Maria Eugênia – um Conto de Matheus Arcaro

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Matheus Arcaro é mestrando em Filosofia contemporânea pela Unicamp. Pós-graduado em História da Arte. Graduado em Filosofia e também em Comunicação Social. É professor, artista plástico, palestrante e escritor, autor do romance O lado imóvel do tempo, dos livros de contos Violeta velha e outras flores e Amortalha e do recém-lançado de poesia um clitóris encostado na eternidade. Também colabora com artigos para vários portais e revistas.


Com dificuldade, vovó senta-se na poltrona ao lado da cama. Parece desconcertada. Não era só a notícia sobre a minha gravidez, mas a confirmação de que seria uma menina. Fazia três meses que não a via, senti vontade de ouvi-la. Perguntei-lhe o que primeiro me veio à língua.

***

Da minha infância, não me lembro de muitas coisas. É como se minha cabeça reproduzisse um clipe televisivo. Melhor: episódios desconexos de uma telenovela. O laço do avental balançando, isso eu me lembro. Mamãe de costas no fogão à lenha, vestido xadrez desbotado e o laço a dançar com o vento que entrava pela porta. O quintal, chão de costelas à mostra, era imenso, com a cana-de-açúcar a cumprir papel de cerca. Meu quarto, cama de palha e uns brinquedos de lata soldados pela inspiração do meu pai. Lembro da ausência do meu pai. A tosse que não mais tomava a casa, os vãos deixados quando ele saiu com aquelas malas emprestadas. Talvez isso tudo não tenha acontecido assim. É que quando a memória não dá conta, puxa a imaginação pelo braço, pedindo socorro.

Ah, mas Maria Eugênia sempre surge nítida à minha mente, muito inteira, mesmo enquanto estou dormindo. Hoje, com 82 anos, me soa pedante, mas naquela época, eu achava chique nome composto, coisa de gente rica.

Quem me deu Maria Eugênia foi tio Osvaldo, mas isso só fui saber tempos depois. Porque naquele ano, o presente foi de Papai Noel. O tio era apenas o emissário, ou melhor, o carteiro do velho barbudo, já que as renas não conseguiam andar em caminhos empoeirados. Renas com rinite. O irmão da minha mãe vinha todo ano na antevéspera de natal e ficava até o réveillon. Na manhã de 25 de dezembro, me entregou uma caixa comprida. Ermelinda, o Papai Noel pediu pra dar isso a você. Mas tem uma condição. Você não pode abrir a caixa, senão ele não dá presente ano que vem.

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Eu não soube mastigar as palavras do titio, pedaços grandes entupiram minha garganta. Sacudi a cabeça para cima e para baixo. Rasguei o embrulho, sem ouvir o pedido de mamãe. O papel, a gente usa de novo, filha! Antes mesmo que eu terminasse, o êxtase brotou no meu peito, irrigou-se corpo adentro e saiu pela boca num grito sussurrado. Eu estava frente a frente com a utopia. A maior utopia que uma menina de oito anos podia suportar. A boneca de porcelana tinha mais da metade do meu tamanho, franja cor de mel, cílios compridos, vestidinho rodado azul claro. A beleza metamorfoseada em brinquedo, vista através do celofane. Aqueles olhos verdes olharam para os meus, éramos íntimas. Pedi ao meu tio que agradecesse ao Papai Noel, pedi licença à mamãe e corri para o quarto. Abracei a boneca com cuidado, não podia amassar sua armadura de papelão. Fiquei com a caixa colada ao peito até sentir o coração de Maria Eugênia. Eu merecia um presente assim?

Dormi abraçada à caixa. Não, não. Dormi ao lado da caixa, medo de descumprir a promessa feita mentalmente ao Papai Noel. Maria Eugênia no meu travesseiro e, sobre ela, a manta rosa que também me esquentava. Espremidinha, olhei para a boca rosada até que meus olhos se fecharam. Setenta e cinco anos depois, me lembro do sonho que tive. Eu e a boneca passeávamos de mãos dadas pela escola, assobiando as músicas que aprendêramos na aula de canto. Sonho demasiadamente colorido? Só quem nunca lidou com a ausência de presentes em natais e aniversários, julgá-lo-ia com tamanha leviandade. E mais: não foram poucas as vezes que sonhos semelhantes a este me tomaram as noites. Em outras, transferi para a boneca minhas insônias: ao lado do candeeiro embalava a caixa com as canções que há tempos mamãe não me cantava.  

