“EU SOU MULHER PARAIBANA SAPATÃO”: O NORDESTE FUTURISTA DE LUANA FLORES

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por Monyse Damasceno

Sabe aqueles encontros maravilhosos que só poderiam acontecer graças aos algoritmos do YouTube?, pois o meu com o nordeste futurista de Luana Flores aconteceu dessa forma. Cheguei ao videoclipe de “Guerreira de Lança” como quem caia de paraquedas e de imediato a música me chamou a atenção: a mensagem, a estética do videoclipe, além desse resgate forte da cultura regional e do empoderamento feminino que Luana propõe.

Em dois pulos já havia vasculhado seu canal no Youtube, ouvido alguns sons e fui vaguear pelo seu blog pessoal no Instagram. Realmente me interessei por aquela que se apresenta como beatmaker, DJ, percussionista, cantora e compositora e, sobretudo, uma mulher LGBTQIA+. Sentir o peso da complexidade de uma mulher nordestina atuando tão bravamente no cenário artístico e musical me deu uma alegria que só quem se vê representada sabe explicar. Parece que a arte de Luana conversou comigo.

Como pesquisadora da música rap, encontrar Luana, da Paraíba, fazendo o rap conversar com o coco, a percussão e a música eletrônica me surpreendeu demais. Por isso conversamos sobre ser mulher no meio da produção musical, a relação do seu trabalho com o audiovisual e ela me contou um pouco de suas percepções sobre fazer música no Brasil sendo mulher, nordestina e lésbica. Aconselho a leitura a seguir e, mais ainda, uma visita ao trabalho de Luana Flores.

Aproveito para informar que durante o período em que conversávamos para esta entrevista mais um trabalho foi lançado. Em parceria com FurmigaDub, o single “Mulher bicho solto” chegou às plataformas digitais em 14 de maio, falando sobre gênero e território, evocando a Paraíba e mulheres que fizeram história no Estado. Dê o play!

Mulher nordestina e lésbica fazendo música na Paraíba. Como isso começou e qual tem sido sua percepção desse processo?

A minha trajetória na música já possui um tempinho. Comecei em 2007, sendo baterista de uma das primeiras bandas só de mulheres da Paraíba, chamada Banda Bárbara. Na época tínhamos aqui no estado uma cena muito forte do hardcore, era a ascensão do rock, e naquele momento tínhamos Pitty como referência de mulher fazendo rock… Com essa banda fiquei de 2007 a 2011 e vejo como foi uma trajetória longa de experimentação.

O que é interessante é que naquela época não se falava de feminismo e a gente era uma banda feminina pautando assuntos feministas sem se dar conta. Eu percebia, por exemplo, que naquele momento era muito difícil tocar sendo uma banda de mulheres; foi aí que comecei a organizar, junto de uma amiga, o festival “Mafalda sin falda”, que possuía o conceito de ser um festival de bandas femininas, por fim foram três edições: as duas primeiras regionais e a outra foi nacional, veio banda até do RS. Criamos um espaço para poder tocar, e aí já dava para perceber esse recorte; fora que a banda era toda LGBTQIA+. Com o passar do tempo fui me desdobrando com outras linguagens, sempre pautando essa questão do empoderamento feminino.

Logo em 2012, na faculdade, fui dirigente da batucada feminista da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), do movimento estudantil da época. Em 2016, a partir da época da ocupação do Ministério da Cultura, aqui na Paraíba também rolou uma mobilização das mulheres em prol da luta. E depois da desocupação nós percebemos a importância de nos organizarmos, enquanto mulheres percussionistas ou mulheres que tivessem esse interesse em se envolver com a cultura popular, principalmente, do nosso estado.

Nessa época criamos o “Coco das Manas”, um encontro de mulheres que se tornou uma coletiva de mulheres que se utilizavam do Coco de Roda como uma ferramenta social para o empoderamento feminino. O grupo atuou por dois anos e foi aí que começou o meu caminho dentro da cultura popular e com o eletrônico, pois até então eu era uma mulher DJ.

