.Entrevista com Daniel Munduruku

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A descolonização do pensamento

Entrevista por Demetrios Galvão e Dante Galvão / ilustrações de Mika

ilustrações de Mika


Daniel Munduruku nasceu em Belém (PA) e pertence à etnia indígena Munduruku. Hoje, mora no interior do estado de São Paulo e é uma das principais vozes indígenas da atualidade. Daniel é um autor que transita entre a floresta e a cidade, tem sua visão de mundo formada pelo pensamento circular, mas dialoga bem com a tradição do pensamento ocidental. Tem formação em filosofia, história e psicologia, mestrado em antropologia e doutorado em educação, ambos pela USP. Além disso, é Diretor-Presidente do Instituto Uk’a – Casa dos Saberes Ancestrais.

Autor de mais de 30 livros, em sua maioria infantis, Daniel já ganhou diversos prêmios literários, dentre eles o prêmio Jabuti, o prêmio da Academia Brasileira de Letras, o prêmio Érico Vanucci Mendes (CNPq) e o prêmio Tolerância (UNESCO). Tem livros publicados fora do país e participa de feiras e salões de livro por todo o Brasil. A sua produção é marcada pelas experiências com a cultura indígena, seus mitos e ensinamentos éticos – um diálogo com os saberes ancestrais. Segundo ele, esse é o papel político de sua escrita, sua contribuição para o debate que busca dar visibilidade para as questões indígenas.

No mês de abril desse ano, Daniel esteve em Teresina participando de algumas atividades relacionadas à semana dos povos indígenas. Aproveitamos a oportunidade para entrevistá-lo e conversar sobre cultura indígena, literatura, educação e política. O resultado é uma aula sobre como descolonizar o pensamento e reinventar as formas de ver o mundo. Neste momento crítico por qual passamos, é hora de nos solidarizarmos com os povos indígenas e compreendermos a sua importância para do Brasil.

 A construção da história do Brasil distanciou os indígenas dos elementos positivos da cultura nacional e os aproximou dos elementos negativos, criando estereótipos depreciativos. Talvez por isso, no senso comum, as pessoas tenham uma dificuldade para entender as demandas das populações originárias e a importância da defesa de seus territórios. Como você analisa a dificuldade das pessoas em entenderem a representatividade dos indígenas?

 Essa língua que estamos falando hoje não é a mesma língua do século XX, século XIX, XVIII, XVII, XVI… é nova. Agora, o brasileiro comum pode mudar, pode falar diferente, pode usar outro tipo de vestimenta que não é a do século XVI, mas o indígena não pode. E por que não pode? Porque no pensamento colonial, colonialista, o indígena é um ser do passado, ele é atrasado, ele é o passado da humanidade, o passado do Brasil, ele nunca é o presente do Brasil. Por isso, obviamente uma pessoa que vê um indígena frequentando um banco da universidade, concorrendo a prêmios nacionais e internacionais na área de arte, letras, literatura, cinema, música, a pessoa se espanta, primeiro por ignorância, segundo por falta de admitir que a cultura é dinâmica, que ela se atualiza e em terceiro lugar se espanta porque não pode admitir que um “selvagem” usufrua dos mesmos direitos que ele, o “civilizado”. Isso seria colocar os dois no mesmo nível e isso o pensamento colonialista não permite.

As pessoas que têm esse pensamento colonizado, elas procuram olhar pros indígenas e não querer entender, mas eles não fazem isso por maldade, é pura incapacidade de ir além do pensamento que foi colocado na cabeça deles e têm obviamente os pensadores desse ocidente que fi cam alimentando isso, que fi cam alimentando esse tipo de comportamento e aí o bobinho lá do fi nal da fi la, ele não percebe que tá sendo manipulado, ele não percebe que o pensamento dele tá sendo mantido ali escravo, um pensamento de escravo, porque isso alimenta o sistema e continua alimentando também a diferença de classe, quanto mais ignorante a pessoa é mais ela vai lutar a favor do patrão.