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Sim, aos poucos, mamãe parou de cantar. É que a voz da necessidade ficou mais alta que a dela após a partida do meu pai. Entregou-se ao tanque e ao fogão. Quando viu tomarem corpo minhas conversas com a boneca, quando percebeu que Maria Eugênia tapava um buraco cavado pelos seus afazeres, o olhar dela demonstrou-se anestesiado. Obviamente só consigo observar agora estes olhos ressacados. Naqueles meses, eu só via Maria Eugênia

–  Por que não, mamãe?

– Ermelinda, escola não é lugar de brinquedo. Ainda mais uma boneca deste tamanho.

Eu voltava num fôlego da escola para casa. Jogava a mochila na cama, almoçava e passava a tarde com a caixa para lá e para cá. Brincávamos de comidinha, de esconde-esconde, de mamãe-da-rua. De quando em vez, eu era a professora, depois ela era dona da loja de roupas e me apresentava as últimas modas para bonecas. À noite, eu a acariciava, minha mão e seu rosto intermediados pelo plástico.

Num final de tarde, mamãe foi entregar a roupa que tinha lavado nos últimos dois dias. Espiei pela janela até ela virar a esquina, voltei na ponta dos pés. Se eu tirar você da caixa um pouquinho, quem vai saber? É só um beijo. Mas o cérebro não foi capaz de delegar o comando às mãos ou, se o fez, elas não obedeceram. Talvez foram impedidas pelo coração que não arremessou sangue suficiente. Fato é que logo inventei que Maria Eugênia era um bebê doente e não podia sair daquela incubadora, risco de morte.

A rotina das tardes tinha se solidificado, a boneca e eu já esperávamos uma à outra. Mas algo desmoronou naquele 5 de agosto de 1944. Como nos últimos meses, voei para casa. Boa tarde, filha. Você não imagina quem saiu daqui agorinha! Perguntei “quem” por compaixão. É que os olhos da mamãe pareciam um pouco mais vivos, não seria eu a desbotá-los. A Solange, lembra dela? Menti que sim. E trouxe a filhinha dela, 3 anos, uma graça! Subiu-me um frio pela barriga, faltou-me ar. Corri para o quarto, pernas estrangeiras do corpo e, o que era especulação, fez-se real: Maria Eugênia estava jogada no chão, despenteada e sem roupa. A caixa sobre minha cama com o celofane rasgado. Foi como se algo implodisse em mim, como se os andaimes do meu corpo se derretessem. Pela janela, vi o Papai Noel com lágrimas a sacudir-me a mão em despedida.

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Acordei com um pano úmido sobre a testa. Mamãe sorriu, o único sorriso em três semanas. Dois dias depois, pediu que buscassem o médico. Minha filha não melhora. Acho que foi a comida da escola, doutor! Salsicha vencida. Hum, pouco provável, senhora. O que posso receitar é remédio pra febre. Recomendo repouso e hidratação. Volto em três dias. Nem recomendação nem remédio resgataram o rosto da saúde. No dia seguinte, mamãe chamou dona Valquíria, benzedeira famosa na região, que esfregou-me ervas nos braços e pernas, cochichou olhando para os céus e, com as mãos esticadas sobre mim, disse:

–  Essa menina tem pássaro preto no peito que se debate e machuca ela por dentro. Precisa abrir a gaiola.

–  E como se faz isso?

–  Ela vai saber.

Sim, eu soube. Aos poucos, fui encontrando as chaves, eram muitos cadeados trancando a gaiola.  O maior deles: se Papai Noel não viesse no natal seguinte, tudo bem. Maria Eugênia e eu agora éramos inteiras: ela sem caixa e sem plástico; eu sem medo. Menos de um mês depois do desmaio, pedi que mamãe convidasse Solange para um café e que trouxesse sua filhinha. Brincamos, nós três, a tarde inteira.

***

Vovó se levanta, apoia-se no andador e chega ao guarda-roupa. Abre a porta e me entrega um embrulho grande. É pra sua filha! Tirei a coberta, os olhos verdes me olharam. Os meus, encharcados, não puderam corresponder no mesmo nível de profundidade.

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