A arte das palavras que se expandem nos espaços do Instagram – entrevista com Daniel Minchoni

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O poeta Daniel Minchoni é entrevistado pelo artista e pesquisador Juli Manzi, com apresentação de Danislau Tb, vocalista da banda Porcas Borboletas

Essa entrevista não é um papo entre velhos amigos. Na verdade, é um papo entre futuros amigos. Foi por meio dessa entrevista que Juli Manzi e Daniel Minchoni se conheceram. Hoje, um só fala sobre o outro com entusiasmo. Por isso esse papo é tão bom. É a ata lavrada de uma amizade que vai nascendo. E o que é melhor: em torno de um papo-cabeça.

Poderia dizer também: em torno da filosofia. Todos conhecemos a etimologia da palavra: “amigo do saber”. É legal, mas edificante demais, não acham? Prefiro subverter o sentido, mediante o empenamento da preposição: “amigo no saber”. Alguma coisa que indique essa sabedoria que se cultiva em ambiente de amizade; ou da amizade que se cultiva em ambiente de sabedoria. Pois é isso o que essa entrevista revela – dois lordes trocando tecnologias por meio das quais se torne possível, enfim, experimentar o máximo alcance poético da linguagem.

O Daniel Minchoni é um cara que vem, há décadas, com todo o seu poder de lorde maloqueiro, esculpindo o corpo da palavra. É exatamente por isso que é poeta: não perdeu a capacidade de perceber o aspecto material do signo, aquilo que só os sentidos captam. O que pinta, verdadeiro desbunde significante, dá-se ao olhar, ao ouvido, ao tato, ao olfato, quiçá ao paladar. É uma poesia escandalosa, no melhor sentido da palavra (que, aliás, praticamente só tem sentido bom). É escandalosa porque é física. E porque é incontinente, expansiva, metalinguística.

Uma poesia assim, sem cabimento, mais dia, menos dia, ia aparecer nos caminhos do Juli Manzi. Não há radar mais poderoso. É essa relação erótica que Manzi estabelece com a vida, aliás, que lhe garante a grandeza dos encontros que experimenta. Pesquisador de mão cheia, por uma questão de método sabe ser, conforme a necessidade, Apolo e Dionísio (Apolo na sala de aula, Dionísio nos palcos da vida; mas sobretudo o contrário, pelo que me consta). Tem uma sobriedade delirante na postura do Manzi, é difícil explicar, mas a ideia parece que fica melhor arrumada quando submetida aos seus cuidados.

De uma maneira ou de outra, o radar funcionou. A poesia, que pode tanto, acabou juntando um filho do Rio Grande do Sul (Manzi) a um filho do Rio Grande do Norte (Minchoni). Lavraram ata do encontro e tudo. Está aí, logo abaixo.

JM Como surgiu seu interesse por poesia concreta e visual?

DM Comecei poesia no rio grande do norte, de onde veio o interesse da poesia ligada à performance e de alguma forma às artes visuais em geral. como estudei comunicação, sempre me interessei por experimentos diversos de linguagem e também por comunicação visual. Naturalmente nesse período chegaram os primeiros livros  e poemas do Décio, mas mais naturalmente ainda me chegaram as experiências do poema processo, que tem importantes representantes do RN e também da arte postal. Isso era por volta de 1999/2000 e comecei a experimentar diversas coisas nesse sentido, muito inspirado em sonetos visuais que tive meu primeiro contato em natal. Esse flerte com a forma e com a fórmula, muito me provocou. Como trabalho com repetição pela ideia de refrão e muito pela experiência dos cantores de samba de rodas, chulas e repentistas que muito me influenciaram também na composição de minha persona poética e também no cancioneiro popular, daí pra ser chamado de concretista foi um pulo. Muito embora o movimento não tenha mais afiliações e esteja oficialmente finalizado por seus representantes sempre houve essa tentativa de enquadramento, embora me encaixe mais em proposta e resolução visual aos experimentais, visuais e processo.

JM E sua produção de poemas digitais, como começou?

DM Depois que conheci o CEP 20000 através de um cd e me interessei muito pela proposta de poesia e performance, já que eu fazia poema falado participando ativamente da cena de natal, que tem muita força nessa expressão. Nesse período me incomodava ser associado de alguma forma aos concretos. Pra fugir de um imã desse tamanho abandonei qualquer traço que pudesse ser associado aos concretos em meu trabalho. E segui pesquisando amplamente performance poética, que é o meu lugar mais forte ainda hoje. com a aproximação e frequência na casa das rosas fiz alguns cursos de poesia experimental e expandida e retomei o laço. Ano passado, trancado na pandemia, participei do curso de poesia expandida como orientador e por estar em pandemia consegui acompanhar o módulo de poesia visual e poesia objeto com o Anderson Gomes e voltei a fazer experimentos gráficos pra internet.

Como performer eu entendi que o melhor jeito de performar em tempos virtuais era com o corpo do computador, que é nesses tempos o meu corpo mais presente. Passei a refletir que o jeito de ter presença virtual seria usar as ferramentas do celular que estavam a minha mão e retomei os experimentos, mas não pensando como um poeta visual apenas, mas como um performer em estado digital, que não se interessa apenas pelo registro da performance mas que tenta experienciar a mídia da forma mais potente e intuitiva que consiga.

JM O Instagram tem se mostrado um espaço bem fértil para a publicação de poesia digital, concreta e visual. Como você vê isso?

