A Religião como o Fundo do Poço: o erotismo gore de Edilberto Sobrinho

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Pensei em escrever um texto de abertura, como faço para apresentar os convidados/convidadas que colaboram com a Acrobata, mas dessa vez irei me ausentar. Deixo com vocês a palavra e obra de Edilberto Sobrinho. Eu não preciso falar, pois já fui consumido pela potência das imagens.

Aristides Oliveira

Não é preciso ser nenhum especialista em ciências humanas para saber que uma crítica social que mistura elementos de arte sacra com pornografia e satanismo será duramente rechaçada por uma expressiva parcela de nossa população. Por isso, nesta minha primeira participação que faço numa revista de arte, julgo que tão ou até mais importante do que falar das questões técnicas e referenciais dos meus desenhos, é explicar para vocês os motivos que me levaram a misturar estes temas tão contrastantes neles.

Toda a revolta que moldou a minha linguagem artística atual começou na minha adolescência, quando passei a estudar aos 11 anos de idade uma doutrina religiosa devastadora, doutrina esta que facilmente me convenceu de que ela era a verdade absoluta e, portanto, inquestionável. Para vocês terem uma ideia, a primeira aula que tive desta religião “maravilhosa” foi sobre o apocalipse que estava prestes a acontecer na Terra e como todas as pessoas que não faziam parte da “religião verdadeira” (no caso, ela) seriam destruídas durante este terrível evento, não importando o quanto amassem a Deus e o quão boas fossem.
“Vamos Fuzilar a Petralhada” (2020)
  42×59,4 cm
  Grafite sobre papel
Minha mente, ainda sem filtro – devido à pouca idade que tinha na época – simplesmente não aguentou e sucumbiu ao fanatismo. Passava o dia quase todo me policiando para não pecar, achava que o Demônio vivia atrás de mim, sempre ia consultar o meu instrutor bíblico sobre se tal coisa que gostava ou gostaria de fazer era pecado ou não e julgava silenciosamente todos ao meu redor. Uma coisa que me deixava arrasado com estes meus julgamentos íntimos que fazia era que nenhum dos meus amigos e parentes seria salvo neste apocalipse que estaria por vir, pelo simples fato de não compartilharem a mesma fé que eu tinha.

Para piorar a situação, comecei a perceber a minha homossexualidade e a tentar me livrar dela a todo custo, para que, quando Jesus voltasse ele não me destruísse. Óbvio que foram várias tentativas em vão e por causa de tantos fracassos, eu ficava aterrorizado sempre que rolava uma chuva forte à noite, por achar que já era o Juízo Final começando, e sonhava em uma média de duas a três vezes por mês com Cristo retornando a Terra e me condenando à destruição.
“A Mãe da Pátria” (2016)
42×59,4 cm
Grafite sobre papel 

Fora o fanatismo religioso e a minha orientação sexual – que eu tentava sufocar a todo custo – ainda tinha o bullying que eu sofria tanto por conta da minha sexualidade (mesmo tentando camuflá-la de todo jeito, ainda sim era perceptível) , quanto pela aparência física que tinha naquele tempo, pois era raquítico, andava encurvado, tinha o rosto coberto por acnes e ainda tinha uma mentalidade infantil que contrastava com a minha idade, altura (1,86m) e com os meus colegas da escola (cheguei no Ensino Médio com 13 anos , enquanto que a maioria dos meus colegas tinha 16).

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Por conta de tudo isso, era constantemente chamado de “diabo fei”, “mongol”, “viado” e “retardado” por dezenas de pessoas, tanto pelas que conviviam comigo, quanto por desconhecidos que me viam aleatoriamente na rua. Isso aconteceu tantas vezes ao ponto que sempre quando eu andava por aí e me deparava com um grupo de pessoas logo em frente, dava meia volta e procurava um outro caminho para chegar ao meu destino, não importando se estivesse logo ali em seguida. Andar sempre de cabeça baixa, não falar com as pessoas olhando-as nos olhos, não aguentar me ver no espelho e não querer sair em fotos também faziam parte do meu comportamento normal, tão tal que a única foto minha que tenho deste tempo é a da minha carteira de reservista.

