Atlas Lírico da América Hispânica – Diálogo entre Demetrios Galvão & Floriano Martins

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Ao longo do ano de 2020 nós da revista Acrobata e o poeta, pesquisador e tradutor, Floriano Martins, desenvolvemos uma parceria que tem levado aos nossos leitores e leitoras um conteúdo literário com diversas traduções, textos críticos e entrevistas, com autores e autoras de várias partes do mundo, porém, com uma pegada forte no continente americano, principalmente de expressão hispânica. Recentemente percebemos a necessidade de dar corpo a um projeto mais específico e concentrado, no intuito de organizar e dar a ver/ler uma parcela da produção poética hispano-americana. Depois de algumas conversas chegamos à ideia de criar um Atlas Lírico da América Hispânica, audacioso projeto que abrange 19 países, tudo com curadoria, tradução e apresentação do Floriano Martins. Segue uma breve conversa que esclarece um pouco sobre nossas reflexões e qual a proposta do projeto.


DG | Comecei a me interessar pela poesia produzida nas Américas através de um livro que você organizou, O Começo da Busca: o surrealismo na poesia da América Latina. Esse livro foi de grande importância para mim e na construção do meu repertório de leituras fora do eixo europeu. Na tua opinião, porque no Brasil se conhece tão pouco sobre a literatura/poesia feita no nosso continente? 

FM | O Brasil conhece pouco ou menos acerca da literatura, em qualquer latitude, que não participe de um cânone viciado. E como lemos cada vez menos, a catástrofe um dia chegará à soleira de uma sociedade ágrafa. Claro que se pensamos em termos de América Hispânica, o dilema assume uma conotação atípica porque somos um país cercado por 19 outros que falam o mesmo idioma, distinto do nosso. Portanto, seria mais do que natural que tivéssemos boa intimidade com a cultura hispano-americana, e, também, com o próprio idioma. A raiz disto é o nosso alheamento histórico, um país sem paideuma, sem aquele mínimo registro crítico de nossa produção, incluindo a sua disponibilidade editorial. Ora, se não temos isto em relação a nós mesmos, como esperar que o tenhamos no tocante a outras culturas? A questão maior, que me indago a diário, é se queremos ter. O pouco que lemos é de modo aleatório, uma leitura submissa a modismos do mercado de livros e do mundo acadêmico. Observe que nem mesmo escritores brasileiros chamam para si a responsabilidade de criar focos de conhecimento da literatura hispano-americana.

DG | O que você aponta, talvez se relacione com uma velha política de Estado e de uma certa historiografia, ambas caducas, que se puseram de joelhos e replicaram uma lógica colonialista. Mercado editorial e críticos/professores universitários, se voltaram para a Europa e EUA e esqueceram o diálogo com os seus iguais, de origem histórica semelhante. Por consequência, os leitores no Brasil não vislumbram o universo americano latino/hispânico como espaço literário, artístico. Assim, leem apenas os clássicos do cânone – Borges, Neruda, Cortázar, Galeano, Vargas Llosa etc.

FM | Sim, mas com duas ressalvas. No primeiro lugar, não podemos falar em Europa, porque o continente é amplo e bastante distinto entre si, com culturas riquíssimas que desconhecemos por completo. Em segundo lugar, mesmo o cânone latino, discutível como todo cânone, aqui aporta de modo irregular e acrítico. Sempre lembro um caso curioso que se passou com o grande poeta argentino Enrique Molina, autor de uma única novela, livro que foi o único a ter tradução publicada no Brasil, anomalia que perdurou até o ano passado quando a Sol Negro Edições publicou minha tradução de um de seus livros mais importantes: Costumes errantes ou a redondeza da terra. Ou seja, estamos mais para samba do crioulo doido do que para um erro estratégico.

