.Entrevista com Fernando Klabin

| |

MAX BLECHER CHEGA AO BRASIL – Literatura romena e o ofício do tradutor.

Entrevista por Aristides Oliveira e Demetrios Galvão 30/03/2018 – Entre chuviscos e trovões numa de tarde paulista

A Revista Acrobata pousou em São Paulo para entrevistar o tradutor Fernando Klabin,
antes de sua partida para Viena, Áustria, para respirar outras paisagens. Tradutor de
Mircea Eliade, Emil Cioran, ele trouxe para o Brasil uma novidade que enchem os olhos
dos leitores brasileiros: a obra do romeno Max Blecher. Nosso bate papo transitou sobre a relevância da obra de Blecher e a repercussão dos livros traduzidos no Brasil. Outras questões fundamentais que ele contou pra gente foram as di culdades enfrentadas no ofício do tradutor e as tensões político-identitárias entre Europa Ocidental e Oriental. Vem conferir
que vale a pena o mergulho.


Conta como essa paixão pelo teu trabalho começou. Por que a Romênia?

 Quando criança eu não me sentia muito a vontade aqui. Eu sempre me senti um pouco estrangeiro. Tinha interesse em saber das raízes da minha família e estava sempre aberto para sair daqui. Depois de algumas tentativas que não deram muito certo, eu comecei a viajar no fim de 1993 e depois disso, em 1997, eu acabei me fixando na Romênia. Fiquei 16 anos lá. Cheguei num país que não tinha nada em comum. Não tinha raízes, mas acabei absorvendo as coisas de lá… Acabei aprendendo a língua deles, a cultura deles e a história. Em 2013 eu já estava cansado de estar lá. Eu trabalhei na embaixada brasileira, como funcionário local. Foi um trabalho que me ensinou muita coisa, mas me frustrou bastante. Éramos uma equipe muito pequena, a embaixada brasileira não era prioritária para o Ministério, então tudo que a gente queria fazer era difícil, apesar da abertura que os romenos davam pra gente. Eles são receptivos a tudo o que é brasileiro. Aí surgiu a surgiu a possibilidade de eu fazer mestrado em Letras. Eu tinha começado a graduação na USP (Universidade de São Paulo), abandonei… Na Romênia eu terminei Ciência Políticas. Aí fiz o mestrado na USP sobre o Max Blecher e vim pra cá em 2013. Voltei para a Romênia em 2015 para gravar um filme1 sobre Max Blecher… eu sou um médico assistente (personagem). Foi uma experiência muito interessante. Eu já queria ter essa experiência há muito tempo e comecei a ter na Romênia, participando de uma minissérie… aquilo foi uma lição de vida. Meu primeiro contato com Blecher foi quando cheguei à Romênia e intuí que tinha alguma coisa ali… Fui aprendendo o romeno aos poucos, sem método nenhum. Eu estava lá e absorvi aquilo. Eu queria ler os livros do Emil Cioran originalmente em romeno e conheci a literatura. Eu gosto de ir pelos mais obscuros e tropecei no Blecher.

 Quando você conheceu Blecher, já era tradutor?

Sim, já traduzia do inglês e alemão. Eu comecei essa curiosidade pela tradução com o Georg Trakl. Eu gostei tanto dos poemas dele que traduzia por conta própria e por exercício, inclusive para melhorar meu alemão. E vi que era não só uma coisa que eu gostava de fazer, mas me ajudava a aprender a língua.

 É uma novidade muito agradável receber Max Blecher no Brasil. Primeiro foi a Cosac Naify, com “Acontecimentos na Irrealidade Imediata” (2013) e depois a Carambaia nos brinda com “Corações Cicatrizados” (2016). Eu vejo na fala do Blecher um exercício constante para sanar a dor. Como você encara isso? Quais os limites entre real e ficção na obra dele?

Eu não sei até que ponto é honesto você ler aquilo sem saber que ali é a vida dele. Até no “Acontecimentos…”, que é um mais abstrato, mais poético, ali são as lembranças da infância dele. As coisas ficam mais claras nos dois outros livros, Corações Cicatrizados e o outro2 que ainda não existe tradução para o português, onde ele fala da experiência dele no sanatório. É complicado, porque entra a questão da autoficção, da narração autobiográfica, mas eu acho que a doença aguçou algumas capacidades dele. Eu acho que não dá pra dizer que a doença foi decisiva. Se ele não tivesse ficado doente, ele teria criado alguma coisa. A gente não pode imaginar o quê, talvez algo mais fraco. Ele vivia numa placa tectônica que já era suficiente para criar um mal estar para produzir uma obra literária. Primeiro ao fato de ele ser judeu na Romênia. Ele era marginal… a Romênia, como praticamente todos os países da Europa, eram anti-semitas. Ele como judeu lá dentro não era igual aos outros. E a questão do judeu, não só na Romênia, como em outros países, ficava ainda mais complicada quando o judeu tentava se adaptar àquela sociedade, porque ele não é nem aceito pelos cristãos e também não é aceito pelos judeus ortodoxos. Ele fica numa posição que “não é uma coisa nem outra”. O fato de ele ser um romeno na Europa… a Romênia sempre foi um país marginal dentro da Europa… E depois a doença traz mais um elemento de marginalidade, ainda mais um doente nessas condições, que é ficar preso numa cama, não participa mais da sociedade… Só restava a ele escrever.

