Vozes do Punk Vol. 3 – Fernando Castelo Branco ontem e hoje

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Seguindo a temporada de Vozes do Punk Vol. 3 troquei ideia com Fernando, baixista que atravessou a geração hard core em Teresina nos anos 90 e até hoje contribui com a cena. Numa conversa que mistura sua ligação com a música e vida, ele compartilha suas vivências e perspectivas sobre o gênero. E vamos construindo a memória do punk por aqui e seguindo firme. Boa leitura!

Gosto sempre de perguntar como a música atravessou os ouvidos das pessoas pela primeira vez. Como o punk rock redefiniu seus caminhos sonoros?

Sou a terceira geração de músicos na minha família por parte de pai, e a primeira que tentou levar a coisa de um jeito profissional (continuo tentando…). Meu pai tinha um piano e durante muitos anos não teve um carro. Cresci com esse tipo de valor em casa, talvez seja um ângulo que pouca gente conhece ou tenha ideia que existiu. Comecei a ouvir rock com os irmãos mais velhos dos meus amigos da minha idade e que não ligavam pra som. Eram duas vertentes: os puristas dos anos 1970, e a molecada da rua que ouvia punk rock dos discos do RDP, Coléra, Lobotomia, coisas da Ataque Frontal e da New Face. O Punk Rock sempre foi uma coisa “possível”, ali bem ao alcance da minha falta de treino. Era questão de tempo.

Uma vez conversamos sobre sua participação na banda Izzidoors, na produção do filme A Procura de Identidade. Você cita que o Fernando Conrado (vocalista) foi um cara que trouxe várias referências musicais pra cidade. Como essas influências chegaram a ti e que outras pessoas foram fundamentais para sua construção enquanto músico?

Muitas das coisas que o Fernando trouxe de BH eu conhecia apenas de ouvir falar, não apenas bandas, mas livros, filmes. Na casa dele eu ouvi pela primeira vez, por exemplo, Television, que é uma banda que eu considero uma epifania no meio das minhas referências, pois era um som que eu fazia ideia que existia, mas que eu nunca tinha materializado fisicamente, assim também como outras bandas em comum que a gente curtia e outras que passei a curtir porque ele azucrinava dizendo que era legal, coisas tipo Adrian Belew (guitarrista que tocou com Talking Heads, David Bowie, Nine Inch Nails, e com uma vasta carreira solo) e Japan (banda inglesa de new romantic). Izzidoors foi, graças a Deus, a única vez que precisei trabalhar com cover. Não sei amanhã.

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Quando o Káfila se formou e quais as trilhas que vocês percorreram na cena punk de Teresina? Que altos e baixos podem ser destacados nesse processo?

O Káfila começou em 1994, da maneira mais despretensiosa possível. Até 1996, com a entrada do Rubens, a gente achava que ia dar em nada, se gravasse uma demo já estaria de bom tamanho. Mas aí tocamos em vários lugares, viajamos pra onde nunca imaginamos ir na vida, conhecemos pessoas, estivemos em situações muito loucas. Impossível eu imaginar ter estado trabalhando engravatado num escritório e não ter vivido tudo que o Káfila me proporcionou de experiências. O “baixo” foi a magia se desgastar ao longo do caminho, a banda virar um negócio e a irmandade entre as pessoas acabar como uma sociedade entre estranhos, onde cada um pensa numa direção e não focado no que realmente interessava, que era o trampo da banda. Deu no hiato, que foi de 2006 a 2017.

Levando em conta o cenário político atual, qual a importância do gênero hoje? O punk perdeu sua força política, virou apenas estética? O que ele realmente pode trazer de mudança em tempos sombrios?

Penso que mais do que nunca o gênero tá em voga, primeiro pelo cenário político, e depois porque nunca foi hype, então nunca teve obrigação de ser sucesso, isso de maré baixa, nada de competir com sertanejo, música de corno bêbado ou DJ de pendrive. A prova que o punk/hardcore tem a dizer, e o que é dito cutuca fundo é o Hardcore Contra o Fascismo, que rola desde antes da eleição; e essa perseguição, ainda que a titulo de cortina de fumaça ao Facada Fest, lá em Belém. Não tem como dissociar. Pode ser que você não use o discurso de forma direta, mas o meio pra passar a mensagem é pungente, de qualquer forma. Não é falar por falar.

Que nomes você sugere enquanto base para pensar o punk rock no Brasil? Durante sua caminhada como ouvinte, houveram decepções politico-musicais que você acha marcante?