DG | Esse debate é bastante complexo e tem várias entradas e saídas. Mas, me chama a atenção por ser, também, uma questão política e histórica, e não só, literária ou de mercado. O Brasil, de um modo geral, deu as costas para os seus vizinhos e não existe um esforço claro, no campo educacional, artístico e político de se conhecer a história, a literatura e a língua dos nossos vizinhos. Isso é bastante grave…

FM | O país inteiro deita-se em uma malha de perigos. E sinceramente não vamos solucioná-los, até porque persiste a indagação: há mesmo um desejo de mudança? Veja bem, eu lido sistematicamente com o tema desde meados dos anos 1980, quando comecei a entrevistar poetas hispano-americanos para suplementos literários em distintas partes do país, Curitiba, Manaus, Belo Horizonte, São Paulo, Natal, Fortaleza, não eram casos isolados. No entanto é quase nula a compreensão que se teve deste meu trabalho, em âmbito institucional. A partir de 1999, além da criação da Agulha Revista de Cultura, montei o Projeto Editorial Banda Hispânica, que supostamente deveria ter chamado a atenção, pela amplitude e ousadia.

DG | O seu trabalho como pesquisador e tradutor é de grande importância para trazer à nossa língua, uma parte desses tesouros da América que ainda não foi saqueado. As suas publicações na Agulha Revista de Cultura, Banda Hispânica e os livros editados pelo selo ARC Edições, talvez sejam um dos poucos esforços, em termos nacionais, em criar aproximações com a poesia escrita o continente. Fala um pouco sobre esse tesouro poético que os leitores brasileiros, em grande medida, não conhecem.

FM | Não é um esforço único, porém se destaca por ser um esforço sistemático. Livros como Um novo continente – Poesia e Surrealismo na América (2016) e Escritura conquistada – Poesia hispano-americana (2018) são títulos raros em nossa historiografia e tratam de maneira abrangente e aprofundada os fatores pertinentes ao estudo das vanguardas em geral e do Surrealismo, em específico, em todo o continente. Mais ainda, não possuem correlatos nem mesmo em outros idiomas. Um deles eu o publiquei também no México e ali tem boa aceitação. No Brasil o que se escuta é um imenso silêncio. Não quero aqui passar a ideia de um queixoso. Apenas refiro fatos. Ao final de 2008, quando assinei a curadoria da 8ª Bienal Internacional do Livro do Ceará, trouxemos para o país representantes da lírica de todos os países hispano-americanos, um ousado e vitorioso projeto que não despertou, no entanto, a menor curiosidade da mídia em âmbito nacional. Quanto a falar do “tesouro poético” bem sabes que se trata de uma vastidão e teríamos que situar o raio de nossa observação.

DG | Então, para localizar melhor, quando imagino a produção poética da América Hispânica me vem à mente, sobretudo, um universo imenso que eu conheço pouco. Tenho a leitura dos autores mais conhecidos e o diferencial, vem de suas traduções. Imagino que seria maravilhoso conhecer/ler poetas de países como, por exemplo: Guatemala, Nicarágua, Venezuela, Bolívia, Cuba e Honduras. Países de onde temos pouca informação literária.

FM | A primeira coisa a observar é que todo o continente foi colônia europeia. Em cada país, com a sua natural singularidade, tivemos primeiramente uma literatura imposta que aos poucos foi gerando suas faíscas próprias, sua fonte de iluminação etc. De algum modo são todas literaturas mestiças, vindo daí uma das maiores riquezas do continente. No caso da América Hispânica, vale lembrar que o cubano José Martí (1853-1895) já no século XIX destacava que conhecer diversas literaturas é a melhor maneira de se livrar da tirania de algumas delas. Esta frase bem poderia ser um mantra a se repetir no Brasil. Quando entramos no século XX o que se observa é que a diversidade e a juventude de cada país deram origem a uma série de movimentos que, embora estabelecendo vasos comunicantes com as vanguardas europeias, possuíam suas características próprias e em alguns casos vimos uma rejeição aos modelos do velho continente.

DG | Acho interessante a perspectiva da literatura mestiça, resultado histórico do entrelaçamento multicultural. Então, gostaria que você apontasse alguns autores que conseguiram se apropriar dos recursos de linguagem do colonizador e misturar com os elementos originários do continente, encaminhando uma marca típica dessa relação intercultural na poesia, produzindo algo único.

FM | Relutando em aceitar essa perspectiva de um algo único, lembrando que a mestiçagem não casa bem com um plano autóctone. De qualquer modo, é assombrosa a singularidade da obra de poetas como José Lezama Lima, Vicente Huidobro e Humberto Díaz-Casanueva, que, partindo de um diálogo intenso, respectivamente, com o barroco, as vanguardas europeias e o expressionismo alemão, forjaram um metal próprio de intensa renovação. Isto também se deu com Marosa di Giorgio e Olga Orozco, a primeira cruzando as águas de Lautréamont, a segunda evocando a tradição esotérica, criaram duas escritas singulares fascinantes. E não são casos isolados, como veremos neste Atlas Lírico da América Hispânica que daremos a público.

