Escutas Sensíveis em Diálogo com Lia Testa, Lemuel Gandara, Martha Victor e Augusto Niemar

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Entrevista concedida a Demetrios Galvão em novembro 2020

Esse não tem sido um ano fácil pra ninguém, passamos dos 170 mil mortos pela Covid-19 no Brasil e quase 1.500.000 mil mortos no mundo, um cenário assustador e ao mesmo tempo singular. No “entre” tantos sentimentos e sensações insólitas, medos e incertezas, muita gente vem produzindo sentidos em diálogo com esse cenário de pandemia/pandemônio, registrando seus testemunhos, publicando suas angústias, gritando suas dores ou mesmo, procurando abrigos e estratégias para manter a sanidade e a esperança. Nesse campo de contradições estético-políticas-existenciais Lia Testa, Lemuel Gandara, Martha Victor e Augusto Niemar, se reuniram para produzir um documentário-poético-performance com a proposta de oferecer uma escuta sensível, uma espécie de contradiscurso de enfrentamento, um deslocamento do olhar e da percepção. O documentário foi realizado no contexto do isolamento e envolveu além dos 4 idealizadores(as), 13 poetas e a Flaviane Lopes na produção executiva. Um trabalho feito nas dobras do distanciamento geográfico e da aproximação tecnológica, uma marca das produções artísticas desse ano. Assim, nasceu “Poesia para Escutas Sensíveis”.

Aproveitando que o documentário-performance acabou de ser lançado e já disponível no YouTube, realizamos esse diálogo com os idealizadores(as) via distanciamento/aproximação conduzidos pela energia vital da poesia que nos rege como seres de esperança.


Para iniciar esse diálogo sobre o documentário-performance “Poesia para Escutas Sensíveis”, falem sobre como surgiu esse projeto, como foi montar a equipe. A ideia surgiu nesse contexto de isolamento social e de pandemia/pandemônio ou já era algo que vinha de mais tempo? 

A ideia inicial tem a ver com a minha (Lia Testa) participação no filme “MollyBloomsMovie” (2020, a partir do monólogo da Molly Bloom na obra “Ulysses”, de James Joyce). O filme, disponível no youtube, tem a direção de Augusto Niemar e conta com Lemuel Gandara e Rafael Gandara na produção e montagem, além da presença ilustre de Simone Spoladore, atrizes, cantoras, escritoras e mulheres criadoras (https://www.youtube.com/watch?v=ies5D6yt_Aw&t=330s). Ressalto que participar desse filme foi uma experiência incrível, ainda mais nestes contextos de isolamento social. A partir disso, surgiu a ideia de elaborar outro filme que reunisse um coletivo de poetas contemporâneos da língua portuguesa, para ser apresentado na FLUA – Feira Literária da UFT de Araguaína – Travessias em Tempos de Incertezas, que neste ano foi realizada apenas virtualmente. À vista disso, eu e a professora Martha Vieira (ambas da UFT) vínhamos conversando sobre a possibilidade de realizar este projeto, fizemos o convite aos professores Augusto Niemar (UnB) e Lemuel Gandara (IFG/Formosa). Desse modo, nossa equipe é formada por professores pesquisadores, que também são artistas com produções de alcance nacional e internacional, por exemplo, Testa e Gandara atuam nas artes visuais e Niemar é poeta. Podemos dizer que, além desses inputs artísticos, o filme contempla e referencia diferentes contextos da pandemia/pandemônio – COVID-19 e do isolamento social traduzidos em projeções poéticas. Chama atenção para temas candentes da contemporaneidade, como a questão étnica e da condição feminina e para uma estética da pandemia como definem Niemar & Gandara.

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O título do documentário traz uma ideia preciosa que é a de “escutas sensíveis”, mas creio que a montagem e a realização deste trabalho traz no seu conjunto uma questão que é o “olhar sensível”. Como foi a escolha dos poetas e das poetas, quais os critérios utilizados, que elementos foram levados em consideração? 

Estamos vivendo momentos de muitas tensões, há muitas absurdidades sendo proferidas em diferentes discursos, algumas que nos estarrecem profundamente, e estas “escutas sensíveis” são mais necessárias do que nunca, pois o “sensível” é sempre aquilo que nos afeta e que nos atravessa. A escuta, sensível, do outro acaba se tornando uma esperança. Desde o início das nossas interlocuções, eu (Lia Testa) e Martha envolvidas na pré-produção estávamos permeadas por um desejo de abarcar uma diversidade de vozes e de poetas. Assim, nossa ideia era reunir acima de tudo diferentes vozes e trânsitos culturais. Desse modo, foi “acontecendo”, enviamos vários convites, alguns foram aceitando participar do documentário, outros não (por diferentes motivos). E as vozes e imagens agregaram uma “presença de chegança”, foram constituindo o dizer de suas “corpovozesgrafias”. Ao mesmo tempo, a experiência cinêmica de Niemar & Gandara, produtores e teóricos da sétima arte, facultou um percurso de recepção e de criação desse “documentário-performance”. Documentário, porque está na intimidade vital dos e das poetas, e performance posto que ampliam modos criativos de representar poesia.


Assista : “Poesia para Escutas Sensíveis” (Brasil, 2020)

Que cartografia poética vocês pensam ter construído com essa amostragem de 13 poetas? O que eles dizem sobre a poesia contemporânea em língua portuguesa? 

