaisquer conceitos europeus e/ou ocidentais. Há tradições mais antigas de poetar, contar ou narrar. A exemplo disso, a tradição oral africana, a tradição escrita dos sumérios e de outras civilizações antigas. O reconhecimento do valor da literatura negra, afrodescendente ou afrobrasileira deve-se,em particular, à nova crítica literária que se vem construindo à luz dos estudos culturais, da História, Sociologia, Antropologia e de outras ciências humanas, como também da semiótica. Quero também chamar atenção para o excepcional trabalho sobre crítica literária afrodescendente, realizado pelo Prof. Dr. Eduardo de Assis Duarte (UFMG) através do site: Literafro/UFMG1. Considero que um povo, quanto mais antigo, tanto maior sua experiência e mais profunda sua sabedoria e conhecimento. Entre os Bambaras, povo africano da etnia Yorubá, há um provérbio que encerra esta sentença: “O que eu sei, / eu aprendi de alguém / O que se diz hoje, desde sempre existiu”.

“A literatura da diáspora deseja refazer esse retorno por uma porta de entrada e saída, caldeando a sutura, o elo da memória perdida”. Gostaria que comentasse essa frase, explicando o que seria a “literatura diaspórica” e a “memória perdida”.

Paul Gilroy fala do Atlântico Negro, de uma travessia forçada, do sequestro do africano e da diáspora forçada. A canadense Dionne Brand refere-se ao Mapa da Porta do Não Retorno, de uma viagem sem volta do africano raptado, sequestrado e exilado nas Américas. No meu livro POESIA NEGRA: Solano Trindade e Langston Hughes faço uma releitura desses autores. Entendo que a “literatura diaspórica” afrodescendente assenta suas bases na herança das canções, cantos, contos e narrativas orais de tradição africana, cujo percurso e dinâmica se faz em espiral. Esse fenômeno é ressignificado na experiência da diáspora em diálogo com diferentes culturas, constituindo-se na matéria básica para a criação literária do autor negro. A “porta” a que me refiro é simbólica, não se realiza do ponto vista material e concreto, mas na re-territorialização da cultura ancestral de tradição africana, afirmada nas relações étnico-raciais nas Américas.

 Na tese de doutorado, você trabalhou com os escritores Solano Trindade e Langston Hughes. Comenta como se deu esse trabalho e quais suas inquietações centrais?

 Quando escrevi a tese doutorado, de 2002 a 2006 (UFPE), 382 p., sob a orientação eficiente e amigável do Prof. Dr. Roland Walter, de nacionalidade alemã, na época, as fontes bibliográficas sobre o conceito de literatura afrodescendente eram reduzidíssimas. Ele me apresentou uma bibliografia muito rica sobre a crítica literária afrodescendente nos EUA. Na verdade, a tese também foi o resultado de experiências anteriores como a dissertação de Mestrado em Literatura Brasileira (UFC), 1998 a 2001,  sob a orientação do Prof. Dr. Leão de Alencar, que me legara uma excelente base de conhecimento sobre a história da escravidão no Brasil. No entanto, quando ingressei na Pós-Graduação, já trazia uma bagagem de conhecimento considerável em estudos sobre a história da escravatura, adquirido durante minha militância no MNU – Movimento Negro Unificado, em Brasília, 1984-5.

A tese ficara hibernando durante onze anos. Mas em novembro de 2017, após inúmeras revisões e recuos, decidi num impulso, às vésperas do ÁFRICA BRASIL 2017, publicar o livro com o título de POESIA NEGRA: Solano Trindade e Langston Hughes. (Curitiba: Appris, 2017. 306 p.). Modéstia à parte, o livro ficou elegante, bonitão. Escrevi-o em quatro anos e meio. Uma vida, não é mesmo? Falei de muitos poetas negros, iniciando por Caldas Barbosa, Luiz Gama, Gonçalves Dias, Castro Alves, Cruz e Sousa. E de poetisas contemporâneas, como Esmeralda Ribeiro, Lourdes Teodoro, Tânia Lima. Fiz ainda a leitura do poeta afrocubano Nicolás Guillén e do afroestadunidense Countee Cullen. Encantei-me com a mito-poética dos Orixás do Candomblé, com as narrativas orais e cantos de matriz africana etc. Fiz um estudo intenso da poesia de Solano Trindade e Langston Hughes. Traduzi quatorze poemas de Langston Hughes, poeta negro dos EUA. Dos poemas traduzidos, cinco dos quais foram traduzidos unicamente por mim; e os outros nove, contei com a parceria do amigo e professor de inglês Antônio de Sampaio.

