A Escrita da AIDS na Prosa de Caio Fernando Abreu

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Cyro Roberto migrou de Teresina para Natal há 15 anos, mas ainda não conseguiu deixar os amigos do Piauí em paz. Pesquisou literatura homoerótica no doutorado feito na UFRN e nas horas vagas se dedica a vagar pelo mundo e beber com quem esteja disposto a ouvi-lo falar por horas.


O escritor gaúcho Caio Fernando Abreu faleceu em 1996, dois anos após ser diagnosticado como portador da síndrome da imunodeficiência adquirida, ou AIDS, como é conhecida. Ao longo de sua carreira ele produziu diversos textos que abordaram o mal que o vitimou. Faço aqui uma breve reflexão sobre as representações que a doença alcançou em sua prosa, especialmente no romance Onde andará Dulce Veiga?, escrito ao longo dos anos 1980 e publicado em 1990, data anterior ao diagnóstico de Caio. O romance narra um jornalista contaminado pelo HIV que escreve uma reportagem sobre a cantora desaparecida do título. Nessa jornada, ele conhece a filha dela, Márcia, vocalista da banda de rock Vaginas Dentadas.

Se começarmos a pensar em uma escrita homoerótica brasileira, com certeza o faremos a partir de um conjunto de temas presentes em nossa literatura desde fins do século XIX. Inicialmente no que se convencionou como escrita realista-naturalista com os fetiches por marinheiros ou internatos masculinos em obras como O Bom-crioulo de Adolfo Caminha ou O Ateneu de Raul Pompéia. Ou ainda pela ideia de inversão sexual em personagens como o lavadeiro Albino de O cortiço de Aluísio Azevedo. A partir do final dos anos 1960, o afloramento de um novo feminismo, do movimento negro e de uma ainda iniciante militância gay, vemos o tema da homossexualidade ser retomado por nossos escritores. Certamente nenhum deles o fez de forma tão sistemática e ao longo de tantas obras quanto Caio Fernando Abreu. O “fantasma” da homossexualidade já assustava o protagonista adolescente de seu romance de estreia Limite branco, escrito no fim dos anos 1960. A partir daí o autor fala do tema a partir de um contexto autoritário, pensando sujeitos ávidos por viverem seus desejos de forma livre em meio a um regime ditatorial.

Com a chegada da década de 1980, surge um novo tema para a escrita homoerótica. Em 1983, com a morte do famoso estilista Markito, ganha notoriedade no Brasil uma nova doença, a AIDS. Diante de sua fatalidade e do desconhecimento sobre sua origem, uma série de significados são atribuídos a ela, na esteira do medo que a possível contaminação trazia. Sua incorporação pela literatura não tardaria. A narrativa de Caio Fernando Abreu foi pioneira com o conto Pela noite, do volume Triângulo das águas de 1983. A partir daí, vemos uma trajetória literária do tema em seus escritos, que encontra o auge em Onde andará Dulce Veiga?. A doença aparece nas narrativas como uma metáfora para a solidão e perda de esperança que marcava a década de 1980, também afligida por desastres, nucleares e ambientais, e o caos urbano e econômico.

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Ignorando que as primeiras manifestações da doença se dão por contatos predominante heterossexuais, a contaminação de homens homossexuais em sociedades ocidentais mais ricas, especialmente Estados Unidos e países europeus, faz com que a AIDS irrompa como um estigma para a comunidade gay, um aspecto novo na esteira do sentimento homofóbico reavivado pela nascente epidemia. Assim, após duas décadas de liberalização, chega-se a um novo momento, marcado pelo medo que a doença traz à livre vivência sexual e em que a homossexualidade adquire grande visibilidade ao ser associada à AIDS. A revista Veja, por exemplo, criticou à época a política preventiva adotada pela Secretaria de Saúde de São Paulo, sob o pretexto que havia males vitimando pessoas pobres que mereceriam mais atenção.

Vemos então que a chegada da doença instaura um clima de medo coletivo. Ao sonho contracultural de amor livre dos anos 1960 e 1970 sucede-se o pesadelo do sexo que mata, da perspectiva de morte trazida pela concretização do desejo. Sobre isso, Caio Fernando Abreu escreveu na forma de crônica que a forma mais grave do vírus não era sua manifestação clínica, mas psicológica, minando o gosto das pessoas por viver. Mesmo que criticasse esse medo, o autor criou diversas personagens tomadas por ele. A primeira delas é Pérsio de Pela noite, do volume Triângulo das águas de 1983, que na tentativa de desmarcar um encontro pensa em mentir dizendo que estava com AIDS, já revelando o significado de morte social que a doença tinha. O medo da doença também está no narrador de Onde andará Dulce Veiga? que, ao ser banhado pela chuva, desespera-se pela ideia de que adoeceria e, sozinho em seu apartamento vazio, buscaria sinais da doença no pescoço, na nuca, nas virilhas. Em vários trechos do romance ele toca o corpo em busca de sintomas, afligido pela dúvida ao mesmo tempo em que tem medo de fazer o exame que esclareça seu caso.