DM Mais uma vez, naturalmente sou associado aos concretos, mas tanto a origem quanto as bases de minha pesquisa diferem muito. Me interessa bastante conceitos estudados e aprofundados por eles e sim, me são grandes referências, mas me considero mais um poeta transmeios ou intermeios jogando com as mídias com a maior amplitude que possam me dar do que um poeta visual, concreto ou algo assim. Costumo falar muito em persona poética que é um modus operandi do poeta, um jeito de ver e de enfrentar o mundo e de alguma forma me considero mais um poeta 720⁰, tentando experimentar diversas possibilidades de poesia e especialmente de invenção, do que um poeta engessado num jeito ou meio. E nesse sentido, as mídias em geral me interessam ser ocupadas como meio de fazer da poesia o esporte nacional, ou a paixão nacional, botar o bloco na rua e fazer os poemas chegarem nas pessoas e não ficarem isolados ou trancafiados nos livros, além de aproximar a poesia da minha vida e das pessoas que convivem comigo.

Dessa forma eu vejo as ferramentas que permitem ampliações de repertório, interação e conexão com os sentidos poéticos. Me interessa a possibilidade que se abre.

JM Isso pode aumentar o público em torno desse tipo de poesia e aproximar mais pessoas da forte tradição de poesia experimental no Brasil?

DM A gente convive com alguma frequência no brasil com uma vasta gama de repertório de poesia, desde a popular nas feiras e afins, com os experimentos de vanguarda, passando pelo cancioneiro e tantas outras possibilidades. E esse espaço ocupado nas redes é mais um de desendeusamento ou popularização da poesia. Trazer cada vez mais pra rua. Como disse, nesse período, a rua é essa imensa avenida de dados. E utilizar disso pode gerar grandes resultados. Me interessa fazer a poesia chegar nas pessoas e nesse espaço inclusive experimentar poememes. Com a mensagem mais objetiva, criar interações mais rápidas pode fazer com que um poema fure o medo que se tem da poesia como algo enigmático, a ser compreendido. Quando menos a pessoa espera ela já percebeu que a poesia pode ser parte de sua vida e que é algo muito potente, como o prazer pelo conhecimento, o amor à invenção e à criação de linguagem. Nesse lugar, mora toda a potência, a da comunicação e criação de comunidade. Mas também cabe observar o prazer e o desafio que sinto em tentar inventar propósitos de linguagem e interações dentro do cyberespaço, praticando terrorismo poético e outros métodos de hackeamento.

JM Como seus seguidores recebem os poemas que você posta?

DM A recepção da poesia no ambiente virtual pode ser medida pelas interações, comentários, arquivamentos e curtidas. Mas esse não é meu método de mensurar. Costumo avaliar os poemas pelas conexões reais que ele cria, mais do que pelos simples comentários e curtidas, as parcerias reais que se formam a partir deles. Costumo ver esse espaço como um disparador pra trocas e pra comunicação e partindo disso, tento construir relações, partindo do que se cria na rede. Então estou na rede mais pra uma pescaria mesmo.

como diz um poema de Natália Barros que gosto muito:

escrever é uma pescaria
se voltar com peixe
escrever é isso
se voltar sem peixe
escrever é isso.

pra mim, na rede, importa mais o movimento que os peixes ou a fome que eles matariam.

JM Ainda sobre esse tipo de produção, cite alguns perfis brasileiros de sua preferência no Instagram.

DM @theonlyericson @oultimoericson @saheagram @arriscados @gastaodebreix @diacovcarla @arthur.moura.campos @pretomath3us @evelinesin @anaalyartista @_alokadoprint @ricardoaleixoakavulgo @pauloaquarone @nevesmarta @lucenaluisfelipe @maoleonard @rafabaldam @dan.scan  @metaesquina @atomoevazio @anapersona @poetamenos @bobbybaq @a_valias @deciopignatari @poesiajungle @joselinogrunewald @arnaldo_antunes @renatonegraopalavraimagem

A lista é infinita, muita coisa me interessa

JM Durante a ditadura militar no Brasil, a poesia visual foi um veículo de combate ao totalitarismo. Hoje, não são poucos os perfis do Instagram que postam poemas visuais para criticar o governo atual. De que modo é possível relacionar o papel político da poesia nessas duas situações?

DM Essa pergunta é bastante interessante e guarda alguns mistérios. Imagino que a arte combativa tenha maior engajamento. Em redes essa palavra tem outro sentido, mas ironicamente convencionou chamar esse tipo de poesia  de engajada, por motivos de engajamento na luta e política. Receio que muito dessa poesia engajada que temos hoje esteja mais interessada no engajamento dos likes do que na inquietude do questionamento político. Quando se trata de temas do momento a chance de ter mais repercussão num poema ou post gera esse tipo de situação. Também não podemos esquecer de dizer que esse é um dos governos mais horríveis que já tivemos, tanto em matéria de administração, como de corrupção, como gestão da vida e de questões políticas nacionais e internacionais. É lamentável, então é natural até que as pessoas se manifestem contra ele o tempo todo, até porque a gestão do governo se dá mais na rede do que na realidade. Então penso que com mais gente com acesso e com piores condições, maior o fluxo de contestações.

Como poeta, não quero me afastar totalmente da realidade, até porque já disse que me interessa mais que tudo experienciar com a vida das pessoas reais e não com um leitor imaginado. No entanto, não quero estar sempre pautado pela realidade pois é função do poeta semear sonhos e inventar novos campos simbólicos, inclusive de luta. Logo, tenho sempre a preocupação de não cair num poema jornalístico, que responda a todo momento às pautas do dia e da hora, produzindo em larga escala, quase sem qualidade poética e inventiva, mas também não quero me encastelar numa torre de marfim que isso já deu o que tinha que dar. Então o desafio é ser meio palhaço e meio dono de circo, inventar campos e possibilidades que dialoguem com o que está posto. Sem perder o pé no chão, mas com a cabeça em órbita. Nem muito, nem tampouco. E como diria leminski, criando um misto entre óbvio e nunca visto.

Minchoni Quarentena / 2020

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