O livro foi um reencontro com o meu passado e minha ancestralidade. Concomitante à tese, escrevi os dez cantos do poema “América negra”. Um reencontro com a história da escravidão, a memória dos meus antepassados, meus pais, familiares e comigo mesmo. Aprendi sobre a História da África e da escravidão. Aprendi a origem do primeiro Homem na África, o canto, a força e magia da Palavra. Frequentei os terreiros de Candomblé, conversei e ouvi os mais velhos. Evoquei as forças dos meus pais já falecidos e meus avós para me dar força na empreitada para realizar a tese. Enfim, o livro é também um livro de memórias. Uma viagem pelos caminhos da poesia no diálogo com as canções, cantos, performances, danças-lutas, a Capoeira. Comparei as performances dos capoeiristas e a dos jazzmen, bluesmen, suas canções e vida social. Transitei pela cultura negra da África, Brasil, Cuba, Piauí, Pernambuco, Maranhão, etc.

Fala um pouco sobre a poesia negra feita nas Américas. Existem elementos novos que são desconhecidos e que precisariam ser mais difundidos?

 Não precisamos ficar limitados aos padrões europeus para se fazer boa poesia. Felizmente, estamos nos descolonizando da hegemonia cultural do invasor branco. Estamos gostando mais de nós mesmos, nos autorreconhecendo como pessoas capazes de fazer cultura de valor. Sem aquele tal “complexo do vira-lata”, como dissera Nelson Rodrigues. Parece que estamos pouco a pouco descobrindo a cura de uma doença gravíssima: a “psicopatologia”, ou autorejeição, discutida por Frantz Fanon no livro Pele negra, máscaras brancas.

Certamente, há excelentes poetas negros nas Américas. Há certa dificuldades ao acesso desses autores e suas obras. No Brasil, além dos afrobrasileiros já citados, que são centenas, é importante lembrar o nome do mineiro Adão Ventura. Também já falei do cubano Nicolás Guillén; Aimé Césaire, martinicano; Léon G. Damas, guianense; Claude Mckay, jamaicano; Countee Cullen, Langston Hughes, Paul Laurence Dunbar. No entanto, há a barreira da língua, o que dificulta o acesso das obras pelos leitores de língua portuguesa. Infelizmente, existem poucas obras desses autores traduzidas para a nossa língua. As editoras brasileiras e as academias ainda nutrem a segregação intelectual, a indiferença, a discriminação silenciosa e dissimulada, que tornam autores e autoras negros invisíveis na cena literária.

Desde a defesa da tese, até os dias de hoje, quais têm sido os desdobramentos das suas pesquisas?

Nos últimos anos, tenho me dedicado, sobretudo, à escrita dos escravos, às narrativas de escravidão precursora da literatura afrodescendente e afro-brasileira. E tem sido muito apaixonante e frutífero. Pesquiso e escrevo sobre a Carta da escrava ‘Esperança Garcia’ de Nazaré do Piauí, a partir do Mestrado, 1998-2001. Publiquei em livro o primeiro artigo sobre a carta de Esperança, em 2004. Daí para cá, foram mais dez artigos publicados e mais ou menos trinta palestras sobre a epístola, citada em universidades e locais de cultura. Coordenei simpósio de literatura e cultura afrodescendente e proferi palestra sobre a Carta de Esperança, em Harvard, EUA, durante a ACLA, 2016. Próximo 31 de março de 2018, vou proferir mais uma conferência sobre a Carta, na Universidade da Califórnia (UCLA), no congresso da American Comparative Literature Association – ACLA.

Esperança Garcia
(Uma reescritura da Carta da escrava Esperança Garcia)

Brasil,
meu Brasil Negro.
Sou Esperança Garcia do Piauí:
escrava da fazenda Algodões da Coroa
de Portugal,
casada e mãe de dois filhos.
A escola é maçã proibida para
escravos:
de cada cem ou mil,
um de nós sabemos ler ou escrever.

Sei ler e escrever,
coisa rara entre nós da escravaria.
Escrevi a “Carta” de 6 de setembro de 1770,
escrevi a “Carta” ao Governador da Capitania
do Piauí.
Contei-lhe as trapaças e as perversidades
do Administrador das fazendas reais,
contei-lhe das “trovoadas de pancadas”
contra o meu filho,
um menino de três anos de idade,
este chegou a sangrar pela boca.

O Administrador me tirou de perto
dos meus filhos e do meu marido.
Ele me confinou na casa dele.
Sou um “colchão de pancadas”,
uma vez caí do sobrado, rolei escada

abaixo,
quase morri:
eu estava peada feito bicho brabo.