Estou fazendo essa contextualização, porque ela faz parte do meu processo que envolve ser mulher nordestina e lésbica que produz música. Hoje posso dizer que sou beatmaker, produtora musical e compositora. Esse processo de composição foi incentivado grandemente durante o período que estive com o Coco das Manas. A percepção de tudo isso que já aconteceu e de como vejo as coisas hoje, é que cada vez mais estamos (mulheres!) reivindicando mais espaços para poder falar, mostrar nosso trabalho, ainda é muito complicado, existe uma grande invisibilização do nosso trabalho, mas acho que também é sobre representatividade, ocupar esses espaços faz com que outras mulheres vejam esses lugares como possível.

Fotos de Kio Lima

Qual a proporção do impacto das redes sociais, como o YouTube e Instagram, para a realização e divulgação do seu trabalho, ainda mais nesse cenário de pandemia?

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O cenário de pandemia fez com que ficássemos ainda mais conectados; o que tenho feito é usar as redes sociais a meu favor. Sempre fui muito desligada desse universo, e tem sido um aprendizado saber usar as ferramentas disponíveis a favor do meu trabalho. Inclusive, entendo esse espaço como um espaço potente de divulgação do que produzo e também do meu discurso imagético, da representatividade.

Por isso estou, cada vez mais, buscando aprender formas de investir nessas redes de uma maneira que traga essa visibilidade não só ao meu trabalho, mas também para questões que me envolvem e envolvem o meu território e as minhas lutas. Recentemente recebi o prêmio de Novo Talento 2020 da SIM São Paulo, a maior convenção de música da América Latina, e para mim essa conquista configura um marco temporal em minha carreira.

A regionalidade, o nordeste protagonista, o encontro do rap com o repente, da música eletrônica com o coco e a percussão. Como é o seu processo de criação? Você considera que há um quê de rap, cultura hip hop, na sua música, para além do fato de você ser beatmaker?

Comecei a me aproximar mais do universo do Hip hop em 2019, estava vindo de uma experiência muito envolvida pelo coco, forró e algumas tradições orais daqui da Paraíba, mas nunca tinha associado esse meu trabalho ao Hip hop. Talvez ele tenha se apresentado para mim antes, mas, a lembrança que tenho que esse contato aconteceu nitidamente em 2019, quando fiz a residência artística na Red Bull, um evento que, ao longo de um mês, na cidade de São Paulo, uniu rappers, repentistas, beatmakers e etc para dialogar sobre o tema “Qual é o futuro do rap?”. Fui convidada enquanto beatmaker para compor esse time só com nordestinas, e a ideia era trazer essa discussão sobre a fusão da música que a gente faz aqui com o que está sendo ouvido como Hip hop. Foi muito massa, porque me aproximei desse universo e fui afetadíssima por essa musicalidade e por essa forma de compor, cantar.

Era todo o dia ouvindo o povo fazendo rap, rimando, fazendo freestyle e consegui trazer essa linguagem para o trabalho que já estava se desenvolvendo por aqui; combinou também com o fato de potencializar a minha disposição de colocar as minhas composições para jogo, porque isso envolve o processo de autoestima da mulher, de sempre existir uma questão social em que os caras sempre foram mais incentivados e suas produções sempre foram as tidas como “mais massa”. Dentro dessa residência me senti inspirada em compor, e foi aí que compus “Guerreira de Lança”, meu primeiro single a ser lançado. Foi feito durante a residência, e, até ali, eu nunca tinha feito um rap.

A própria Jéssica Caitano, que é uma rapper repentista incrível, foi quem me mostrou o caminho das pedras, deu ideias, a tenho como referência muito próxima desse processo, e acho que o rap está totalmente conectado com o repente. O Hip hop é a gente poder falar, usar a rima, a métrica como forma de expressão sobre nossa realidade, vivências, e acho que peguei muito dessa experiência e quero trazê-la de forma diferente, porque também é isso: sou eu fazendo o meu rap, sabe? O meu rap não necessariamente é igual ao rap de Jéssica Caitano, ao rap de São Paulo, o rap ele tomou uma proporção muito grande e há uma grande pluralidade. Enquanto beatmaker, posso experimentar, beber um pouco dessa fonte, dessas sonoridades do Hip hop do boombap, e trazer para essa experiência sonora que eu proponho no meu território da Paraíba.