Como Blecher conseguiu ser tão articulado na cena literária nessas condições?

 Apesar de todos esses obstáculos, ele manteve a curiosidade e acesso ao que estava acontecendo no mundo, talvez por intermédio dos contatos que ele tinha na Romênia, que era um grupo de vanguardistas muito ativos. A maioria deles eram judeus e não é por acaso uma coisa dessas. Tem ligação com a questão da marginalidade e o judeu acabava sendo mais cosmopolita, porque ele tinha contato com outros judeus de outros lugares. As suas perguntas me lembram um pouco o pesadelo da defesa do mestrado (risos).

Não! Estou aqui apenas como leitor curioso! (risos)

Eu também! (risos) Eu acho que são inquietações que sempre vão acompanhar a obra dele, sempre. A gente sabe que ele teve uma vida curta e que ele passou os últimos dez anos preso na cama, os últimos anos de maioridade e de criação artística.

 Sobre o primeiro livro de Blecher, “Corpo Transparente”, 1934, o que você tem a dizer sobre ele?

 É uma coletânea de quinze poemas que não são nada especiais, mas a gente já observa o pendor dele para o surrealismo. Aqui é o primeiro encontro formal. O título diz muito, embora não se veja nos poemas nenhum indício da história dele de doença e internação, mas você tem o corpo transparente como o raio-x e isso naquela época era uma grande novidade. O início do “Corações Cicatrizados” é uma cena longuíssima em que ele está para ser diagnosticado pelo médico e tem o momento da chapa. Ele fica estupefato diante daquilo: “Puxa, sou eu por dentro?” Ele não consegue enxergar nada e o médico que explica: “Olha isso aqui é tua vértebra comida…” Não sei se o título – consciente ou inconscientemente – já está ligado a isso.

O corpo é própria fonte de inspiração dele numa perspectiva visceral. O corpo doente. Seria a doença uma potência de Blecher?

 A doença é um dos ingredientes dessa receita. O fato dele ter ficado doente dessa maneira propiciou a ele um modo de ver o mundo, como naquela iminência de morte contínua do Manuel Bandeira, que chegou longe… o Blecher não, morreu muito cedo. A doença vem para acentuar alguma coisa que já estava ali, a gente não pode dizer; quantos doentes existem por aí com doenças terríveis e não produzem nenhum livro? São várias coisas que se encontram. A doença como algo inclemente, impaciente. A gente vê no “Acontecimentos…” que a realidade está borrada, o que ele vê é quase um delírio. A doença abre essa perspectiva. Eu insisto em dizer que a doença não é decisiva. Ela vem como um elemento a mais para fazer o autor refletir o que vem na frente dele. Ele tem sido muito comparado ao Kafka, Bruno Schulz, mas eu não sei… às vezes eu tenho a impressão que essas comparações têm sido feitas só para poder alavancar mais o Blecher para coloca-lo à altura desses dois, que são mais famosos, mas eu não acho que seja possível comparar. Mesmo dentro da Romênia, ele vai ter uns irmãos de estilo… nem irmãos, uns primos! Ele é meio que único.

 Blecher tem grande alcance de público fora do Brasil

? Não. Na própria Romênia ele é lido por um nicho, não é um nome importante. Se é para comparar com um nome brasileiro em “nível de fama”, eu gostaria de compará-lo ao Murilo Rubião, que é excelente, extraordinário escritor, mas é de nicho! Não é todo mundo que ouviu falar. É claro que dentro da universidade, quem lida com isso já ouviu falar dele, assim como na Romênia já ouviu falar de Max Blecher. O grande público não passou por esse nome. Eu gosto de comparar com o Murilo Rubião porque ele passa uma certa estranheza e não é tão conhecido como merecia ser.

E a circulação de vendas? É possível avaliar a recepção das edições realizadas pela Cosac Naify e Carambaia?

 Eu não sei. O que eu posso te dizer que o livro que a Cosac publicou (Acontecimentos da Irrealidade Imediata), o primeiro publicado no Brasil, teve uma reimpressão, o que me parece um grande sucesso para um autor que até então era completamente desconhecido no Brasil. Eu que trouxe ele pra cá. Ninguém sabia dele. O público do Cioran também está interessado no Blecher e acredito ter criado um nicho de interesse. Não sei até que ponto é um nicho que uma editora possa explorar comercialmente com sucesso.