Auto-estima zero, fanatismo religioso e repressão sexual, esta foi a minha vida dos 11 aos 16 anos. Queria muito morrer, pois acreditava que aquela situação nunca iria mudar, e creio que só não cometi suicídio porque não tinha acesso a armas ou a qualquer outro método que acabasse com a minha vida instantaneamente, pois tinha muito medo da dor que eu poderia sentir. Minha primeira luz de salvação foi quando finalmente me caiu a ficha sobre que tipo de felicidade era essa que eu alcançaria nesta minha tão almejada vida eterna, pois tudo o que eu gostava era do Diabo (coisas “terríveis” como animes e vídeo-games) e todas as pessoas que eu amava seriam destruídas.

“Bozo: o Coiso” (2018)
29,7×42 cm
Grafite sobre papel 
A partir daí, finalmente tive coragem de aceitar o que passei tanto tempo negando a mim mesmo: eu não amava Deus, mas sim O ODIAVA, eu O odiava com todas as minhas forças, por me fazer sofrer o inferno naquela religião desgraçada e por exigir tanto de mim e não me dar absolutamente nada em troca. Via todos os que riam de mim “pecando” e vivendo plenamente suas vidas super felizes, enquanto que eu me dedicava a Ele 24 horas por dia e tinha uma vida de merda como recompensa a tanta devoção. E foi graças a este baque que tive após sofrer por 5 anos, que finalmente tive coragem de chutar o balde daquela minha religião maldita e colocar toda a raiva que sentia de mim mesmo, de Deus e dos que mexiam comigo para fora.
Foi questão de pouco tempo para eu começar a trocar os desenhos coloridos e felizes que eu fazia por desenhos macabros e obscuros. Monstros, demônios e assassinatos, estes agora eram os meus temas favoritos, tudo isso para poder extravasar no papel toda a raiva que eu sentia de mim e das pessoas ao meu redor. E o resultado? Extremamente positivo, porque as pessoas que até então mexiam comigo passaram a ter medo de mim, por me associarem ao Diabo, enquanto que as que eram do Diabo de fato, passaram a se aproximar de mim, pois se sentiam representadas com as coisas que eu fazia. Foi aí então que finalmente descobri algo que fazia muito bem e comecei a tirar a minha autoestima da lama.
“O Pecado Original” (2017)29,7×42 cm
Grafite sobre papel
não tive a menor vontade de voltar aos desenhos “felizes” que fazia antes. Aquele novo modo de expressão já fazia parte de mim, e descobri também que, mais prazeroso do que mostrar para as pessoas que eu sabia desenhar, era horrorizá-las com os meus desenhos. Outra coisa que notei após conhecer os trabalhos de um artista que me inspirou muito naquela época – o criador do “Alien”, H.R. Giger – as pessoas se chocam muito mais com pênis, vaginas e ânus do que com cenas de deformações e violência, e mais ainda se todos estes elementos estiverem juntos. Como o sexo foi um grande tormento na minha vida tanto pela minha orientação sexual reprimida, quanto por paranoias que eu tinha de pegar HIV e também pelo fato de só ter iniciado a minha vida sexual muito tardiamente, aos 19 anos, acabei abraçando esta linguagem do “erotismo gore” e me dediquei a ele até o final de 2016.

Um pouco depois da minha primeira fase “dark”, por volta dos meus 18 anos, ainda voltei para o cristianismo, porém passando por algumas vertentes mais amenas, por assim dizer. Tinha voltado a ter fé nas pessoas e achava que o problema todo estava naquele segmento cristão que eu seguia antes, e não no cristianismo como um todo. Com isso, achei que poderia seguir essas subdivisões cristãs mais “lights” pelo resto da minha vida, mesmo omitindo alguns detalhes da minha personalidade a elas, como meus desenhos, por exemplo. Mas eu estava tristemente errado, pois com o advento das redes sociais, comecei a testemunhar diariamente milhares de comentários horrorosos vindos de cristãos, especialmente os destinados aos homossexuais e transgêneros.
“A Primeira Foto de Um Buraco Negro” (2019)
29,7×42 cm
Grafite sobre papel