No romance, os sintomas da doença parecem ir além do corpo e infestam a cidade doente, descrita como um cenário caótico. Mesmo o prédio em que o protagonista mora é descrito como contaminado, com suas pastilhas que caem desbotadas, lembrando feridas na pele. Ao prédio infectado ele devota certo carinho como por um cachorro sarnento, num sinal de identificação com as vítimas da doença. Mesmo a música das Vaginas Dentadas proclama a contaminação na letra que diz que “o passado é uma cilada, não há presente nem nada, o futuro está demente: estamos todos contaminados.” Como contraponto a esse cenário decrépito, a música de Cazuza que toca no rádio do táxi surge como uma resistência da poesia. Também a pichação em um prédio é um respiro em meio ao caos: “Alex Vallauri vive”. Trata-se de uma citação a um artista urbano, grafiteiro, amigo do autor na vida real e vitimado pela AIDS em 1987. As palavras riscadas, perdidas em meio à urbe, defendem a resistência de Vallauri, se não é possível escapar da morte biológica trazida pela doença, vive-se a vida por meio da memória e pela resistência inerente à arte, ainda que no impermanente suporte do grafite, que torna a cidade menos bruta.

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Mesmo que as menções à AIDS e seus sintomas pareçam bem claras diante do terror que o advento da doença causa à época, os contos e o romance de Caio Fernando Abreu poucas vezes menciona explicitamente seu nome. Isso ocorre apenas duas vezes em sua obra. Em Dama da noite, da coletânea de 1988 Os dragões não conhecem o paraíso, a personagem principal lamenta que o jovem rapaz que ouve seu monólogo já nasceu de camisinha em punho, com medo de pegar AIDS. Mas mesmo o preservativo não garantiria sua proteção, pois ele está proibido de tocar em outros corpos. E é justamente essa sede de outro corpo que enlouquece e mata aos poucos. A outra citação se dá no romance, no momento em que a filha de Dulce Veiga revela estar doente, ao fazer o jornalista tocar seu pescoço. Ela tem medo de procurar um médico e receber o diagnóstico e fala de seu ex-namorado que foi vitimado pela doença.

Curiosamente, nessa situação, Márcia pergunta ao narrador se ele é homossexual, como se falar sobre AIDS a tivesse feito lembrar da homossexualidade, o que revela o quanto os dois temas eram vistos como próximos à época. A pergunta traz um ex-namorado, Pedro, de volta à memória do narrador e o postal que recebeu após seu desaparecimento pedindo que não tentasse encontrá-lo, pois estava contaminado e não queria matá-lo com seu amor. Assim Pedro desapareceu sem revelar o que tinha. Seu desaparecimento remete à morte social que a doença implicava. Remete também à morte do amor, agora impossível diante do horizonte sinistro que trazia implícito em si. Desesperado, Pedro foge, mas não o faz por conta da doença real e sim pela doença metaforizada, pois esconder-se não o faria livrar-se do diagnóstico, nem de seus sintomas implacáveis. Levando a doença onde quer que fosse, ele morreria acompanhado dela, mas distante da possibilidade de ter sido feliz ao lado do amado que já havia contaminado. À sua morte biológica, antecipavam-se a solidão e a perda definitiva do amor, causadas por uma doença da qual, mesmo sem coragem de nomear, não podia se desvencilhar.

Sobre a predominante elipse do nome da AIDS, verifica-se que, até nas cartas que Caio publica para tornar pública sua condição, só se usa uma única vez o termo HIV. Certamente o ato de nomear evocaria valores previamente expostos. Já omitir o nome, permitiria que se discutisse a doença em outros moldes.  Assim, à doença que (quase) não se ousa dizer o nome, a narrativa de Caio atribui novos significados. Não se trata apenas de um novo vírus, mas de uma metáfora sobre a impossibilidade do encontro afetivo, sobre a solidão de personagens deslocadas. A ameaça que a AIDS representa institui o pavor ao toque, à aproximação entre sujeitos marcados pelo desejo, daí a fuga de Pedro sem assumir qual doença tinha.

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Essa metaforização das doenças já se apresentava em contos anteriores ao romance, como em À beira do mar aberto, de Os dragões não conhecem o paraíso, para revelar os danos que as personagens sofriam por suprimirem seus sentimentos, que cresceriam como células cancerosas. Também em Morangos mofados, o mal estar do protagonista diante da falência do sonho contracultural é comparado a um câncer. A diferença fundamental entre esta doença e a AIDS é que, se para os pacientes com câncer, volta-se um olhar de piedade, para os pacientes desta última, a sociedade homofóbica destina um sentimento de culpabilização e repulsa.

As personagens estavam então presas ao medo causado por esse sentimento, incorporando tanto a AIDS real, quanto a doença psicológica que ela representa. Do medo do toque, nasce a perspectiva de se viver em constante busca, como se buscar fosse o valor final, em detrimento à realização do amor. O jornalista vive então a perda do amado Pedro e a eterna procura por um novo amor. No conto de Caio que segue a Onde andará Dulce Veiga?,  essa busca ganha protagonismo. Em Bem longe de Marienbad, escrito em 1992, a constante procura por alguém que a todo instante se evade deixa clara que a busca toma o lugar do encontro como evento central em si mesmo. Procurar o outro que não aparecerá nunca se torna a própria experiência a ser vivida e narrada. E o narrador de Onde andará Dulce Veiga? nos conta sobre sua espera, na ilusão de que Pedro voltaria quando a reportagem sobre o desaparecimento de Dulce o fizesse famoso. Ao final do romance, após encontrar a cantora, ele se vê  livre de sua espera pelo amado, o narrador sonha com as outras personagens, mas não consegue ver Pedro. Ele agora estava inalcançável e livrar-se dessa espera era a solução para que o jornalista seguisse seu caminho.

O gato que ganha da cantora, e que resolve chamar Cazuza, traz uma esperança de continuidade, ele é um símbolo otimista que mostra a permanência do cantor mesmo com a iminência da morte. O gato dormia em seus braços como que confiante no futuro. Assim como Alex Vallauri, Cazuza viveria. E assim como eles, o narrador também viveria, fora da eterna espera pelo amado, e poderia, enfim, sentir-se livre.

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