Aprender o Fogo – Um Conto de Wanda Monteiro

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Wanda Monteiro, advogada, escritora, uma amazônida nascida à margem esquerda do rio Amazonas, em Alenquer, Pará, Brasil.  Atuou como Procuradora do Estado do Pará para assuntos agrários. E se dedicou às causas de direitos humanos de crianças e adolescentes como representante da Ordem dos Advogados do Brasil, tendo ocupado o cargo de Presidente da Fundação da Infância e Juventude no Estado do Rio de Janeiro, município de Niterói. Atualmente se dedica à sua atividade literária e colabora com diversos projetos de incentivo à leitura no Estado do Rio de Janeiro. Publicou vários livros entre eles “A Liturgia do  Tempo e outros Silêncios” , 2019, Ed Patuá; “Aquatempo Aquatiempo”, edição bilíngue para o espanhol,  Ed Patuá, 2020 e recentemente “Chão de Exílio”, 2021, Ed. AMO.


Aprender o Fogo

Perdi o fio das horas
Tenho-as delineadas
Em datas perdidas nas dobras do tempo
Lanço-me ao passado
Num traçado de inexata rota
Levo apenas os sentidos
Para o cultivo de imagens imperecíveis

Ouço o canto dessa estação a chorar nesse junho o seu fastio de chuvas. Adoeço à mingua dessas águas. Sinto os rios indo no ruflar dos ventos.

O quintal é todo chão que temos para correr e ver o sol. O quintal é tudo que temos para contemplar: No dorso do besouro, a diáspora do sol. O sol, sísifo dourado em sua escalada de subir a leste, para depois cair a oeste, feito canção triste, no chão coberto de flores. O quintal, esse rosto a oeste, feito de folhas vivas, escalando o ar: um rosto, que de manhã, sorri para quem acorda e de noite, depois de silenciar a grandeza das mínimas coisas, canta para quem dorme.

A memória abre fendas no tempo.

Lembrar, procurar o fundo de nós é como escavar o tempo. Mas o passado não é estável. Ele não aflora à memória com os

mesmos cheiros, com as mesmas cores, com a mesma luz. O passado não pode ser vivido, mas pode ser sonhado. São outras as palavras que alimentam essa estação sonhada:A marca do silêncio permanece cravada na memória dessa minha estação, reescrevo-a num entremundos de palavras. As palavras que têm sempre o seu destino, mesmo quando erram o seu itinerário, mesmo quando dizem das reminiscências ou

de um quê desbotado em paisagens guardadas com desmotivo, mesmo quando ficam presas num tudo que não quer ser lembrado – um tudo emoldurado em desmemória. Mas há outra marca viva, acesa, com cheiro de brasa ardente, com o calor das chamas: A marca do fogo. Não o fogo das fogueiras sagradas, que serviam de ritual para as histórias de encantarias contadas pela voz de Berta, minha avó. Mas

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sim, o fogo das fogueiras que mataram as palavras pulsando em livros. Essa outra marca do fogo a vingar, do chão da memória, sua paisagem movente feita de assustadoras

salamandras com seus olhos e bocas de pavor.

Naquele chão onde viveríamos, ilhados dentro da casa, o exílio do silêncio e do isolamento, havia um tempo dividido e ordenado: Comer no tempo da casa, estudar, brincar, tomar banho e dormir no tempo de Luiza.

Luiza era magra, tinha a tez muito clara. Sua pele fina como o véu transparente, ao ser singrada pela luz do sol, deixava visível o azul esverdeado de suas veias. No seu rosto: O púrpura de seus lábios e de seus cabelos. Era sua face de mãe que amanhecia os dias com o prodígio de luz em seus olhos. Havia, nessa ilha, um tempo e um espaço que eu roubava para sonhar: a biblioteca de Miguel. Lá eu me recolhia e me aninhava no sonho da leitura. Miguel, antes de fugir para não ser preso pelo comando militar, tinha arrumado seus livros, e havia separado os livros que eu gostava de ler numa prateleira baixa, na base de sua mesa: Era nosso lugar secreto. Ali, embaixo de sua mesa, eu me escondia de Luiza para ler e sonhar.

Naquela tarde, Luiza estava tão alheia que esqueceu de dar conta de nossos afazeres. Ela parecia angustiada, pressentira algo de ruim. Aproveitei o silencio de suas sentenças

cotidianas e fui me abrigar na biblioteca. Eram centenas e centenas de livros, a maioria com capas grossas e com intermináveis palavras que eu desconhecia. Às vezes, quando eu estava sozinha, eu subia na escada que deslizava sobre as estantes, para pegar um daqueles livros pesados. Livros que guardavam as palavra e que Miguel chamava de enciclopédia: Gostava de abrir as páginas, de forma aleatória, para encontrar as palavras e ler os seus significados. Era sempre um espanto a cada palavra nova, a cada palavra nunca escutada. Era uma espécie de mágica reveladora: ligar os nomes às suas imagens correspondentes. Desde esse tempo, comecei a compreender que o mundo era feito de palavras. Não! Eu não lembro do livro que eu estava lendo nem do sonho que eu sonhava, só lembro da voz de Luiza:

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Crianças! Crianças!

