Vozes do Punk Vol 10: 0s encontros sonoros de Artur Sousa

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Para continuar nossas conversas sobre as memórias do punk em Teresina, convidei Artur Sousa para fazer um exercício dos tempos que a gente ouvia som e trocava umas ideias em torno da musicalidade que envolveu nossa geração. A décima voz que compõe este painel da cena punk é de um músico que experimenta, transita e articula influências para se posicionar e refletir sobre sua trajetória e da turma que carrega, ainda hoje, o punk como linha de pensamento.  

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Eu já nasci num núcleo familiar de esquerda, então a influência pesou muito. Meus pais foram filiados ao PCdoB em plena ditadura, quando ainda era clandestino, depois estiveram na fundação do PT. Com essa base cresci ouvindo a música de protesto dos anos 60, 70 e 80, o folk e a MPB da época, mas era aquela coisa, música criada e disseminada em ambientes limpinhos e intelectualizados, nas universidades.

Quando eu estava na pré-adolescência, ali em meados dos anos 90, me apareceram por influência de uma prima mais velha o funk carioca (que ainda tinha em parte essa veia de crítica social), o hip hop e coisas como o Planet Hemp, e aí foi a primeira vez que tive contato com música de protesto sem esse verniz burguês, essa polidez, posso dizer que foi a preparação para o punk.

Eu nasci em Teresina, mas fui criado no Espírito Santo, e mais ou menos ali em 98 ou 99, aconteceu por aqui uma explosão do hardcore e do punk, tinha uma cena enorme, tudo autoral, molecada de 13, 14, 15 anos engajada, lendo Bakunin, discutindo sexismo, racismo, os problemas do capitalismo, e aí já tendo tomado gosto por música de protesto desde criança foi inevitável fazer parte dessa onda.

Nessa época, entre as bandas de metal que eu curtia muito, eu ouvia coisas como Mukeka de Rato, Dead Fish, Gritos de Ódio, Tímpanos da Escória, era tudo local e tinha fita K7 de tudo isso. Eu já tocava guitarra e queria tocar Blind Guardian, Slayer, mas a falta de paciência e de técnica só me permitiam tocar hardcore mesmo.

Eu juntei uns amigos pra tirar umas faixas do Iron Maiden e só conseguíamos tocar duas músicas do Mukeka de Rato, acho que foi aí que eu percebi que não seria nunca um virtuose, nesse momento o punk parecia fazer sentido demais para mim. Aí eu flertei não só com a musicalidade, mas com a coisa política e a postura do punk também, e isso nunca mais saiu de mim.

O engraçado é que quando eu trazia para casa essas músicas e debates, meus pais estavam sempre abertos, mas achavam radical demais tudo aquilo. Minha mãe tinha pavor do Sobrevivendo no Inferno dos Racionais, e do primeirão do Mukeka de Rato (o Pasqualin na Terra do Chupacabra), era tudo muito sujo, muito pesado, era xingamento demais, era cru, violento e real, como eu disse, não tinha aquele verniz da crítica feita pelo Chico Buarque, não tinha nada macio, pra ser decodificado.

No punk e no rap você bota uma base simples pra fazer vocais em cima, chama de filho da puta quem é pra ser chamado de filho da puta e pronto. Teve esse choque geracional entre a gente, mas foi tudo numa boa.

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Paralelo a isso tudo também curtia metal, particularmente o thrash metal dos anos 80. Meu sonho era montar uma banda estilo Nuclear Assault, Taurus, Azul Limão, Dorsal Atlântica… Em 2000 fui para Teresina com meu pai para morar um tempo, conheci no Colégio Sinopse o Dario, irmão do Dante e do Demetrios, dois caras ativos na cena anarcopunk do Piauí, e assim me aproximei do Anarcóticos, que estava precisando de um baixista, e na falta de uma banda de thrash metal, eu assumi o posto e levei tudo o que eu tinha de thrash para o punk da banda.

Nesse momento, eu vim a tocar de fato numa banda, com agenda fixa de ensaios, shows, e inclusive militância. Os caras eram mais velhos, me ensinaram muito, foi muito foda e transformadora aquela experiência ali com o Nando (grande cara, morreu já há uns anos), o Dante e o Zé Júlio, formadora de caráter mesmo.