 Disso que você está falando, do pensamento colonizado, de todo esse estereótipo que o colonizador inventou sobre os povos que aqui já habitavam, é interessante que nesses últimos 10 anos, por uma abertura da lei 11.645, que tornou obrigatório o ensino dos conteúdos étnicos-raciais tanto a nível do ensino escolar como na formação do ensino superior, criou-se uma demanda para o mercado editorial de livros que tratem do assunto. Como você vê essa movimentação?

 É bom fazer três esclarecimentos. O primeiro esclarecimento é de que a lei 11.645 não é um benefício do Estado brasileiro para os indígenas. A lei foi uma CONQUISTA, uma conquista de uma árdua luta pelo direito de ser reconhecido pelo indígena. Isso já começou lá pelo movimento indígena nos anos 1980 e garantiu a inscrição de dois capítulos na Constituição em que o Estado brasileiro admite que os indígenas são brasileiros e como tal tem direitos de brasileiros. Só que são brasileiros diferenciados, porque são brasileiros que vivem nesse mesmo território chamado Brasil, mas que vem de uma cultura diferente, que vem de uma forma de humanidade diferente dos brasileiros “normais”, digamos assim. Essa conquista por esses direitos de ser considerado indígena demandou também a necessidade de que o Estado brasileiro desenvolvesse políticas públicas que levassem em consideração o reconhecimento desses indígenas por toda a sociedade, não só pela lei, mas por toda a sociedade. A luta seguinte dos indígenas foi justamente como fazer com que o Estado brasileiro garantisse que todas as crianças, todos os jovens todo o sistema educativo escolar nosso, ao desenvolver a educação de suas crianças, ele inserisse a temática indígena como sendo absolutamente importante e essencial para construção da identidade brasileira. Não a contribuição que o indígena deu, não. Mas como a construção da própria identidade de ser brasileiro. Então essa é uma primeira questão: a lei nasceu como uma demanda.

Ora, como essa lei nasceu e obrigou o Estado brasileiro a criar mecanismos de informação que não fosse só na sala de aula, que não fosse só o professor, capaz de poder fazer com que esse conteúdo se espalhasse. Primeiro, foi pela própria formação dos professores, naturalmente, segundo pela aquisição de equipamentos que permitisse os professores trabalharem em sala de aula. E aí foi importante… a lei foi assinada já em 2008, durante o governo do presidente Lula, esse governo, então começou a desenvolver uma série de editais pra aquisição de livros pra mandar pras escolas, para os professores, pra que ninguém dissesse que não tem material pra trabalhar a temática indígena na sala de aula. Isso demandou uma concorrência muito grande a texto não de autores indígenas, mas textos que tratassem a temática indígena. O mais legal nessa história, nesse processo, eu acho, é que o MEC naquela ocasião foi muito correto no sentido de definir linhas de como esses livros deviam ser escritos e por conta disso o mercado editorial ficou alvoroçado porque eram alguns milhões de reais pra serem gastos em compra de livros.

Esse mercado se alvoroçou, convidou muitas pessoas pra escrever, gente que conhecia a temática indígena e gente que não conhecia a temática indígena, gente que era indígena, gente que não era indígena, porque os editais tinham uma linha e isso fez com que esse mercado crescesse e esse mercado durante uns cinco ou seis anos explodiu, os livros de autoria indígena cresceram um absurdo. Devo dizer, fazer um parêntese aqui, que mesmo quando um livro é escrito por um indígena não significa que seja um livro de qualidade, porque o texto de qualidade literária ele segue também um certo parâmetro e é importante que as pessoas saibam disso, muitos livros nasceram ali, mesmo escritos por indígenas que eram textos que reproduziam os conhecimentos antigos, ainda era um escritor indígena que falava de “tribo”, que falava de “índio”, que falava de histórias de um passado que ele não dominava direito. Isso acabou também por ser um sinal de alerta pro próprio MEC e pra todo mundo, pra todo o mercado editorial que buscava fazer um material de qualidade, porque o MEC exigia isso: material de qualidade.

