A Literatura Indígena tem o Papel de Conscientizar a Sociedade – Entrevista com Olívio Jekupé

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Entrevista concedida a Julie Dorrico em março de 2020.

Olivio Jekupé, indígena do povo Guarani, é escritor de contos, poesias, romance e textos críticos. Mora na aldeia Krukutu, Parelheiros (SP), mas é natural do Paraná e foi lá que iniciou seus primeiros escritos. Jekupé, em guarani, significa “mestiço”. Olívio estudou Filosofia na USP, e embora não tenha concluído o curso, sentiu se estimulado a escrever e a participar de palestras no Brasil e no exterior. Tem 19 livros publicados e recentemente lançou, em formato digital, “Literatura Nativa em Família” um livro em que escreveu sua companheira e filhos.


1 – Olívio Jekupé é escritor guarani, ativista em prol das causas indígenas, teórico, atuante desde a década de 1990 na literatura indígena. Nesse mês de abril, o país se volta para os povos indígenas por causa do Dia do Índio, data comemorativa criada através do decreto-lei 5.540 de 1943, proposta em 1940 pelas lideranças indígenas do continente que participaram do Congresso Indigenista Interamericano, realizado no México. O que significa o Dia do Índio e o mês de abril para você enquanto guarani?

O dia 19 de abril a gente sabe que foi em homenagem ao Encontro Internacional dos Povos Indígenas que ocorreu no México e daí, depois, o Getúlio Vargas resolveu criar uma lei em homenagem aos povos indígenas sobre esse dia 19 de abril. O que eu vejo é o seguinte, acho que nós temos que aproveitar esse dia para conscientizar a sociedade, que na verdade, todo dia é dia do índio. Mas, como no Brasil a gente sofre muito preconceito, desrespeito, problema com demarcação de terra, violência, massacre – no Brasil as pessoas não sabem o que acontece nas aldeias – tem que aproveitar esse dia para dar palestras, aproveitar para receber escolas nas aldeias.

As escolas e os professores, na cidade, devem aproveitar para trabalhar o tema em sala com vídeos, porque tem muitos vídeos que mostram os problemas das questões indígenas. Os professores podem usar os livros dos autores indígenas e ler para as crianças e conversar com elas, as crianças precisam aprender um pouco sobre a realidade indígena, porque a realidade indígena não pode ser fantasiada, ficar só no blá blá blá, pois temos muitos problemas. Então, com a chegada dos portugueses no 1500, nossos povos começaram a sofrer massacres, estupros, perder suas terras. Então, isso a gente tem que continuar denunciando.

Não temos o que comemorar no dia do índio, não temos o que festejar. Mas a gente pode usar essa data para ensinar para a sociedade que nós estamos aqui, que não morremos, que temos direito à terra, que muitos pensam que os povos indígenas foram extintos, mas não. Nós estamos aqui na aldeia, nós temos nossa religião, nossos costumes, nós como Guarani estamos vivos. Então nós somos uma nação que sobreviveu a esses 520 anos. Sabemos que tem etnias no Brasil que foram extintas, mataram todo mundo. Nós Guarani desde 1500 estamos resistindo e esperamos resistir mais 520 anos, se a corona vírus não matar todo mundo, né?! Se não matar todo mundo, vamos estar aqui para continuar mostrando para a sociedade que estamos em nosso território há séculos.

A história do Saci foi invertida e as pessoas não sabem. Na época da escravidão os negros africanos aprenderam a história do Jaxy Jatere e eles tinham também uma crença africana de um personagem protetor da floresta. Como eles eram escravizados, eles tentavam se vingar dos senhores, faziam algumas coisas como vingança e quando os senhores iam castigar os negros, pelos atos, eles diziam que não tinha sido eles, que era coisa do negrinho de uma perna só. Só que na época eles pegaram o nome do Jaxy Jatere e juntaram com a história africana. E daí, como os africanos não sabiam pronunciar a palavra Jaxy Jatere, eles pronunciaram Saci Pererê. Por isso que no Brasil as pessoas não sabem dessa história.

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2 – Você é autor de várias obras, incluindo Jaxy Jatere, fale-nos quem é o Jaxy Jatere.

Eu já publiquei 18 livros, esse ano eu ia publicar mais dois e por conta dessa corona vírus os lançamentos foram adiados. Mas consegui lançar um que é digital e estou com 19 livros publicados. Comecei a escrever em 1984, são muitos anos de escrita e de batalha para publicar livros e não é fácil publicar um livro no Brasil, especialmente na questão do tema dos povos indígenas, nem sempre a gente tem o apoio de editoras.

Queria comentar sobre a história do Jaxy Jatere que é um livro que publiquei pela editora Panda Books. É um livro muito gostoso e ele está em português e em guarani, está nas duas línguas. É importante porque chegando nas escolas, na cidade, as pessoas vão ver a língua Guarani e, se chegar na aldeia, as crianças vão poder trabalhar e aprender a ler e escrever nas duas línguas. Jaxy Jatere ele é o protetor da floresta, ele é uma entidade das nossas crenças, para resumir tudo ele é o Saci indígena.

