Apresentação e tradução de Floriano Martins
O Surrealismo chega à Tchecoslováquia em 1930, quando o poeta Vitezlav Nezval (1900-1958) funda um grupo surrealista em Praga. Na medida em que começam a ecoar as ações do grupo, viajam a Praga André Breton e Paul Éluard, em 1934, ocasião em que Breton profere conferência sobre a situação surrealista do objeto. A persistência do surrealismo checo enfrentou inúmeros obstáculos de natureza política, cujo balanço inclui perseguições, prisões, exílios, culminando com a dissolução do grupo em face da ocupação nazista. Após a morte de Karel Teig (1900-1951) e Zavis Kalandra (1902-1950), na prisão, ressurge o surrealismo checo que encontra na eclosão do Maio de 1968 o marco de uma nova fase. Mas é somente algumas décadas depois, com a queda da União Soviética e o desmembramento do país, dividido entre Eslováquia e República Tcheca, que muitos dos surrealistas exilados retornam, revitalizando as ações do movimento. Dentre eles, Arnost Budik (1936), poeta e artista plástico, que logo trataria de fundar a revista surrealista Stir Up – Stix. Naturalizado belga, Budik divide residência nos dois países, organizando suas mostras plásticas. Segundo ele, o Surrealismo é uma atitude perante a realidade, um estado de espírito e uma disposição específica da alma. E porque não há estética surrealista, o surrealismo não pode ser considerado como um “ismo” qualquer, ou escola artística ou literária. Claro que, episodicamente, mantém relações estreitas com a arte, a literatura, a política, as ciências ou a criação, onde cintila uma estrela do maravilhoso, que permite aos surrealistas esquecerem todas as regras formais em suas obras. Em 1973, Budik organizou e traduziu o livro La poésie surréaliste tchèque et slovaque. Em 2001, Karol Baron publicou um volume de estudos acerca de sua obra: Arnost Budik, Les affinités inexorables.
COMO DUAS GOTAS DE ÁGUA
Como duas gotas de água
como um sonho sem desejo
estas são as linhas que estão rasgando
com uma sombra de fome
Já não são quimeras
nem dúvidas que dominam a memória
sem regras ou indicações
o pouco que ainda temos de nossa juventude
e que se esconde por trás do dia e da noite
Enquanto isso,
o vento sopra no meio das telas
o desprezo se dissolve em lembranças distantes
a primavera se instala como por hábito
nas pinturas de Artur do Cruzeiro Seixas
EM ALGUM LUGAR POR TRÁS DO AMANHECER
Em algum lugar por trás do amanhecer
no meio das estrelas, onde meus braços estão sempre vazios
eu te convidarei para o meu domínio
eu te convidarei para o meu chalé
e colarei em ti meu coração de mármore
NÓS SOMOS COMO OS AMANTES
Nós somos como os amantes
na poeira das estrelas, descobrimos hélio
e com meu preenchimento
confiamo-nos ao limiar da nostalgia que afunda conosco cada vez mais para baixo
EVOCAÇÕES INESPERADAS | Dois fragmentos
I
Montões de folhas mortas rasgadas de árvores quase desfolhadas estavam no meio de um parque e frustraram o vento. Bancos vazios e dois ou três cisnes em um pequeno lago completaram a imagem de uma noite de outono.
Ela estava a poucos passos de distância de mim. A atmosfera triste do lugar deu à luz rugas sóbrias que contrastaram tão estranhamente com a transparente aparência de seus dezoito anos. Sua mão que me tocou era fria e flexível. Seu cabelo longo e flexível tocava a brisa enquanto mergulhava como água no pequeno lago. Eu não sabia o que dizer. Nós nos encaramos e continuamos de boca calada.
Ela ficou congelada diante de mim como antes, quando decidiu sair.
II
No espelho eu vi um rosto que parecia pertencer a outra pessoa. Ao crepúsculo, seus traços se transformaram em uma videira dependurada nas folhas úmidas de uma noite de verão.
Eu toquei os cílios, lábios e têmporas. Eram lisos e suaves, meus dedos escorriam sobre eles como um teclado. Eu gostaria de forjá-los e jamais deixá-los.
Na parte de trás de um quadro barroco sorriram-me com seus botões de rosas, um chapéu de palha, um lenço Dior e uma garrafa de conhaque meio vazia.
Abri os olhos.
O quadro barroco estava vazio. Para dizer a verdade, ele não me pareceu tão convicto, mostrando meu rosto inchado e infeliz, cansado pela idade e as dolorosas experiências da vida.
Lindíssimos poemas.