A Carambaia lançou “Corações Cicatrizados”…

 Eu não tive nenhum retorno deles sobre isso [vendas].

É importante refletir sobre a circulação das obras, não adianta um autor ser muito bom, mas a gente não ter um índice desse circuito…

 A Carambaia publicou mil cópias. Eu temo que esse livro da Carambaia não tenha circulado muito porque ele é um livro caro. Talvez o dobro que o vendido pela Cosac Naify, mas essa é a proposta editorial da Carambaia. Eles querem produzir livros que também sejam objetos ao mesmo tempo, então sai um livro mais caro que a média normal. Isso pode ter impedido que ele circulasse melhor. Atualmente estou traduzindo um livro de Mircea Cărtărescu4, que é hoje mais badalado escritor romeno na atualidade. Eu traduzi o Nostalgia e esse ano vai ser publicado pela Mundaréu.

Qual a maior dificuldade na tradução romeno-português?

 A semelhança. Às vezes eu me sinto um covarde traduzindo do romeno, porque tem frases inteiras que eu não preciso mexer! É como se eu tirasse um tijolo aqui e pusesse no mesmo lugar. É claro que tem as suas dificuldades como qualquer tradução. Toda língua tem suas especificidades, mas eu acho que um dos maiores perigos do romeno é o aportuguesamento de coisas romenas sem sentir. Inclusive teve um livro que eu traduzi e a revisão foi muito mal feita e apareceu… “cadeira” em romeno é masculino, no meio da tradução eu escrevi “o cadeira” e ficou… É um perigo a automação, porque o romeno flui e tem um ritmo tão parecido com o português que chega um momento que você não sabe mais se está traduzindo do português para o romeno ou do romeno para o português. Os linguistas costumam dizer que o português e o romeno são as línguas mais próximas entre si e que isso teria a ver com o fato de estar nas extremidades do mundo romano. Não sei se isso procede, mas é curioso. A minha ação é mais do que um mero tradutor, eu acabo invadindo o terreno do agente literário. Eu vou nas editoras, tento explicar para elas que a Romênia existe e que lá se escreve, tem bons escritores, que eu traduzo dessa língua que existe! É todo um trabalho de convencimento. Eu levo como uma carta, um ás na manga o fomento que o Instituto Cultural Romeno oferece para traduções de obras romenas fora da Romênia e praticamente todas as minhas traduções têm se beneficiado desse fomento. A Carambaia recebeu e a Cosac também. Vou jogando sementes e batendo nas portas de várias editoras ao mesmo tempo. Uma vez eu tive três respostas positivas e eu tive que traduzir três livros no mesmo período. Porque não ir a Paris? Ou à Grécia talvez… Não ir a Paris ou não sei onde não quer dizer que não se deva ir… Não é isso. No meu caso eu fui escutando o que a minha curiosidade dizia. No momento em que eu me conscientizei de que a família do meu pai vinha da Europa Oriental, isso me chamou atenção para aquela região. A família da minha mãe, a maior parte tem origem italiana e isso nunca me comoveu muito. Afinal eu estou em São Paulo, metade de São Paulo é italiana (risos), então não é nada exótico. A Itália me pareceu muito sólida. Ela está lá a minha disposição a qualquer momento, mas a Europa Oriental ainda guarda vestígios do passado que podem se perder a qualquer momento.

O que tem lá de tão interessante que você a coloca no seu centro?

 Eu vou falar na posição de alguém que já conhece parte da Europa Oriental. Eu tenho medo de afirmar essas coisas e parecer arrogante. As pessoas na Europa Oriental são mais humanas do que na Europa Ocidental. Não sei explicar. Não sei se esses 40/50 anos de comunismo congelaram as coisas lá… não dá para falar de nível de sofrimento, porque isso depende de como cada um sente. Os europeus ocidentais também sofreram muito, mas na Europa Oriental, a fauna humana é mais interessante, rica, generosa, ligada a valores que já se perderam na Europa Ocidental. Valores ligados ao mundo rural, a hospitalidade, o prazer de estar à mesa, o valor que eles dão à amizade, à família, ao contrário do comportamento robótico da Europa Ocidental. Se você quiser caricaturizar um pouco a Europa Ocidental, os países são feitos por pessoas com um “sorriso profissional”. Você que não é autêntico. Tudo calculado, previsível. Estamos em 2018, qualquer alemão já sabe para onde ele vai nas férias de 2025. Não existe espaço para a surpresa, para o imprevisível da vida. Eles tentam engessar tudo. O lado bonito da Europa Oriental é que eles são mais orgânicos.