O que aconteceu naquela ocasião foi justamente essa necessidade de se criar esse material; o mercado editorial cresceu, apareceram muitos indígenas escritores, alguns muito bons, outros nem tanto. Assim como apareceram muitos livros de não indígenas que eram muito bons e que foram adquiridos, comprados na época, como tinham livros de não-indígenas que eram uma porcaria que efetivamente foram dispensados. Então, havia esse cuidado, houve uma triagem, as pessoas que faziam essa triagem eram extremamente competentes. Foi realmente uma época gloriosa, eu diria. Tanto é verdade que você vai em escolas do Brasil inteiro e encontra no acervo livros de autoria indígena ou livros de temática indígena, livros muito bons. Infelizmente, em muitos lugares esses livros estão escondidos, muitas vezes ainda estão no saquinho plástico que chegaram e nunca foram abertos. Nunca foram usados porque eram livros mandados, às vezes, sem nenhuma preparação do professor, de modo que o professor não podia reclamar que não tinha, mas também ele não podia dizer que trabalhava direito porque ele não conhecia. Efetivamente o que se passou nessa ocasião foi isso.

A partir de uns quatro anos pra trás esses editais arrefeceram muito, o interesse das editoras diminuiu. Hoje não se publica livro de autoria indígena do jeito que se publicava cinco a seis anos atrás, se tem mantido certa regularidade porque esses autores que apareceram, que escreviam bem, eles continuam escrevendo bem e as editoras tem interesse nisso, porque a lei ainda existe. Então, as escolas continuam procurando, não em nível de edital, que era o interesse maior das editoras, mas em nível de trabalho pedagógico local.

Estando aqui em Teresina fui a uma escola que já usa meu livro faz cinco anos, lê um dos meus livros e fazem trabalho com esse texto. Isso mostra que as escolas têm uma preocupação em cumprir a lei e procuram fazer direito, sejam escolas particulares, públicas, municipais, estaduais ou federais. As universidades estão se preocupando com isso, há muita pesquisa sendo realizada sobre literatura indígena, sobre os povos indígenas, sobre a língua indígena. Três ou quatro vezes sou chamado pra ler algum tipo de trabalho ou avaliar algum tipo de material, eu venho participar de bancas de qualificação ou bancas de mestrado ou doutorado sobre essa temática, portanto é uma temática que nunca desapareceu depois disso, o que aconteceu foi um arrefecimento, um desinteresse do Estado brasileiro por conta do golpe que foi dado recentemente e que acabou, digamos, abalando todo um trabalho que vinha sendo feito anteriormente que era de conscientizar as pessoas sobre a existência da literatura indígena.

 Como é a sua inserção nesse cenário? Que reflexão você faz sobre sua literatura e a circulação que realiza por escolas, eventos literários e espaços acadêmicos?

 Eu não sou só uma literatura, eu sou efetivamente o que eu acho que sou e eu acho que sou um conjunto de coisas. A literatura faz parte de mim como faz parte de mim o ser Munduruku. Mas faz parte de mim também sair pelo Brasil circulando, falando, tentando desentortar pensamentos; faz parte de mim ir conversar com crianças, cantar e dançar com elas; faz parte de mim ir pras universidades tentar descolonizar; faz parte de mim tudo isso. É um movimento único, aquela coisa do movimento circular que eu sempre digo, a literatura é uma parte de mim, mas não é o meu todo. Ela é uma parte importante nessa conjuntura, eu sou esse todo. Eu acho que a minha literatura é uma literatura engajada nesse sentido, eu não me vejo um escritor criando, sentado num escritório, sabe, criando histórias lindíssimas e tal. Me vejo uma pessoa engajada dentro de uma sociedade ainda bitolada, ainda no espectro da casa grande, uma sociedade que se vê mais senhor de engenho do que escravo e é preciso arrancar essa ideia, esse colonialismo do pensamento das pessoas pra ver se elas conseguem criar consciência do quê que elas são, efetivamente.