Eles voltaram, os malditos voltaram. Corram todos pro pátio e

fiquem lá. Fiquem em silêncio.

Foram tantas vezes que eles invadiram e saquearam a nossa casa, dezenas, talvez. Foram tantos os momentos de pânico que experimentamos a cada invasão, ao sermos confinados em cárcere privado dentro de um quarto ou do porão, no escuro do escuro. Mas dessa vez foi diferente. Dessa vez, eles

deixaram outra marca: A marca do fogo.

Eles estavam procurando por provas. Essas provas seriam usadas contra Miguel, no processo militar instaurado contra ele. Eles queriam provas dos atos subversivos e da incitação à luta armada, que eles atribuíam ao Miguel. Nessa tarde, eles chegaram em um caminhão do exército, eram dezenas deles: soldados vestidos com aquela farda que lembrava a selva, todos empunhando metralhadoras.

Aquele uniforme verde-oliveira, com rajadas de sombra que eles diziam imitar a selva.

Maldita heresia contra a natureza!

O negro luzindo das botas.

Malditas botas!

Eu posso lembrar do som que essas botas faziam ao subir a. escada: pareciam estacas sendo fincadas em terra batida. Eu fugi de lá de meu esconderijo, o mais rápido que eu pude e corri para o pátio que ficava na cobertura da casa para ficar ao lado de minhas irmãs Conceição, Carla e Inez e de meu irmão Benjamin. Eles, os malditos, invadiram a biblioteca e começavam a vasculhar tudo. E para demonstrar o poder que representavam, começaram a derrubar as estantes no chão.

Pegavam os livros, abriam suas páginas e depois chutavam esses livros contra as paredes do cômodo.

Não! Não eles não encontraram as provas que queriam, nunca encontrariam.

Miguel era um homem feito de palavras e elas estavam com ele, em seu pensamento, em algum lugar da floresta. As palavras estavam em fuga, assim como Miguel.

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Lá no pátio, voltei a ouvir o som das botas descendo a escada que dava para o quintal. Saí de dentro do medo, me debrucei sobre o parapeito do pátio, para olhar para o quintal: Fui atraída pelo som do estalido da madeira queimando e do vento movendo as labaredas daquela imensa fogueira feita de palavras: Palavras que contavam histórias, que escreviam poemas e que diziam dos significados e das significâncias dos entes e das coisas desse mundo feito de palavras.

Lembro das palavras ardendo em chamas.

Lembro daquela ilha feita de casa e quintal.

Lembro daquele chão sendo ferido pelo fogo.

À margem esquerda da vida, olhos atônitos nem sequer esboçam mínima reação, nem sequer vicejam a luta, sucumbem à opressão. Toda vociferação converte-se em imprecação e silêncio. No pouso do medo, toda réstia luz coabita a sombra. O medo cai como pedra no fundo de cada dia e cintila à boca de cada noite. Algo inominável deflagra a combustão das horas, interdita o tempo, partindo-nos ao meio: A opressão no cio.

Abre-se a janela de um passado fincado em irremovível paisagem.

Depois de muito tempo, quando Miguel foi solto e voltou para casa, conversando com ele, fui saber dessas mortes que cravaram em minha memória a marca de fogo: As novelas de Nabokov, os devastadores romances de Dostoievski, os escritos penetrantes de Herman Hesse, os poemas revolucionários de Maiakovsky, as vozes existencialistas de Pessoa, a brutal e psicológica escritura de Kafka, a História contando as histórias, centenas de poemas, centenas de romances, enciclopédias inteiras, milhares de palavras, tudo virou cinzas.

No dia daquela fogueira de palavras, o oficial do Comando, que estufava seu peito com comendas e estrelas sem luz, ordenava:

Queimem! Queimem todos os livros desses comunistas.

Eu fiz um salto para dentro daquela fogueira, era como se eu sentisse as palavras queimando. Era como se eu queimasse junto com elas. Pude sentir a brasa ferindo o chão do quintal. Senti a própria brasa, ardendo acesa, cuspindo fogo no ar. Eu era a própria fogueira. Eu ardia, dançando acesa dentro de suas salamandras com seus olhos e bocas de pavor.

Livro Chão de Exílio publicado pela editora AMO

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