Escrevi ao Governador sobre a peia,
o chicote, as humilhações
contra mim e parceiros de
escravidão
da Inspeção de Nazaré do Piauí,
e fugi com os meus filhos:
um de sete meses,
nos braços,
e o outro de três anos.

Escrevi alguns artigos sobre a dramaturgia de Júlio Romão da Silva e, em parceria com o dramaturgo piauiense Ací Campelo, organizamos, editamos e publicamos uma antologia que reúne sete livros de Júlio Romão, artigos e ensaios de crítica literária sobre a obra, entrevistas e iconografi a do autor. Tenho orientado estudos, pesquisas e escritos sobre a poesia, diários, crônicas e autobiografi as de outros autores negros do Piauí, como Nogueira Tapety e J. Miguel de Matos; além da orientação de estudos de autores negros do Brasil, Américas e África. No entanto, nesses dez anos tenho me dedicado mais ao estudo das narrativas de escravidão, escritas por escravos do Brasil, Cuba e Estados Unidos.

As pesquisas avançaram bastante, mas o POESIA NEGRA continua atual. Minha abordagem é conceitual e, sobretudo, inclusiva, e antecipa de forma pioneira vários nomes na lista dos autores afro-brasileiros. O meu diálogo com os poetas, romancistas, contistas, ensaístas contemporâneos da afrodescendência têm me favorecido muito, além da minha contínua participação e publicação de poemas e ensaios nos Cadernos Negros, em coletâneas da crítica afrodescendente atual. A edição bienal do ÁFRICA BRASIL e a editoração que venho realizando de vários volumes do Encontro é outro trunfo, que também põe a UESPI no ranque dos estudos e pesquisas de excelência relacionadas à literatura afrodescendente e afro-brasileira no Brasil.  

E o África Brasil? Como é realizar um evento de tamanha magnitude em uma Universidade Estadual, situada no Piauí?

O ÁFRICA BRASIL é uma loucura. Graças a Olorum, os Orixás e a boa vontade dos professores, alunos, funcionários, a reitoria da UESPI e apoios da FAPEPI, SEMEC, PARFOR, pessoas físicas e outros colaboradores, temos realizado um dos maiores encontros internacionais do Brasil sobre literatura, história e cultura afrodescendente e africana, e, desde 2017, também indígena. Fizemos O ÁFRICA BRASIL 2017 – V Encontro Internacional de Literaturas, Histórias e Culturas Afro-Brasileiras e Africanas: Narrativas e Cidadanias. No V Encontro, incluímos o I Encontro Internacional de Culturas Afrodescendentes e Indígenas da América Latina e Caribe, este em parceria com a ADHILAC, que é mais uma parceria de estratégia de intercâmbio de conhecimento acadêmico do que propriamente econômico. O fato é que os recursos financeiros dos órgãos públicos são pouquíssimos.

O Encontro é bienal. Imaginem a correria! Em 2017 não fomos contemplados pelo edital da CAPES de auxílio financeiro a eventos. No evento anterior, o ÁFRICA BRASIL 2015, juntamente com o Núcleo de Estudos e Pesquisas Afro – NEPA/UESPI, sob minha liderança e o apoio de professores e bolsistas, havíamos publicado no site do NEPA os Anais e o E-book do IV Encontro, somando-se um total de 116 artigos e 1.300 p., com a publicação de artigos dos participantes, doutores, mestres, mestrandos, bolsistas de PIBIC, oriundos de 45 universidades brasileiras e estrangeiras, elevando a pontuação do Mestrado Acadêmico em Letras ante a avaliação da CAPES. Vai entender isso. Vai entender o Brasil.

O argumento foi que havia projetos mais importantes do que O ÁFRICA BRASIL 2017. Não abaixamos a cabeça e fizemos o maior evento acadêmico da UESPI e um dos maiores de afrodescendência, africanidade e etnia do Brasil, com aproximadamente quatrocentos palestrantes. O melhor de tudo isso é que os convidados ficam querendo voltar outra vez e fazem a boa divulgação de boca a boca, de e-mail em e-mail, no face etc. Mas também fica um “amargorzinho” de algumas contas/débitos a pagar. Às vezes dá vontade de não fazer nunca mais. E tudo bem, a gente vai fazendo de teimoso, enquanto for possível, porque dizem que “tudo vale a pena”. Graças a Deus!

 Uma das grandes demandas dos movimentos negro e indígena é a plena aplicação das leis 10.639/2003 e 11.645/2008, que preveem o ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena nas escolas. Como essas leis podem ser aplicadas com mais eficácia?