DG | Pois bem… visualizando as suas traduções, publicadas na Acrobata, me fez pensar justamente em ampliar o nosso conteúdo e a relação com a América Latina, proporcionando aos nossos leitores e leitoras o acesso a esse universo poético pouco conhecido no Brasil. Quando comecei a lhe falar um pouco do que estava pensando, de pronto, você sacou da cachola o título Atlas Lírico da América Hispânica e eu fui ao delírio com essa ideia. Fala um pouco sobre esse nosso projeto e o que anda preparando.

FM |  Graças à generosidade de seu diretor, Mario Meléndez, venho publicando na revista chilena Altazor, da Fundação Vicente Huidobro, a série de quase 80 entrevistas a poetas hispano-americanos que constitui o já referido livro Escritura conquistada – Poesia hispano-americana. Temos ali o registro do pensamento, da defesa estética e visão de mundo desses poetas. Embora ao final de cada entrevista sejam incluídos poemas na língua original, faltava um correspondente dessa ousadia em língua brasileira. Foi quando me sugeriste, com igual generosidade, o projeto de que nos ocupamos agora. Há pouco mais de 30 anos eu comecei a esboçar uma extensa antologia da poesia hispano-americana que certamente ocuparia vários volumes. Dada a inviabilidade do mesmo, o projeto posteriormente, em 2007, ganhou uma versão distinta, uma série de antologias nacionais, que seriam publicadas pelas Edições Bagaço. Desta vez, eu contava com a cumplicidade da poeta Lucila Nogueira. Publicamos o primeiro volume, dedicado à Colômbia e já havíamos começado a trabalhar no volume seguinte, Venezuela, quando o falecimento de Lucila engaveta o projeto. Claro que muita coisa, ao longo dos últimos 20 anos foi publicado na Banda Hispânica, porém a ideia agora é a de retomar o formato original, mescla de antologia poética e fragmentos de crítica da tradição lírica hispano-americana. Deste modo, teremos um grande mapa que incluirá poetas de toda a extensão do século XX, além de nomes surgidos mais recentemente.

DG | Este é um projeto que está me empolgando muito, pois é um desdobramento de uma ação colaborativa, um esforço no sentido de proporcionar aos leitores brasileiros uma outra visão poética do continente. O Atlas Lírico da América Hispânica é uma iniciativa desafiadora e ousado. Eu só tenho a agradecer por essa parceria, por sua generosidade e sensibilidade.

FM | Agradecemos também à riqueza e diversidade estética da lírica hispano-americana que nos permite um projeto de tamanho fôlego. Inicialmente apresentaremos três poetas de cada um dos 19 países, como forma de lançamento do projeto. Em seguida iremos sistematicamente acrescentando novos autores. Creio que hoje há uma nova geração de leitores que se mostra mais atenta ao ambiente poético hispano-americano, de modo que aos poucos vamos apresentar a eles aquelas diversas literaturas que nos livrará a todos da tirania de algumas delas.

[Outubro de 2020]

3 comentários em “Atlas Lírico da América Hispânica – Diálogo entre Demetrios Galvão & Floriano Martins”

  1. Querido Floriano, muchas gracias por este gentil envío, por demás interesante! Mis mejores deseos para el éxito de las sucesivas entregas. Le estás haciendo un más que meritorio servicio a la difusión de las letras de nuestra América en lengua española. El mayor reconocimiento para ti!
    Un gran abrazo desde Buenos Aires,

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  2. Há anos sigo o trabalho sistemático de Floriano Martins por uma cartografia literária hispano – americana que tem de deixar de ser invisível. Só assim pude me apaixonar por muitos e muitas poetas, divulgar seus nomes e suas obras, apreender um pouco mais de suas realidades: por meio da literatura e desse cavocar incansável do Floriano. Admiro muito sua trajetória. E é sensivelmente alvissareira ter uma Acrobata unida a esse projeto . Parabéns!!!

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