Brasil tem muitas bandas legais, algumas já atravessam décadas de atividade. Tem aí RDP, Inocentes, Replicantes, Garage Fuzz, Dead Fish, tem o pessoal do DF, Os Cabeloduro, DFC, Macakongs, rolam coletâneas, tamanha é a efervescência da cena deles. Tem o Surra, com quem tocamos aqui, que excursiona bastante. Local então não podíamos estar melhor servidos: Obtus ainda tá aí produzindo; Cianeto HC , que tem uma grande letrista na pessoa do Heitor Matos, e o instrumental tá cada dia mais animal; Kandover, que é uma banda que entrega a alma ao vivo; Escrotos, já numa praia mais crossover. Decepção politico-musical só com quem não entendeu que a gente também criticava, mas que de repente faltava nem vou dizer “bagagem” mas “filtro” pra perceber que a gente queria dar um pouquinho a mais que o óbvio. Gente que ia nos shows me mostrar o dedo hoje vem me pedir pra descolar nossos CDs porque perdeu os que ouvia escondido. Demorou, mas a ficha caiu.

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Você considera que a cena musical em Teresina está crescendo? Qual sua posição sobre as novas bandas e propostas que aparecem nos palcos?

Eu penso que a “cena” inchou e depois encolheu, ficando só o que realmente importa. Hoje tá bem menos complicado armar um show, mesmo com um cenário desolador de falta de locais, galera se vira e faz acontecer. Começo do milênio só tinha nós e o Obtus, hoje você consegue armar vários shows sem repetir banda. Pessoal tem mais acesso a registrar e compartilhar som. O próprio rolê separa quem vai ficar e quem vai passar, isso é natural. Proposta por proposta, penso que a gente continua como lá no inicio dos anos 1990, bem mambembe, só que com equipamento e tocando um pouco melhor e ainda procurando ocupar todos os espaços possíveis.

Podemos dizer que temos algum nome de peso, que nos represente fora do Estado? Você acha que a música piauiense atual tem condições de alcançar o mercado lá fora? Estamos endógenos demais?

Muita gente conhece as bandas de punk/HC daqui fora do estado por conta de internet, rede social, etc., mas é bem restrito ao público do gênero. Um nome de peso mesmo pra valer fora talvez o último tenha sido o Narguilé, porque justamente circulava bastante, era vista, fazia contatos e tal. Bode Preto ouço falar que tem uma penetração boa nessa cena black metal extrema, não sei, não é bem minha praia, apesar de eu ouvir de tudo, pelo que me chega passar essa impressão. Caju Pinga Fogo tem atraído uma atenção boa lá fora, já fez Pernambuco, Bahia, São Paulo. Hugo dos Santos/Tupi Machine também circula bem. Se o artista daqui circular, mostrar a cara, ele tem total condição de atrair atenção em qualquer lugar fora daqui, sem crise, sem “viralatismo”.

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Você já entrou 2020 trazendo novidades com o Autoclismo. Fala sobre esse projeto? O que estão tramando? O que podemos esperar de novo esse ano?

Desde 2004 quando me chamaram pro Növa eu já batia nessa tecla de fazer uma banda só instrumental, porque eu já tava de saco cheio de ocupar microfone e os outros se acharem no direito de vestir carapuça e vir tomar satisfação ou criar bola de neve batendo boca por besteira. Fui voto vencido, apesar de ter contribuído com faixa instrumental no inicio do processo. Se minha sugestão tivesse emplacado a gente teria se inserido naquela leva de bandas tipo Macaco Bong, Constantina, lá do finalzinho da década 00. Não era para ser. Paciência. Como não me guio por mercado, mas pela minha vontade de fazer música que eu tô a fim, acabou que aconteceu a Vulgo Garbus, que foi uma experiência fantástica, uma banda que teve engajamento espetacular, tanto de quem estava dentro quanto de resposta de público, e que acabou porque a gente teve a maturidade e a sensibilidade de parar antes da “mágica” se esvair e a gente talvez começar a colecionar momentos ruins e desgastantes. Com o fim da VG, apareceu a oportunidade de estar fazendo música com o Lucas Barbosa e o Jarrel Santos, que são, além de músicos excepcionais pra trabalhar, pessoas que vem de uma geração bem mais nova que a minha, e me trazem referências que talvez me passassem batidas. Trabalhamos de uma forma bem mais desencanada, solta, flexível, sem estressar, sem forçar desgaste, zoando e nos divertindo muito. Temos um EP, “Apocrita”, de 2019; e agora no comecinho de 2020 lançamos um single, “Page”, junto com um vídeo dirigido pelo André Leão. Pra esse ano ainda pretendemos “zerar” o registro do nosso repertório com mais um trabalho direcionado pro streaming.

Autoclismo em ação.

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