De espaços que traçam e potencializam movências da geopoesia, em contextos de trânsitos culturais e de várias vozes, as poetas e os poetas performatizam identidades e representações plurais. Por dinâmicas bastante singulares, ao mesmo tempo, coletivas, foram criando, assim, uma rede de movimentos contemporâneos contingentes de uma visada/mirada mais alternativa de encontros e de alteridades. Percebemos, nesse conjunto, uma reterritoralização de trajetórias, de diversidades, de espaços, de percursos de sujeitos que se conectam e se permitem uma visão mais abrangente da poesia pela diversidade humana, relacionada às multiplicidades culturais em tempos de pandemia. São vozes que atravessam movimentos de rexistências, de cumplicidades e pactos com os entre-muitos-lugares nos planos éticos, políticos e estéticos. Há acolhimentos das diferenças implicando em possibilidades poético-narrativas, com construções multifacetadas, heterogênas e multiculturais, como afirma Sandra Regina Goulart Almeida (2015, p. 17): “não apaga a marca dessa diferença nem implica uma diversidade e assimilação cultural acríticas”. São escritas de performatividades poéticas que possibilitam reflexões possíveis para “escutas sensíveis”, problematizando as muitas perspectivas dos possíveis diálogos humanos, com suas geocartografias emocionais e emergentes em seu bojo com questões identitárias (de classe, de raça/etnicidade, de gênero, de enfronteiramento). O resultado fílmico apresenta um contexto audiovisual que chama para a harmonia de vozes e estéticas distintas deslocadas no tempo e no espaço arranajado no espaço da cyberflânerie. Cada vídeo chegou à pós-produção concluído, porém aberto ao diálogo possível por meio da montagem. Com isso em vista, uma das nossas principais decisões foi apresentar o nome dos e das poetas nos créditos finais para alcançar uma sensação mais orgânica e dinâmica, afinal, todos atuaram diante de câmeras em cenários bem definidos. Nessa “estética da pandemia” (Niemar & Gandara) o espaço público e o espaço privado ganham camadas singulares na sua exibição para espectadores-cyberflâneurs.

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Depois que receberam todos os vídeos, cada um com sua singularidade, como foi pensar e realizar a narrativa audiovisual, qual conceito foi utilizado?

Em diversos encontros via Google Meet para a elaboração do roteiro, chegamos à ideia inédita de uma construção bi-triangular. Ela consiste em um triângulo externo que contempla o vídeo de abertura, o do centro e o último. Precisávamos de uma imagem com amplitude semiótica, por essa razão, o plongée captado pela Flaviane Lopes para o vídeo de Leo Gonçalves é o primeiro plano do filme. Na ponta superior do triângulo, inserimos o Marcus Groza, pois, a partir dele, o documentário apresenta vídeos com cortes internos. O Pedro Tierra aparece como a ponta final, visto que a sua narrativa apresenta uma estética de uma boneca russa (matrioska) e pela metragem do seu vídeo (seis minutos). O triângulo interno marca os momentos em que a pandemia do COVID-19 aparece, enquanto poesia, que são os vídeos do Alex Simões e da Yúmina Alexandra Zêdo (com o Groza ainda no centro). Ao mesmo tempo, esse filme abre uma nova perspectiva prática do cinema literário e desafia o conceito de tradução coletiva, uma vez que todos movimentam muitas forças cinêmicas para a obra final. 

Tenho a impressão que as pessoas estão falando todas ao mesmo tempo e não se ouvem, causando um ruído bastante incômodo, inclusive, derivando para intolerâncias, falta de sensibilidade etc. Na opinião de vocês qual a importância da escuta nesse momento?

A escuta sensível nos possibilita compreender que o outro existe. O outro existe para além do meu ego, da minha vaidade, do meu orgulho, da quantidade de likes, das superficialidades e das fugacidades da vida contemporânea. O outro se apresenta como um ser a ser escutado e contemplado na possibilidade de sua abertura ao mundo e também à fala e à sua visualização. O documentário, como resultado coletivo, propõe, por meio da poesia, um deslocamento entre alteridades. 

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Com a suspensão temporária do mundo físico, devido ao isolamento social, a dimensão eletrônica/virtual ganhou um primeiro plano nas nossas atividades cotidianas. Como vocês observam o impacto dessa experiência com as tecnologias, os contatos e as colaborações virtuais, as performances feitas em casa etc., no campo das artes em geral?

Nesse período de isolamento temos visto manifestações artísticas muito interessantes. Muitos poetas e escritores têm improvisado na rede, atores e diretores vão propondo novos formatos nas mais diversas plataformas. Além disso, vários festivais de cinema on line têm alimentado a nossa sede e fome de arte. Nosso projeto foi desafiador em diversos níveis. Uma das questões é justamente a lida com os dispositivos tecnológicos. Fazer captação de imagem e som requer um conhecimento sobre técnicas que não fazem parte do cotidiano, por exemplo, a questão da resolução do vídeo, os ruídos do áudio, a coloração da imagem, entre outros. Filmar é muito mais profundo e complexo do que apertar o botão rec dos celulares.

Que novos projetos vocês estão pensando/desenvolvendo para um futuro breve?

Estamos trabalhando no filme experimental “Fantasmagorias”, já em fase de pós-produção. É uma reflexão audiovisual sobre a década de 2010, a partir dos fantasmas da memória em projeção aleatória que mescla imagens, sons, poesia e colagens. Ainda, há um outro projeto com a personagem Capitu, de Machado de Assis. Na esteira do MollyBloomsMovie, pretendemos é levar cada vez mais mulheres para as cybertelas. Esse nosso “coletivo para escutas sensíveis” no centroeste-norte vai se consolidando no sentido prático e teórico no grande tempo das artes em tempos de pandemia.

                              Agradecemos a oportunidade de diálogo, Evoé-geopoesia!

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