O que se tem feito é ainda muito pouco diante da realidade dos estudantes e da formação acadêmica da grande maioria dos professores. Creio que uma educação verdadeira e eficiente se inicia pela formação e qualificação dos professores. Sem isso, nada feito. Nada pode surtir efeitos. Falta maior vontade na execução das políticas públicas de educação. Para que a aplicação das leis mencionadas tenha efeito efetivo, a universidade tem que se empenhar na formação de professores nessa área do conhecimento. Além disso, realizar concurso público para professores de literatura, história e cultura afrobrasileira, africana e indígena. A quantidade de horas dedicadas ao ensino de afrodescendência e cultura indígena é totalmente ineficiente. Revela a falta de compromisso. O que fazer por exemplo, com 30h/aula para ensinar todo o conteúdo de literatura afrobrasileira e cultura indígena num curso de Letras? E isso quando existe a disciplina no histórico curricular da universidade ou escola. Ainda existe uma forte resistência por parte da maioria dos professores. Isso demonstra o quanto o brasileiro é racista e como dissimula o seu racismo.

Recentemente (12/jan) Donald Trump berrou: “Para que queremos haitianos aqui? Para que queremos toda esta gente da África aqui? Por que temos todas essas pessoas de países (que são um) buraco de merda vindo aqui?” (“The Washington Post”, 11/01/2018). Para você, qual o impacto geopolítico/ cultural que essa fala pode provocar? Que sintomas tal declaração revela ao mundo?

 Em se tratando de política, entendo que Donald Trump é o que de pior poderia ter acontecido para o diálogo inter-étnico e político nos Estados Unidos e entre esse país e o mundo. Os cidadãos norte-americanos educados, não-racistas, devem se sentir envergonhados com o comportamento, a falta de polidez e o desrespeito do seu presidente ante os povos africanos. O líder de uma nação que incita o ódio racial contra seus anfitriões, não pode ser uma pessoa digna de respeito e atenção. Trump é uma aberração política. Um chefe incapaz de inspirar confiança e tranquilidade ao seu povo. Contudo, quando o racismo declara o racismo, temos maiores possibilidades de combatê-los e nos solidarizarmos diante das práticas racistas.

No Brasil, essa questão é muito complicada, porque vivemos num país extremamente racista, e é extremamente difícil de combater esse racismo e o racista dissimulado, que se esconde sob uma máscara criminosa e hedionda. Veja o que aconteceu a Marielle Franco. Um crime hediondo de dimensões racista e política, cujo criminoso representa o Estado Brasileiro, o caos e o mar de lama em que vive o país e as instituições públicas. Não basta prender ou descobrir o executor do crime hediondo, ou seja, o policial, miliciano ou pistoleiro, que disparou contra Marielle e Anderson, mas a instituição racista e criminosa que está por trás disso tudo. Este crime qualificado e cruel atinge de forma violenta a dignidade dos brasileiros negros, indígenas, brancos, asiáticos, que tenham senso de responsabilidade e respeito pelos direitos humanos. O assassinato de Marielle Franco e Anderson extrapolou os limites de tolerância do brasileiro. Tornou-se uma ameaça para todos nós, ao nosso direito de ir e vir, de pensarmos o nosso país como Estado Democrático ou coisa parecida. Enfim… sinto vergonha de ter como presidente do meu país o senhor Michel Temer.

Elio Ferreira apresentando-se no Campus Torquato Neto da Universidade Estadual do Piauí.

Sabemos que o continente africano ainda é marcado por estereótipos e preconceitos. Também a “grande” imprensa oculta suas potencialidades e mascara os conflitos e demandas sociais que deveriam ser de interesse mundial. Porque o ocidente se comove com ataques terroristas na Europa e ignora as tragédias vividas pelo povo africano?

Podemos dizer que esse silêncio é real ou algo está mudando sobre como enxergamos a África? Lamentamos a indiferença e o ódio racial dos brancos contra o africano. Se algum povo tem motivo para odiar o branco – este é o negro, e não o contrário. Depois da invasão da África, do sequestro, da travessia do Atlântico no porão do negreiro, da exploração da mão-de-obra do africano e descendentes escravizados na diáspora. Difícil de compreender a atitude do ocidente perante episódios tão graves de violação dos direitos humanos. Não sei até que ponto esse pensamento está mudando. A África foi espoliada pelo ocidente. Isso tem resultado na migração de uma grande população em direção à Europa. O fato é que o racismo mudou de máscara, mas não mudou de cara. O silêncio é a pior demonstração de indiferença, um gesto de consentir a atrocidade e tornar um povo invisível.

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