Com o Anarcóticos eu conheci uma galera do movimento punk e também do movimento anarquista piauiense, pessoal do GEA (Grupo de Estudos Anarquistas) e outras bandas como o Obtus, Ingovernáveis, Evidência, Terra Podre, Mocorongos. Eu devia ter uns 15 anos na época, esse pessoal quase todo já estava na universidade, com exceção de uns caras que tinham mais ou menos a minha idade como o Ravel, o Maju, você mesmo, Aristides, o Dario e meu primo Narcísio.

Eu falo do pessoal, da importância dessa galera, porque a gente não se juntava só pra tocar. A gente bebia junto, se encontrava pra ouvir música, pra jogar conversa fora e também pra fazer umas ações diretas. Esses caras levaram minha intelectualidade a um outro nível, me apresentaram livros que talvez eu nunca fosse conhecer, e debatiam coisas num nível inacreditável. Envolvido com tudo isso, em pouco tempo de banda e convivência, eu tinha me tornado um punk.

A gente bebia pra caralho. Das doideiras da época eu lembro do Nando comer um copo de vidro na minha frente e dizer que a dor está na mente. Nando tinha uma coisa com a filosofia do Budô, aquela mentalidade do guerreiro oriental. Lembro das rodas de poesia improvisada, e de uma brincadeira que consistia em uma pessoa dizer o nome de um planeta, e todo o resto dos caras, cada qual na sua vez, dizer um tipo de coisa absurda que poderia ter naquele planeta.

Era um exercício intelectual bizarro e interessante de procurar termos científicos e ir combinando: um dizia “seres pluricelulares”, outro dizia “pessoas autótrofas”, outro dizia “mamíferos anfíbios” e assim ia, sem ninguém repetir o que o outro tinha dito. Depois de uma garrafa de cachaça já estávamos falando em “bactérias radioativas nazistas bissexuais” e coisas do tipo. Era realmente muito engraçado estando lá.

Sobre a banda, o carro que levava a gente para os ensaios (que geralmente eram na casa do Zé Júlio, no Porto Alegre) era um Chevette a álcool, do Nando. O carro vivia na reserva, a gente botava ele pra rodar juntando moedinhas pro álcool e me lembro de várias vezes ter que descer para empurrar.

Envolvido com essa galera e tendo me tornado um punk no período alto da adolescência, você imagina, eu queria levar militância pra todo lugar. Isso pôde ser visto quando eu organizei junto com o Dario uma mostra para a Feira de Ciências do Sinopse, ainda em 2000.

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Fizemos um trabalho para apresentar o movimento punk e o anarquismo no colégio, para alunos e pais, convidamos dois punks norte-americanos que estavam de passagem pelo Piauí (conhecidos pelos apelidos que ganharam aqui, Galo e Abutre) para participarem da apresentação, estendemos uma bandeira preta GIGANTE (que deu a maior confusão) onde tinha o símbolo do anarquismo e o texto “Autogestão – Nem pátria, nem patrão”, e usamos camisas padronizadas com o “a-nárquico” na frente e atrás “Um grito contra a exploração e a alienação social”. Esse projeto deu o que falar na época, e as camisas viraram uniforme de muita gente, incluindo eu mesmo.

Pra mim pareceram 2 anos, mas eu só toquei com o Anarcóticos em uns 4 ou 5 shows, e só estive envolvido diretamente com o pessoal do GEA por uns 5 meses. O primeiro foi no Clube dos Economiários, eu acho, perto da Praça Saraiva, foi muito foda. Um outro show que eu lembro foi no antigo Bar Palmares, acho que foi o show da coletânea Solidariedade, que a gente vendia discos e arrecadava dinheiro para um projeto que estava em vários Estados.

Eu tocava pulando, me divertindo mesmo, correndo pelo palco, me jogando no chão, e nesse dia do Solidariedade me deram a porra de um cabo de 1,5m e eu fiquei ali com o baixo colado no amplificador, não pude me mexer nada hahaha.

Lembro também de junto dessa galera participar de uma ação na Vila Irmã Dulce, acho que na época era uma das maiores favelas da América Latina. Tinha tido uma chuva e as casas de muita gente tinham caído, nós fomos lá ajudar a reconstruir, eram casas de taipa, então eu voltei pra casa marrom do barro, as mãos todas arrebentadas. Nesse ano eu reprovei na escola, meu pai ficou sabendo que eu tinha ido fazer esse trabalho numa das favelas com maiores taxas de assassinatos do Piauí e por causa dessas duas coisas me proibiu de continuar ensaiando e frequentando as ações diretas. Eu liguei pra banda e disse “Caras, rolou uma repressão aqui em casa…”.