Eu não paro num lugar, eu não tenho vocação pra escritor, a escrita é uma arma é um instrumento e eu coloco isso sempre com a força que posso e, ao mesmo tempo que faço chegar a escrita nos lugares, eu tento fazer chegar minha palavra, minha fala, a minha argumentação. Não tô a fim de fugir da discussão, do debate, eu quero mais é debater, quero mais é que as pessoas escutem. Nem me sinto representante também do movimento indígena, costumo dizer, inclusive, que sou um indígena em movimento mais do que parte do movimento indígena, sou parte porque sou indígena e sou um autor indígena, mas não falo em nome do movimento, não represento o movimento, não acho que deva representar, também, porque isso me dá mais liberdade de poder provocar a sociedade brasileira. Quanto mais anarquista eu for, nesse sentido, mais eu posso gritar, mais eu posso falar, mais eu posso questionar, não estou preso a nenhuma instituição e a nenhum movimento organizado, embora, como eu disse, faça parte do movimento e procuro, claro, trazer os elementos desse movimento pro meu discurso. Eu tento acompanhar o que o movimento tá pensando ou eu tento fazer que o movimento acompanhe o que eu estou pensando, porque o movimento é feito de gente e as pessoas que têm uma entrada política muito mais vigorosa que a minha no mundo do branco, elas precisam estar bem informadas também e ter fontes de informações seguras.

Então, eu me sinto uma espécie de consultor informal do movimento indígena, sabendo que meus textos estão disponíveis pra quem quiser ler, meu pensamento está aí, está colocado nos meus escritos, nas minhas falas, nos vídeos que eu gravo, nos broadcast que faço por aí, enfi m é assim que me vejo, é assim que me sinto, navegando nesse rio meio caudaloso e incompleto do movimento indígena.

 A linguagem de um escritor indígena tem uma expressão muito específica. Na sua opinião, em que reside a potência estética e política da literatura feita pelos indígenas?

 As pessoas me perguntam às vezes, “por que que a sua literatura não é só literatura brasileira? Você escreve bem, tem uma entrada na sociedade, por que você insiste em dizer que a sua literatura é indígena e não apenas brasileira?” costumo dizer pras pessoas que eu quero marcar o meu lugar, demarcar o meu território. Porque se eu coloco como literatura brasileira o que eu escrevo simplesmente, daqui a pouco alguém vai dizer que é uma literatura indigenista; daqui a pouco alguém vai dizer que a minha escrita é a mesma do José de Alencar; daqui a pouco alguém vai comparar com o Mário de Andrade. E embora esses tenham escrito sobre a cultura indígena eles não a experimentaram, eles não sabem. A minha literatura é indígena porque ela é experimental, ela nasce da minha própria experiência enquanto membro de uma sociedade originária. Então eu quero forçar as pessoas a pensar… eu não estou criando uma escola literária, eu tô criando um lugar literário dentro dessas escolas todas que já existem. Tô pouco ligando se o cânone vai fazer eu entrar pelo cano, eu quero mais é que a minha literatura chegue onde tenha que chegar, que é nas crianças, principalmente; que é nos jovens; que é nos cidadãos brasileiros que querem ler uma coisa diferente e que sintam a nossa estética nessa escrita. Que a estética que nós temos é uma estética que nasce nela própria, não é uma invenção minha. Eu não invento nada, eu meio que reproduzo o que tá dentro de mim e o que tá dentro de mim veio de um povo, vem de um grupo ou veio de vários grupos que depois eu fui me alimentando deles, também pra, digamos, criar o meu estilo pessoal de escrita.

Eu acho que as pessoas podem ver uma beleza sensível dentro dos escritos indígenas, eu acho que elas podem encontrar muita magia, muito encantamento, elas podem encontrar muita sinceridade, muito sentido de pertencimento, isso tudo as pessoas vão encontrar e isso, ao meu ver, forma a estética da nossa literatura. Que não é “minha” literatura, que não é do povo Munduruku, é uma estética que vai além dessas identidades particulares, acho que ultrapassa mesmo, vai além disso. E é isso, as pessoas tem que se abrir, cara! Os bons leitores são pessoas que têm que estar atentas ao que elas leem. Às vezes o que elas leem pode ser puro divertimento, o que eu escrevo não é puro divertimento, tem um recado ali, um recado estético, tem um recado social, tem um recado político, tem um recado lúdico, está ali presente. Mas se a pessoa for ler só como entretenimento ela não vai conseguir chegar a nenhum desses componentes que a literatura traz.