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Observo nas suas canções uma lírica feminina que evoca esse Nordeste também feminino e feminista, e sobretudo místico. Como você tem enxergado as manas no espaço da produção musical?

Busco sempre trazer essa atmosfera que a gente acaba chamando de feminina e todo esse universo matriarcal. Acredito que não tem como não beber dessa fonte, principalmente quando se é criada por mulheres, quando se tem referências como mestras, que aqui na Paraíba isso é muito forte, mulheres no comando, tomando as rédeas, é muito forte essa presença e não tem como não ser afetada por isso.

No caso da produção musical, vejo que estamos conseguindo se alinhar para mudar um pouco dessa realidade que é tão protagonizada por homens… que ainda é na verdade. Mas, por exemplo, quando comecei a produzir música, não tive referências mulheres, inclusive, achava um universo muito distante da minha realidade, justamente por não ver mulheres ocupando este espaço também, quando você não tem referência é muito difícil começar, ser você a pioneira do rolê, eu digo pioneira assim, na minha cidade, onde comecei a ocupar esse espaço e a perceber essa lacuna. E ainda mais que os caras sempre foram muito broders, parceiros, e assim eles acabam fazendo tudo entre eles, e para conquistar este espaço foi um pouco complicado.

Mas vejo que o fato de estar produzindo música aqui na minha cidade faz com que outras mulheres olhem e vejam isso como um universo possível. Acredito muito nessa pauta da representatividade e vejo que, em um contexto social aqui de João Pessoa (mas no início eu também tive dificuldade de conhecer outras mulheres produtoras a nível de brasil, sabe?), com a pandemia muita mulher que tinha vontade de aprender se jogou dentro desse universo.

E mesmo a produção sendo uma atividade muito elitista, vejo que tem muitas mulheres chegando junto, apesar dessa maioria ser do eixo sul-sudeste, percebo isso pelos prêmios que rolam e são sempre as mesmas mulheres brancas sudestinas que estão concorrendo.  Cadê as mulheres do centro-oeste, cadê a pluralidade? Cadê as mulheres indígenas, lésbicas, negras? Cadê essa diversidade? Precisamos nos fortalecer para alcançar e quebrar esses nichos, pessoalmente, quero ver a pluralidade de mulheres produzindo música.

Você faz música que resgata muito da tradição e da cultura nordestina, o coco, as rezas, os batuques africanos e indígenas. Como mulher artista, quais são seus objetivos e desejos com o fazer música?

Tem uma palavra que poderíamos trocar, não é que eu resgatei essas tradições, elas não precisam de mim para que sejam vistas e para que existam, acho que o que faço é somar em  um movimento que é momento de retomada. Estamos nos dando conta de tudo o que nos foi tirado, apagado, de toda a nossa história que nos foi contada de uma maneira deturpada e, a partir disso, a gente começa a sentir esse movimento energético, que faz com que olhemos para o que é nosso, a nossa cultura, nosso corpo, nossa terra, essa conexão que não sabemos de onde vem, mas sentimos.

Eu sendo um corpo-memória, um corpo-território que está passando por esse tempo também, vejo essas tradições como algo que me pertence, no sentido de que faz parte da minha história. Conversando com mainha descobri que meu avô rezava, vivia com meu avô e não sabia disso, muitas tradições e histórias não foram contadas e passadas adiante porque nos fizeram acreditar que elas não tinham valor.

Por isso acho que não estou resgatando, e sim retomando tudo isso. Eu busco estar nesse movimento e trazer para a minha experiência sonora, tudo aquilo que me atravessa. Faço música querendo que mexa o corpo, mas querendo que também mexa os afetos, é uma forma de recontar nossa história de outras formas e eu me sinto muito conectada com o que faço.

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Você lançou há não muito tempo o videoclipe de “Canto de Proteção”. Como se dá a relação do seu projeto musical com a produção audiovisual?