Por causa do Anarcóticos e do GEA eu conheci muita gente legal, com quem ainda tenho contato.

Se o hip hop mostrou pra mim como é a vida de quem vive o pior lado do capitalismo e da sociedade, o punk mostrou que é possível canalizar essa indignação para se organizar e transformar essa merda toda. O princípio do “Faça Você Mesmo”, a solidariedade ativa para com pessoas que sofrem, o hábito de aprofundar a leitura teórica, tudo isso eu aprendi com o punk e mantenho ainda hoje.

Por causa dessa experiência me mantive politicamente anarquista por um bom tempo, crendo no princípio da autogestão cheguei a flertar com o social-liberalismo na era PT (é, isso é um pouco vergonhoso, mas pelo menos eu me via sendo à esquerda do liberalismo), e depois de aprofundar a leitura histórica sobre as experiências socialistas, com todos os seus erros e acertos, passei a defender o projeto socialista, da maneira como foi e está sendo realizada na China, desde Mao Tsé Tung até Xi Jinping hoje, passando por Deng Xiaoping. Ele projetou a China moderna que temos hoje, capaz de trazer prosperidade e segurança para o seu povo, e defender sua revolução.

Eles lá tiveram certas similaridades com nossa realidade e veja hoje, são a segunda maior potência do mundo, têm segurança pública em nível europeu, a maior infraestrutura de transportes do mundo, tudo é subsidiado para facilitar o acesso do cidadão comum. Há muito a melhorar lá, mas já fizeram muito, tiraram 800 milhões da miséria e isso nunca foi feito em nenhum outro momento da história humana.

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O princípio que rege a minha posição política é o mesmo. Sabe, solidariedade, você se colocar no lugar do outro, sentir a dor do outro. Hoje eu trabalho numa área que me dá alguma perspectiva, que não sofreu tanto com a crise e com as imbecilidades desse presidente merda que está aí, mas ter essa segurança mínima só pra mim e pra minha família não é o suficiente, nunca foi.

Eu quero isso, um conforto mínimo, perspectivas, pra todo mundo: pro cara que hoje está no sinal vendendo o pão caseiro que a esposa fez, um emprego decente, que pague as contas e que tenha sobra suficiente pra projetar o futuro; pro idoso vendendo paçoquinha na rua, uma aposentadoria que o permita descansar sem medo de morrer por falta de remédios; para as crianças fazendo malabarismo em troca de moedas, escola em tempo integral. Eu não tenho como ficar satisfeito e relaxar enquanto essas pessoas não tiverem um mínimo, e essa insatisfação, essa vontade de agir pra mudar as coisas, no meu caso vem muito do punk.

Na superfície, hoje eu sou um cara que não poderia talvez ser mais tradicional: sou casado, empregado, pagador de boleto e pai de uma menina linda, a Olívia, que está com 8 meses. Mas, cara, aquele adolescente de 15 anos, revoltado com a situação do mundo, ainda está aqui dentro, e quando chegar a idade certa, pretendo repassar pra minha filha toda essa experiência. Quero falar pra ela dos problemas da sociedade, e mostrar a tragédia em que vive a maioria dos brasileiros. Como meus pais fizeram comigo. Formação política tem que começar em casa.

Sobre música, eu continuo tocando, mas segui outros rumos depois do Anarcóticos. Explorei o grunge, sludge metal e stoner no início dos anos 2000, depois disso fui a fundo em rock experimental flertando com música brasileira, post punk e outras coisas. Com o Bedtrip Clube, chegamos a fazer uma tour por São Paulo, e a postura punk de “fodam-se suas expectativas” ainda estava lá.

Bedtrip Clube

Ultimamente tô aqui projetando gravar algumas coisas pra ter num canal do YouTube, tenho muita coisa e continuo produzindo. Tô cogitando gravar um disco inteiro de hip hop oldschool mesmo, crítica social direta, mas também tenho faixas para fazer um outro projeto mais para rock alternativo, buscando aqui e ali referências do samba, da bossa nova e até da música baiana pra juntar com Shoegaze, Post Rock e música dos anos 80 – talvez alguém por aí diga que é simplesmente “Nova MPB”.

Foi muito bom relembrar essa coisa toda. Me deu uma saudade da porra daqueles dias, das amizades, dos ensaios, das brincadeiras, do acreditar nas pessoas e daquela energia que se tem quando você é adolescente e só tem certezas.

Imagens: Arquivo pessoal.

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