 A editora Azougue começou a publicar a coleção Tembetá, uma série de livros com pensadores indígenas. Gostaria que comentasse a importância da COLEÇÃO para a descolonização do pensamento acerca dos povos e saberes originários.

Eu acho a coleção Tembetá uma coleção extremamente importante, única que vem ocupar um espaço que está faltando na sociedade. Lamento até que ela seja só uma coleção por assinatura porque obviamente isso seleciona bastante as pessoas que vão recebe-la, acho que ela tinha que ser mesmo no formato popular de venda e que as pessoas pudessem escolher o que querem ler, efetivamente. Não que um seja melhor que outro, não! Ou que as pessoas pudessem comprar na banca, se achassem interessante. Mas ela vem ocupar um vazio que nunca antes foi ocupado, então nesse sentido, o projeto do Sérgio Cohn é extremamente inovador, corajoso, porque ele tá surfando numa onda virgem, ainda, uma onda que ninguém surfou até agora e que ele pode, ele sabe muito bem de antemão quanto a isso, que pode ser um sucesso, pode ser um médio sucesso ou um pequeno fracasso. Mas isso é um risco que o editor corre sempre que escolhe publicar um tipo de narrativa como essa, porque se trata exatamente de narrativas.

Os livres pensadores que estão ali, e eu entendo que eles são pessoas que não respondem por suas comunidades, respondem por si mesmos, por isso é uma coleção de pensadores, não é uma coleção de líderes, porque são pessoas com livre pensar que circulam nessa sociedade, que tem várias experiências dentro dela, seja na universidade, no movimento indígena, nas experiências espirituais, na confusão da vida cotidiana. Por isso, também, a coleção Tembetá não quer ser, digamos, um tratado sobre o movimento indígena, não é uma bíblia sobre o movimento indígena. É simplesmente a visão de pessoas que participam da sociedade e que tem um olhar sobre ela. Eu fi co feliz de poder participar dessa coleção, seja por um reconhecimento, que isso é efetivamente de que o trabalho que a gente faz tem feito alguma diferença dentro do país e tem ajudado o país a pensar em si mesmo, a sua própria identidade. Certamente muita gente vai fi car de fora, muitos desses pensadores que hoje estão surgindo, jovens pensadores que estão aparecendo agora dentro das universidades, indígenas estudantes, vão fi car de fora por um tempo talvez, mas por outro lado é também uma forma de a gente entender o processo histórico da sociedade brasileira e isso só os velhos podem contar, os velhos podem dizer porque viveram isso, vivenciaram essas transformações todas.

Nos últimos vinte anos o pensamento indígena ganhou maior visibilidade, voz e feições próprias, se afirmando no cenário nacional. Você acha que tal fato pode ajudar a redefinir o pensamento social brasileiro contemporâneo?

 É muito difícil dizer isso, primeiro porque nós não somos canônicos, segundo porque a sociedade da ciência, a sociedade ocidental, científi ca e tudo mais, ela segue uma linha muito plana de história. É muito difícil eles imaginarem, de conseguirem alcançar a ideia do pensamento da circularidade, porque esse pensamento circular ele se confunde muito com o não pensamento e o ocidente não consegue chegar ao não pensamento. Eles normalmente colocam esse não pensamento como pensamento mágico, como pensamento espiritual, não racional e isso, claro, inviabiliza usar o pensamento desses autores como referência na construção de uma ciência que é tão linear, a ocidental. Então, eu não tenho a ilusão de que a gente tá mudando o mapa do pensamento social brasileiro. Aliás, o que eu pretendo fazer é tentar dar visibilidade a um pensamento que existe no Brasil que caminha, às vezes, paralelamente a esse pensamento oficial, mas que é um pensamento que construiu um modo de existência e o nome de resistência. O que tenho feito, a minha ação tem sido na direção de que a literatura que o indígena produz é uma literatura de qualidade, é uma literatura premiada, é uma literatura que desperta um grande prazer nas pessoas e é por isso que ela tem que ser publicada. E é claro, a gente usa isso como um instrumento de resistência. Nós aprendemos a lhe dar com a literatura, nós aprendemos a manipular os códigos, portanto nós podemos utilizar isso como arma positiva pra ajudar o Brasil a pensar em si mesmo.

