por Aristides Oliveira
Conversei com Clefra Guedelho sobre seu livro de crônicas que está saindo pela Editora Cancioneiro. Circundando os processos de escrita da autora, nosso papo aborda elementos que abrem o apetite para conhecer seu universo criativo e a paixão pela literatura.
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O que levou você a projetar um livro de crônicas? Quais influências/heranças literárias atravessam sua inspiração?
A escrita de crônicas surgiu para mim concomitante à criação do blog Pensamentos escritos, como um processo de livre experimentação e descobertas no campo da linguagem. Em meu primeiro exercício de escrita não acadêmica, encontrei na construção de textos literários breves a possibilidade de narrar sobre o cotidiano considerando minhas vivências, fossem elas relacionadas ao momento presente ou a memórias de tempos mais recuados.
O livro Enquanto estou aqui… é a materialização desse processo, onde reúno as crônicas publicadas no blog junto a outros textos inéditos. Como leitora de crônicas, transito pelos textos realistas e críticos de Ruy Castro e pelos textos poéticos e afetivos de Fabrício Carpinejar.
Também me abasteço dos textos meditativos de Clarice Lispector e descanso com tranquilidade no bom humor de Martha Medeiros. Enfim, de maneira eclética, encontro na crônica – este itinerário utilizado por estes e tantos outros aclamados escritores – o caminho possível para o meu enveredar experimental pela literatura.
Em meus textos também faço citações de obras lidas durante o período da escrita, como forma de intercalar o lido com o vivido e o imaginado, ampliando o leque de possibilidades criativas. Algumas obras citadas são: Travessuras da menina má (de Mario Vargas Llosa), Cem anos de solidão (de Gabriel Garcia Márquez), Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres e Perto do coração selvagem (ambos de Clarice Lispector), dentre outros.
No contexto em que a escrita acadêmica é vista como “legitimada”, “séria”, como definir a importância do gesto poético/ensaístico enquanto produção de pensamento no mundo contemporâneo?
A escrita acadêmica comprometida com parâmetros científicos é, na contemporaneidade, a narrativa analítica da realidade por excelência. Enquanto objeto de estudo, a realidade sempre foi objeto de decifração e codificação em linguagem. A realidade na qual se vive é um fenômeno inesgotável de estudo e representação, ainda mais se pensada do ponto de vista subjetivo que a academia, no geral, não costuma preconizar.
É, pois, a literatura o campo de experimentação que permite as mais variadas formas de apropriação do real. A ficção – em nossos contextos de exacerbação da violência, desigualdade, corrupção e autoritarismo – nos permite recriar a realidade, seja para expandir suas formas de representação, seja para construir novas possibilidades.
Em minha trajetória como Assistente Social, a linguagem escrita é instrumento de trabalho de uso cotidiano no planejamento e na perícia social.
No campo acadêmico, a escrita de minha dissertação de mestrado é resultante de problematizações realizados no contexto profissional junto ao universo das políticas públicas. O encontro com a escrita literária é uma experiência nova em minha vida; ainda incipiente, mas, prenhe de possibilidades reflexivas e discursivas.
Certamente, minha escrita literária traz marcas da minha escrita acadêmica e profissional – no sentido político e questionador da realidade –, mas me permite ir além, abordando questões mais subjetivas relacionadas às minhas crenças, meus laços afetivos com pessoas, coisas e lugares; tudo o que o pensamento é capaz de projetar a nível de sentimentos e experiência através da linguagem.
A partir da escrita compartilhada no livro, como você relaciona sua experiência de vida (realidade) e a produção da memória na literatura (ficção)?
Através da literatura é possível viajar, pelo viés imaginativo, por contextos, cenários e histórias que ultrapassam o real, oportunizando experiências para além das condições materiais da existência. O meu debruçar sobre a prática da leitura me despertou, em dado momento, o desejo de ir além, de desenvolver meu potencial criativo, transformando pensamentos em escrituras.
As minhas crônicas, mais do que uma narrativa de fatos do cotidiano, são o resultado de um processo íntimo vivido enquanto escape da realidade objetiva, sem refutá-la, obviamente, mas imergindo em seus interstícios por intermédio de minha capacidade reflexiva e emocional.
Em meio ao cotidiano doméstico, situado pelo contexto pandêmico (o qual me impôs o distanciamento social e o home office), minhas possibilidades de experiência eram limitadas, restritivas e repetitivas (por vezes desgastantes e carentes de imprevistos que quebrassem a monotonia da rotina).
Foi, portanto, como estratégia de fuga, para não sucumbir a essa realidade sedentária que me permiti um processo, uma travessia pela escrita literária. Os temas de minha inspiração circundam minhas vivências presentes e passadas e tocam de maneira particular questões como o casamento, o trabalho doméstico, a memória afetiva, a saúde mental, a literatura e o amor. O resultado do processo criativo é que “enquanto estou aqui” (para retomar mais uma vez o título do livro), construo novas possibilidades, situadas no tempo e por um determinado lugar de enunciação.
Tantos mortos. Um governo sem precedentes. Como se concentrar no universo ficcional quando o Brasil perde a possibilidade de metáfora e torna-se a realidade a todo vapor?
