.O Dia em que Comi Como o Faz um Rico – um Conto de Thiago Roney

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Thiago Roney (RR/AM) é natural de Boa Vista/RR e radicado em Manaus/AM desde a infância. Tem contos publicados em diversas revistas literárias e é autor do livro “O Estouro da Artéria de um Cavalo Húngaro” (Ed. Multifoco, 2013)


Talvez isto seja a felicidade. Caso não seja, que vire. A excita­ção se faz presente. Estou fazendo tudo com um prazer raro. Hoje teremos um peixe sem espinha. Confesso que a técnica utilizada, neste momento, é adaptável. Os ossos são até mais fáceis de en­contrar. Corto o mais rente possível para não perder nenhuma carne. O peso maior justifica a intensidade do sangue. Faço tudo com precisão. Também pudera, carrego o saber desde o nascimen­to devido à tradição familiar, além dos conhecimentos científicos adquiridos na Universidade. Sinto agora falta do cheiro. O chei­ro é característico. Recupero neste momento a minha infância. Principalmente, a imagem do pai no ofício. A felicidade seria a memória? Ou seria a falta dela? Hoje a felicidade se revela para mim no registro, na lembrança do cheiro e no ato.

Papai era peixeiro. Desde cedo, começou a ensinar-me as ha­bilidades das mãos para com os peixes. Primeiro, aprendi a escamá -los. Nessa época, eu odiava o cheiro exalado da bancada. Mamãe dizia: “Relaxa, Bino, é só o pitiú”. Então me calava. Descobri ser o cheiro característico dos peixes. Depois, conheci todas as suas par­tes. As nadadeiras ou barbatanas, a cabeça, o espinhaço, o lombo, entre outros pedaços. Aprendi também que as espinhas são ossos do corpo do peixe. Desde então chamava-os só de ossos. A terceira tarefa que aprendi é a mais nostálgica e interessante: os cortes. O pai era especialista em dois tipos: em ticar e em tirar a espinha. A primeira técnica consiste em cortar várias vezes o peixe em toda a sua extensão. Cortes paralelos e com certa profundidade. Com objetivo de quebrar os ossos em forma de “Y” existentes no lombo do pescado e facilitar a catá-los no ato de comer. A segunda, que faço agora, consiste na retirada de todo o espinhaço do corpo do peixe, preservando apenas os ossos da costela por causa da facilida­de de catá-los, ficando em grande parte somente a carne. Poden­do, assim, comê-la sem preocupação. Recordo que, no final de minha adolescência, fazia tudo meio atrapalhado e papai sempre ralhava comigo.

A saudade é destrinchada aos poucos. Fico pensando se papai saberia tirar este espinhaço como estou fazendo agora. Com isso, lembro apenas de uma amargura do meu passado: não podia co­mer peixe sem espinha. Pois, segundo papai, era frescura. Coisa de rico e japonês.

– Um manauara tem que comer peixe ticado!

Ele falava com seu regionalismo besta.

Passei toda minha adolescência querendo comer como os ri­cos. A mãe falava-me para estudar bastante, fazer medicina e então ganhar muito dinheiro. Seguiu em mim uma confusão de desejos: ser peixeiro ou médico?

Corto neste momento a carne que reveste o osso mais longo do espinhaço. O que o pai acharia de mim agora? E mamãe, es­taria orgulhosa de seu médico? Não entendo por que papai não me aceitou como eu era. E para que me expulsar de casa de tal maneira? Lembro quando ele falava que a felicidade era o amor. E, no entanto, não aceitava suas formas. Parece-me mais palpável a felicidade ser o que sinto nesse momento. Corto a parte dos ossos laterais e rumino como conheci Pedro (comigo, agora). a primeira vez que o vi, quando eu caminhava até a faculdade. Já faz algum tempo. Seu cheiro chamou-me mais atenção. Ele também era peixeiro como meu pai. Foi com nossa relação que consegui superar minha antiga dicotomia: ser peixeiro ou médico. Convivemos harmoniosamente até hoje. Olho para ele e continuo tirando o espinhaço.

Virei um cirurgião ortopedista renomado. Ontem, voltei do doutorado. Fazia-o na Oxford University nos Estados Unidos. Por causa disso, fiquei alguns anos sem poder comer o peixe de mi­nha região. Situação angustiante. Voltei com a imensa vontade de comê-lo como faz o rico – sem espinha. Um plano de toda uma vida. Porém, Pedro não gostava assim. Preferia o peixe ticado. Eu havia telefonado, um dia antes, pedindo para preparar um peixe sem espinhas. Nós dois celebraríamos meu doutoramento e nosso aniversário. No entanto, quando cheguei a casa, recebi duas no­tícias desastrosas: só havia peixe ticado e Pedro tinha deixado de ser peixeiro. Abracei-o com prazer e ódio. Cafunguei seu pesco­ço. Ao cheirá-lo, não sentia mais o pitiú característico de peixeiro. Imediatamente veio a imagem de meu pai tirando espinha de um Tambaqui. Não pensei duas vezes. Empurrado por um prazer in­comum, comecei a executar o que estou finalizando agora.

Satisfeito e feliz, termino de tirar o espinhaço com perfeição. De tal forma que nem papai faria melhor. Pego um balde com água e jogo-a por sobre a mesa para limpar o sangue. Guardo os ossos numa caixa ao lado. Com um pano, acabo de limpar o resto dos vestígios sanguíneos. Olho com admiração aquilo. Certamen­te, papai aprovaria minha habilidade e mamãe estaria orgulhosa de mim ao verem o corpo de Pedro, sem os ossos, estirado na mesa da cozinha. E, enfim, sem desaprovação nenhuma, hoje comerei como o faz um rico – sem espinhas.

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