Como é viver de tradução no Brasil? Existe um mercado consolidado para o ofício?

 Eu nunca me iludi achando que iria viver só disso, mesmo porque, sendo a tradução mal paga, você teria que traduzir muito para poder ter uma renda mensal decente. Você é um só. Deve ser um grande sacrifício porque você não pode escolher o que você quer traduzir, tem que aceitar qualquer coisa. Eu tenho tido muitas sorte em traduzir coisas de que eu gosto. Eu mesmo levei como sugestão para o editor. Não é uma posição comum. É um privilégio fazer isso. Agora eu fiquei mal acostumado. Eu continuo tentando fazer o mesmo. O surgimento dessa encomenda do livro do Cărtărescu foi uma experiência interessante porque foi um livro que eu não escolhi e provavelmente eu nem teria escolhido e foi um grande desafio, muito difícil porque é uma linguagem contemporânea, livre, com uso do coloquial que eu tenho dificuldade de traduzir. Eu não conheço bem o meio dos tradutores. Tenho a impressão de que muitos tradutores se conhecem e tentam criar um círculo de relacionamento, mas eu suspeito que isso seja mais na aparência, porque sendo uma atividade tão solitária, eu não sei até que ponto esses tradutores estão reunidos e se comunicando. O cheiro que você sente quando se aproxima é de insatisfação. Traduções mal pagas, algumas editoras têm falta de sensibilidade no trato com o tradutor. O fato de hoje em dia o nome do tradutor estar na capa do livro é uma grande conquista; até há pouco tempo, o nome do tradutor estava dentro do livro escondido em algum canto. Está se fazendo mais barulho em cima disso, do ofício do tradutor. O tradutor tem uma função muito mais do que a gente vê. Uma função simbólica. Está apresentando algo novo, de uma cultura outra para que você possa fruir sem conhecer aquela língua. Recentemente eu fiz um curso em que eu tive contato pela primeira vez com uma coisa que eu nem sabia que existia, fiquei muito contente em saber o que é a filosofia da tradução. Uma coisa ficou clara pra mim: como você vai avaliar se essa tradução é boa? Você precisa entender onde o tradutor quis chegar. Antes de começar o trabalho, você tem que saber qual era a intenção dele. Aí você vai ver o resultado final e avaliar se ele atendeu ou não à proposta. Você não pode dizer que uma tradução é boa só porque gostou dela. Qual a intenção primeira do tradutor? Nesse livro aqui (“Corações Cicatrizados”)… eu tenho a tendência de querer respeitar o original o máximo possível. Isso não está certo nem errado. Isso é uma maneira de abordar a tradução. Eu procuro ser um tradutor invisível. Eu não acho interessante estar presente no texto. Há tradutores que fazem justamente o contrário. Fazem questão de criar ruído na tradução, de estar ali presente e o leitor dizer: “Olha, isso é coisa do tradutor. Que legal! Que horrível!” Cada um vai ter sua opinião sobre isso. Eu vinha me ocupando de tradução de maneira intuitiva. Quando eu fiz esse curso, muitas coisas que eu vinha pensando, processando silenciosamente… o curso me ajudou a conscientizar e verbalizar algumas coisas como essa. É um campo muito criativo, você pode pegar uma mesma obra e ter zilhões de traduções. Nos últimos tempos o tradutor está sendo mais visível como profissional. Ele ganhou as capas. Eu me considero muito indeciso e a tradução me obriga a tomar decisões. Na tradução, você não pode ser neutro, você tem que assumir uma posição!

  1. O longa-metragem do cineasta romeno Radu Jude, Corações cicatrizados (Inimi cicatrizate), baseado na vida e na obra do escritor Max Blecher, com participação de Fernando Klabim no elenco, ganhador do prêmio do júri no Festival de Cinema de Locarno, estreou no dia 27 de outubro de 2016 no
    Brasil, no contexto da 40ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. (Fonte: http://tradottotradito.blogspot.com.br/)
  2. Vizuina Luminata (1971).
  3. O Mal de Pott, também conhecido como espondilite tuberculosa. A primeira descrição da doença foi feita em 1779, por Percivall Pott. Desde o advento das medicações tuberculostáticas e de melhores medidas de saúde pública, a tuberculose espinhal tornou-se rara em países industrializados. (Fonte: http://www.abc.med.br)
  4. Nostalgia, o primeiro livro de Mircea Cărtărescu a ser publicado no Brasil, foi lançado pela editora Mundaréu. Cărtărescu é o mais importante escritor romeno da atualidade, vem sendo homenageado pelos principais prêmios literários europeus e é um forte candidato ao Nobel de Literatura.

1 comentário em “.Entrevista com Fernando Klabin”

Deixe um comentário

error

Gostando da leitura? :) Compartilhe!