É verdadeiramente doloroso perceber os impactos epidemiológicos, demográficos, sociais, econômicos e políticos na atual conjuntura do nosso país. Nada mais sofrido que o luto, a fome e o desemprego potencializados por circunstâncias sanitárias e essa negligência governamental sui generis.
Todo esse contexto é pesado demais para digerir; vira um bolo no estômago, difícil de absorver. É um manancial de tristeza e desesperança, passível de ser suportado somente se vivenciarmos um individualismo cruel ou encontrarmos vias de escape e de ruptura. Entre o adoecimento mental e a total indiferença, a sensatez está no resistir, segurando-se àquilo que nos conecta à realidade possível.
A literatura – assim como outras formas artísticas – é como uma âncora, um hábito terapêutico que nos permite algum bem-estar. Ao meu ver, a ficção é tanto importante para o leitor quanto para o escritor, no sentido de subsidiar as condições subjetivas necessárias para o enfrentamento do caos e do sofrimento disseminados no atual contexto de vida societária. Na tragédia da vida real também podemos encontrar elementos para a manifestação artística que imite, retrate ou ressignifique a realidade. O contexto em que vivemos, me incentiva ainda mais a ler e escrever literatura como uma linha de fuga, na acepção proposta pelo filósofo Gilles Deleuze, ou seja, não como acovardamento diante dos desafios socialmente postos, mas como necessidade de vazar o sistema e escrever uma realidade alternativa.
Qual sua análise em torno do protagonismo feminino na literatura atualmente? Que avanços você destaca e o que ainda precisamos amadurecer nesta questão?
A participação da mulher na literatura é uma conquista gradativa que ainda precisa avançar. Virgínia Woolf, em seu ensaio de 1929, afirmava que, para escrever literatura, seria necessário à mulher a segurança econômica de ter “um teto todo seu”, uma propriedade e renda para sua subsistência.
Essa conquista é, pois, fruto das lutas feministas pelo sufrágio universal, por direitos trabalhistas e pela paridade de gênero no acesso e permanência à escolarização. Até pouco tempo atrás, as possibilidades de atuação das mulheres estavam limitadas à vida doméstica, ao casamento e à educação dos filhos.
Segundo Simone de Beauvoir, tais possibilidades só seriam expandidas para além do espaço doméstico se as mulheres tivessem acesso ao trabalho e à vida pública como os homens. Embora a situação das mulheres tenha melhorado consideravelmente nesse aspecto, as desigualdades de gênero ainda permanecem.
As mulheres trabalhadoras acumulam papéis e tarefas (conciliando o trabalho do âmbito doméstico com atividades laborais fora de casa) que as impedem de ter “um tempo todo seu” – parafraseando o título do livro de Virgínia Woolf – que possa ser revertido em ócio criativo e catalisado para investimento em produção intelectual e artística. Certamente, eu não teria me dedicado às crônicas sem dispor de um contexto favorável de estabilidade financeira e disponibilidade de tempo para o encontro com a escrita. Por isso, admiro e cito em minhas crônicas autoras como a própria Virgínia Woolf, Clarice Lispector e Adélia Prado, que revolucionaram a literatura, transformando-a em um ofício, mais do que em uma válvula de escape.
Fazer um livro não é fácil, escrever é um ofício dos mais nobres. Que desafios e processos criativos foram vividos para chegar ao resultado final do seu trabalho?
Eu jamais havia sonhado ser escritora e confesso que ainda não me considero como tal. A escrita para mim sempre cumpriu função acadêmica e profissional, como me referi anteriormente sobre minha trajetória. O livro Enquanto estou aqui… é um experimento, uma primeira aproximação com o universo literário no âmbito da escrita de crônicas, um gênero que me deu conforto e confiança para escrever.
A partir desta experiência surgiu o desejo de continuar tracejando esse caminho de descobertas, apesar de saber das minhas limitações no processo de elaboração da linguagem escrita. Como eu disse em uma de minhas crônicas, escrever tem sido um aprendizado, “um processo lento e doloroso como o encaliçar dos dedos pelas cordas do violão”, que tem me motivado pelo simples desejo de “sair da linha com o som da melodia”. Os desafios que encontro nesse processo ainda não me permitem escrever um romance de ficção que me surgiu como inspiração, mas não tenho pressa. Como bem lembrou o escritor Itamar Vieira Junior – autor do romance Torto Arado, em entrevista para o programa Roda Viva da TV Cultura –, ter paciência para rascunhar e lapidar o texto antes de apresentá-lo à comunidade de leitores é uma das virtudes mais importantes para todo aquele que deseja ser escritor.
Excelente! Serviu para aumentar a vontade de ter o livro em mãos para saborear a escrita e folhear cada página. A leitura e o folhear se complementam.
Parabéns!
Parabéns pela entrevista se tivesse mais conteúdo sobre o livro eu continuaria lendo com certeza. Ansiosa para receber essa obra e ler com toda a atenção que merece…só lendo a entrevista já me senti bem, com a mente leve e com aquela vontade de ler tudo em um dia só👏👏👏👏
Maravilhoso!!! Empoderando a linguagem poética e literária, mostrando o quanto podemos aprender com esse construção riquíssimo, subjetivo e cheio de afetos. Revela a possibilidade de encontrar prazeres em meio à desolação em que vivemos…espero em breve ler não apenas esse mas, várias obras inspiradoras!!