Antes de mais nada, eu amo trampar com audiovisual, transformar música em imagem é incrível, assim como criar um som para a imagem, curto muito editar, pesquisar, captar. Além de tudo, o meu trabalho é muito estético, né? O Nordeste Futurista além de ter uma identidade e uma estética sonora, também possui uma identidade visual, um conteúdo imagético. E sinto que cada vez mais estou amadurecendo as ideias com relação a essa estética.

Se observar, já lancei três videoclipes, o primeiro foi “Guerreira de Lança”, que já é diferente da proposta de “Reza” e de “Canto de Proteção”. Sempre que vou lançar uma música penso em lançá-la acompanhada do videoclipe, inclusive, em maio vou ter outro lançamento que é “Mulher Bicho Solto”, uma música que foi finalista do Festival de Música da Paraíba, e que com certeza irá ganhar um conteúdo audiovisual.

Nesse processo visual percebi que alguns profissionais e artistas atuam com você. São todos paraibanos? Como se dá esse fluxo de vários saberes/artes atuando juntos?

Além de pensar nessa estética da subjetividade de manifestações do meu território, gosto muito de enaltecer o meu lugar, que é o que tenho, onde está minha ancestralidade. Território é uma das temáticas mais fortes que trabalho. Estou sempre falando que sou da Paraíba. Tenho essa conexão muito forte e busco evidenciar isso nas minhas produções audiovisuais. Todas foram gravadas aqui na Paraíba, mais precisamente no interior, sou de João Pessoa, mas ainda não gravei nada por lá; nesse próximo trabalho irei trazer algo mais do urbano, do centro histórico de João Pessoa, quem sabe.

Sobre a equipe, nem todo mundo é da Paraíba, mas todos moram aqui. Cinema é bombação na Paraíba, mas nesta área do videoclipe ainda sinto falta de mais profissionais atuando, artistas que transformem a música em imagem, esse contato está se expandindo agora. Quem dirigiu os últimos videoclipes foi Ana Moraes e quem fez o trabalho de direção de arte foi Ludmila da Mata, que é também minha companheira. É uma equipe reduzida por questão de orçamento, tem quem some na produção, coreografia, figurino… a gente faz na raça, pede força pra quem puder somar e vamos.

Percebo que estou em um momento de compreender as linguagens artísticas que ando usando e que, automaticamente, andam se expandindo. Estou bebendo muito das artes cênicas, pensando no meu corpo como um corpo cênico, experimentando na dança, incorporando música com outras linguagens.

A verdade é que quero expandir, experimentar, quero sim dançar, atuar, editar vídeo, gravar, roteirizar, sabe? Ir para além da música e experimentar essas outras linguagens que atuam de maneira concomitante e que fazem parte desse eu, Luana Flores, desse trabalho que venho desenvolvendo, a proposta é se multiplicar cada vez mais.

Tem-se muito discutido o apagamento cultural que há sob os artistas e as produções/culturais nordestinas, principalmente no sudeste do país. Você acredita que isso ainda existe, qual seu pensamento sobre? Existe uma forma de enfrentar e virar esse jogo?

Por muito tempo a gente passa por esse apagamento cultural, mas recentemente existe um movimento de olhar do Sudeste para a cultura daqui, no entanto ainda é um movimento muito romantizado e cercado por estereótipos.

Ainda existe muita prepotência de algumas regiões e estados de baixo em pensar que graças a eles estamos conseguindo construir alguma coisa, acho que é difícil para eles pensar a nossa região como autônoma e plural, reconhecer que cada estado tem suas características… Ainda falta um pouco de tirar essa unidade que eles colocam no Brasil.

Mas, de qualquer forma, sinto que o Nordeste está em alta, e mesmo que exista esse esteriótipo, vejo nisso uma oportunidade de mostrar a diversidade que há aqui, não necessariamente nos pautando pela produção tradicional, mas mostrar que aqui está sendo produzida muita coisa foda também, com propostas incríveis, um momento de autonomia muito grande e estou muito feliz em fazer parte disso.

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