Então, o Saci Pererê é essa coisa que foi criada. Jaxy Jatere é uma entidade da cultura Guarani. Nas aldeias que são Guarani todo mundo conhece e inclusive, se forem no Paraguai, porque lá eles falam a língua Guarani, eles conhecem a história indígena do Jaxy Jatere. Se contarem a história do Saci o povo do Paraguai não vai saber, porque essa história foi criada aqui, porque houve uma pequena confusão. Podemos dizer que são duas entidades que protegem a floresta, a entidade indígena Jaxy Jatere e a entidade africana do Saci Pererê.

3 – Muitas das suas obras autorais são adotadas/estudadas pelas escolas. Eventualmente você é convidado a palestrar nelas. Você vê alguma mudança no tratamento dado pelos professores e alunos não indígenas ao sujeito indígena depois da leitura/conhecimento de suas obras?

Eu fico feliz em saber que existem estudiosos e pesquisadores universitários que estão estudando as minhas obras. Também muitos professores no Brasil estão usando esses livros para trabalhar com as crianças. Isso me deixa feliz, porque não são só os meus livros, mas também de outros escritores indígenas estão sendo estudados nas escolas e universidades, como pesquisa. Vou dar exemplo do Paulo Vitor Albertoni Lisboa, um doutor em antropologia da UNICAMP, ele fez um mestrado estudando a minha obra e a tese foi publicada no livro “As Obras de Jekupé: Um Escritor Guarani”. Isso chama muito a atenção.

Antes da década de 1980 não haviam escritores indígenas com livros publicados e hoje nós temos vários, e os livros estão chegando nas escolas. Isso é bom porque os professores vão ter um conhecimento mais profundo para trabalhar com as crianças. Antigamente se falava sobre os índios, antes da lei 11.645 e do surgimento dos escritores indígenas. Todo ano se fala sobre o índio, mas se falava coisa que não tinha muito sentido. E vejo que a nossa literatura, as nossas obras estão chegando nas mãos certas, que são dos professores e eles têm que ter conhecimento para falar da cultura indígena. Porque se os professores não tiverem esse conhecimento, vão continuar falando coisa errada. Por isso nossas obras são importantes.

Eu fico emocionado vendo os professores lendo nossos livros, e percebo que eles ficam também. Eu vejo isso conversando com eles quando vou às escolas dar palestras. Alguns dizem assim “eu sou seu fã, acompanho o seu trabalho”. Isso é muito bom, porque a gente vê que a nossa literatura está sendo valorizada e quando se valoriza a literatura escrita por povos indígenas, a sociedade começa a valorizar os indígenas também.

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Acredito que as obras que nós escrevemos tem um valor muito forte, que é trazer esse conhecimento para os professores, para as crianças e para a sociedade em geral. Para falar sobre o índio tem que falar com conhecimento, porque as pessoas sem conhecer falam coisas erradas e quando falam coisas erradas, faz com que se crie mais preconceitos. Então através da literatura escrita por autores indígenas, tanto a minha, como a de outros, faz com que a sociedade respeite mais os povos indígenas. Nossa literatura tem uma grande missão que é conscientizar a todos.

4 – Em “Literatura escrita pelos povos indígenas” (Scortecci, 2009) você formula o conceito de Literatura Nativa. O que é a Literatura Nativa?

Eu criei esse termo “literatura nativa” porque passei a observar que existem muitos livros que falam de elementos indígenas e que trazem alguns erros gravíssimos nas histórias. Então isso me deixava preocupado, porque muitas pessoas que escreveram sobre povos indígenas nunca foram em uma aldeia, não têm noção de que as etnias são povos diferentes, que tem um costume, uma religião e uma língua diferente. Cada povo tem seu pensamento diferente um do outro. Por isso eu criei o termo “literatura nativa” para tentar diferenciar um pouco.

Pra mim, nós os autores indígenas, moramos e vivemos na aldeia, a gente tem a vivência na comunidade, a gente aprende uma cultura. Por isso meus três filhos homens são todos escritores, e eles aprendem a cultura Guarani, falam a língua Guarani, vão nos rituais à noite aprender as histórias. Então toda a história que se aprende vem da cultura Guarani. Quando os meus filhos vão escrever eles não escrevem com o pensamento da cidade, eles escrevem com o pensamento da aldeia, porque tem uma cultura própria. Essa é a diferença e a “literatura nativa” é isso.