  E o que mais me enojava em tudo isso não era nem tanto a crueldade destes comentários, mas sim a HIPOCRISIA que os envolviam, pois até hoje eu nunca tive muito sucesso na minha vida em encontrar alguém que bata no peito para dizer que é contra isso e aquilo por ser cristão e defensor da família, e que não cometa adultério, fornicação, violência ou deseje a morte de seus adversários políticos. Meu coração simplesmente voltou a transbordar de ódio com tudo isso, principalmente ao me compadecer por milhões de pessoas que deveriam passar por situações similares ou piores das que passei. A partir daí, nunca mais consegui seguir a fé cristã em nada, nem mesmo a sua parte boa.

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Ao mesmo tempo em que isso foi acontecendo, sentia que faltava algo em meus trabalhos que os diferenciassem de tantas obras “darks” que tinham por aí. Foi então que, subitamente, passei a apreciar obras de arte sacra de um jeito que elas se tornaram o meu tipo favorito de arte até hoje, mesmo ainda repudiando com toda força o que elas representam. Antes disso, meu acervo de imagens só contava com obras obscuras, mas depois deste meu insight, passei a consumir obras sacras feito um louco.   Meu primeiro teste com esta nova linguagem começou em 2017, quando colocava alguns detalhes tímidos dela nos meus “erotismos gores” aqui e ali, mas pouco depois esse meu antigo estilo se transformou em obras de arte sacra deturpadas por ironias e deboches recheados de sexo, nudez, blasfêmias e referências satânicas. A arte sacra então, me serviu como uma luva, porque além de ter se tornado o meu tipo favorito de arte, também me ajudou muito em colocar para a fora toda a revolta que tenho com o falso moralismo de muitos cristãos.
“A Verdadeira Imagem de Maria” (2019)
29,7×42 cm
Grafite sobre papel 
E um detalhe que ainda faz uma análise sobre o quão doentia está a nossa sociedade atual: alguns dos meus desenhos tem esse caráter sacro pornográfico satânico menos evidente e se concentram mais em fazer críticas tanto a políticos, quanto a ideologias conservadoras. Pois bem, na primeira confusão em larga escala que tive com os meus desenhos, ao expô-los na UFPI em 2019, de tantos e tantos desenhos que tenho que esculacham o cristianismo de formas terríveis, o primeiro que foi alvo de ódio em massa e logo excluído por conta das denúncias que fizeram ao meu perfil em uma rede social, foi o que desenhei o rosto do nosso atual presidente segurando um balão com uma suástica nazista e com referências ao filme “It: a Coisa”.  

Este mesmo nível de crítica não trazia nada de muito inovador em comparação ao que tantos outros artistas fizeram com ele ao redor do Brasil e do mundo, mas os religiosos que foram me denunciar se importaram muito mais com o que fiz com o presidente deles do que com as coisas muito mais absurdas que cometi contra os seus ícones sagrados, revelando assim o quanto estão doentes muitos cristãos de nosso país, adorando mais um político do que o próprio deus deles.
“Autorretrato Amamentando o Anticristo” (2017)
 42×59,4 cm
 Grafite sobre papel 

Antes, eu sofria muito por não ser aceito e amado pelas pessoas, mas observando o tanto que a mente de milhões delas que se consideram normais está ferrada, hoje só tenho a agradecer, da maneira mais sincera possível, à natureza que me fez um pouco fora do padrão e a todos que me fizeram mal na minha vida. Foi graças a tudo isso que hoje em dia tenho a minha arte “imoral”, “depravada”, “suja” e “comunista”, mas que me trouxe muito mais felicidade do que um sistema de crenças que torturou e matou milhões de pessoas ao longo dos séculos jamais seria capaz de trazer.

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Edilberto Sobrinho, nascido em 22/06/1987, nascido em Teresina (PI) e licenciado em Educação Artística/ Artes Plásticas pela Universidade Federal do Piauí.

3 comentários em “A Religião como o Fundo do Poço: o erotismo gore de Edilberto Sobrinho”

  1. Amei. São esses mesmos motivos que me levaram a não ter religião e absolutamente amar terror com blasfêmia (isso inclui músicas) e putaria envolvendo imagens “sagradas”.

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