MIKA | PI Graduada em Licenciatura em Artes Visuais pela Universidade Federal do Piauí. Participa de mostras coletivas e projetos voltados para a questão de gênero e etnia. Seu trabalho envolve escritos, desenho, objetos, pintura, fotografia e vídeo-performance. Atualmente se interessa pelas questões que envolvem a memória afro-brasileira e indigena.
e-mail: [email protected] site: diariodeluz.tumblr.com

Nesse contexto de sucessivos golpes e ano eleitoral, temos pela primeira vez na história do Brasil uma representante indígena concorrendo à presidência, Sônia Guajajara como vice em chapa com Guilherme Boulos, pelo PSOL. Como você analisa a candidatura dela nesse cenário político?

 Eu achei absolutamente natural. Sônia tem se destacado bastante como uma voz política, efetivamente. É uma voz que se sobressai, uma voz esclarecida eu diria, gosto muito do discurso que ela faz, da argumentação que ela usa para defender as suas posições. Obviamente não creio que seja uma chapa que represente qualquer tipo de possibilidade de ganhar uma eleição, mas sem dúvida vai trazer como assunto, como pauta para discussão nacional. Certamente ela faz isso, como o Kaká Werá fez em São Paulo quando saiu como candidato ao senado, mostrou o rosto indígena no maior estado brasileiro e no estado em que os indígenas também são apagados constantemente. A candidatura da Sônia tem muito esse peso simbólico de quem precisa mostrar que a gente tá aqui, que a gente é contemporâneo do Brasil, que nós estamos nesse país não para dificultá-lo, para destruí-lo, não para detoná-lo como os caras de direita querem fazer acreditar. A gente tá aqui pra contribuir, pra colaborar, pra fazer o Brasil pensar nele enquanto Brasil, sem abrir mão das suas riquezas naturais, sem abrir mão do seu minério, sem abrir mão do seu petróleo, sem abrir mão das coisas que durante muito tempo a gente vem protegendo, vem defendendo. E a gente não protege isso pra gente, a gente defende isso pra sociedade brasileira.

A sociedade brasileira alimentada por esse discurso agropop é que não tem conseguido perceber a intensão subliminar que esse tipo de discurso trás, que é de justamente colocar o indígena como estorvo do desenvolvimento, do crescimento, porque ele protege, ele luta, por um bem que é um bem de toda nação. Não é um bem dele. O papel dos indígenas é esse: defender o Brasil. Eu acho que nesse sentido nós somos mesmo os guardiões da memória do Brasil e o Brasil precisa lembrar disso. Então, a candidatura da Sônia vem pra lembrar ao Brasil essa sua memória, trazer essa sua memória à baila. Não deve causar nenhum furacão, não vai explodir nenhum furacão em relação a isso, mas certamente vai incitar o pensamento do brasileiro. Isso é muito positivo, acho importante ser uma representante mulher e nesse sentido, é sintomático porque mostra como as mulheres indígenas começam a ter um papel dentro do movimento indígena, que é um papel que vem surgindo nos últimos anos em função da saída dos homens da comunidade, da ída dos rapazes, moços pras universidades, muitas vezes deixando as comunidades, desprotegidas e as mulheres tendo que assumir um papel que até então era um papel iminentemente masculino, que era o papel político. Agora, isso tudo é uma reviravolta que a própria cultura faz, eu não vejo isso uma celeuma, que se cria uma celeuma com isso, é um movimento natural que está acontecendo e eu fico feliz que ela esteja cumprindo esse papel aí em nome de todos nós indígenas.

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