Os povos indígenas conhecendo sua própria cultura e quando vão escrever, escrevem seguindo os costumes do seu povo, por isso eu criei esse termo “literatura nativa” pra mostrar essa questão. Por exemplo, eu não vou escrever uma literatura sobre os índios Xavantes, porque não sei como eles vivem, nunca fui numa aldeia Xavante, não sei a língua deles, não sei como é o pensamento religioso deles. Então eu não posso criar uma ficção, só imaginar os Xavantes porque eu vi na televisão, nas revistas e daí eu vou criar uma ficção. Se eu fizer isso, quando um Xavante ler, ele vai dizer, “não, isso aqui não tem nada a ver com a nossa realidade”. Por isso que cada povo, cada etnia, escreve seguindo o pensamento do seu povo. Isso é literatura nativa e eu tenho certeza que alguns estudiosos que estudaram a minha obra, eles intenderam, porque fizeram pesquisa comigo, alguns vieram na aldeia e aí eu fui explicando pra eles entenderem essa diferença.

“Literatura nativa” tem esse conceito, nesse sentido, porque desde 1500 as pessoas vêm escrevendo sobre o índio. Então, hoje, como temos nossos autores indígenas eu acredito que vai surgir em várias aldeias do Brasil mais autores indígenas e isso é importante. Portanto, quanto mais autores indígenas de várias aldeias, melhor. Porque vai ter mais livros para chegar aos professores e a sociedade em geral para entender essa literatura feita por indígenas.

5 – Muitas das obras autorais indígenas destinam-se ao público infanto-juvenil, incluindo as suas. Por que essa faixa etária foi escolhida como destinatária?

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Quando eu comecei a escrever em 1984 eu tinha uma preocupação muito séria, que era tentar mostrar para a sociedade o que acontece nas aldeias. Na aldeia tem muita violência, que acontece desde 1500, e as coisas, às vezes, não se mostra. Daí eu comecei a escrever textos, contos, poesias, romances, sempre na visão crítica, pra tentar mostrar os problemas sociais. Mas os anos foram passando, passaram 10 anos e eu não tinha publicado nenhum livro. Foi quando eu percebi que era difícil publicar um livro crítico, porque naquela época as editoras não tinham interesse em publicar. A questão indígena não era muito interessante pra elas, porque elas não iam conseguir vender um livro crítico para a secretaria do estado, municipal e o MEC. As editoras não se interessavam, pois não ia vender.

Eu consegui publicar um livro crítico em 2000 chamado “Xerekó Arandu: a morte de Kretã”. Mas eu só publiquei o livro porque uma amiga da secretaria de educação resolveu apoiar essa causa. Depois que o livro foi publicado, a secretaria municipal de São Paulo comprou, só que a editora não deu continuidade nesse livro, porque a editora viu que o texto era pesado para trabalhar com as crianças. Então eu percebi essa diferença. E daí, a partir de 2000 pra cá, foram surgindo outros escritores indígenas conseguindo publicar seus livros. Mas todos entrando sempre na mesma área, literatura infantil e infanto-juvenil. Não quero dizer que uma é mais importante que a outra, tanto a literatura infantil, quanto a crítica, as duas são importantes. Só que, a que conseguiu espaço foi essa infantil e infanto-juvenil, porque tratam de nossa cultura, de nossas histórias, sem ter a visão crítica. Porque a gente escreve um conto que não vai afetar, na visão das editoras, e não vai ter problema com o MEC, nem com as secretarias de educação e nem com os professores. Por isso, existe essa diferença.

Eu tive uma sorte esse ano. Uma editora me procurou dizendo que queria publicar um livro crítico e eu falei “ôpa! está falando com a pessoa certa, eu tenho vários aqui”, daí, mandei pra eles. O livro ia ser lançado, agora em abril e se chama “A Invasão”, mas por causa da corona vírus foi cancelado. Então é esperar para laçar mais pra frente. Mas eu acredito que aos poucos as editoras vão começar a abrir um espaço para publicar livros mais críticos. No futuro teremos livros críticos, infantis e infanto-juvenil, todos são importantes

Certa vez eu publiquei um livro de forma independente, um livro de poemas chamado “500 anos de Angústia”, porque eu sabia que as editoras não iriam publicar. Hoje esse livro pode ser encontrado na versão digital e pode ser adquirido pela Amazon. Acabei de laçar um livro novo, digital, chamado “Literatura Nativa em Família”, esse é o primeiro livro publicado por uma família indígena. É um livro que não precisa se preocupar nem com as secretarias, nem com o MEC e nem com políticos. Então, quem quiser comprar vai fazer direto pela internet.

6 – Gostaria de sugerir um ou mais escritores/artistas indígenas para o público não indígena conhecer?

Bom, tem muitos, mas indicaria o escritor e cantor de rap Kunumi MC. E se puder mais um, indico a escritora Vangri Kaingang também, pois a danada é muito talentosa.

2 comentários em “A Literatura Indígena tem o Papel de Conscientizar a Sociedade – Entrevista com Olívio Jekupé”

  1. Olá , sou Alba ,professora de Ed infantil em Campinas ,São Paulo.
    Considero de extrema importância apresentar às crianças historias vivas de nossa ancestralidade.
    Gostatia muito de conversar mais com Olívio Jekupé a respeito do Jaxy Jaterê , pois apresentarei ele às crianças em meu próximo projeto.
    Seria possível compartilhar comigo o e-mail dele?
    Grata

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