CORPO, ESPÍRITO E DESENHO

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por Juliana Lapa

Reflexões a partir das séries de pinturas e desenhos “OUTROS ESQUEMAS DO CORPO” e “Breu”.

Esse texto faz parte do livro Outros Esquemas do Corpo, que será lançado pela Edições Flecha (PE).

Juliana nasceu em Carpina, Pernambuco, em 1985, mudando-se para Recife na adolescência. Atualmente vive entre sua cidade natal e Florianópolis, SC. Seus trabalhos são trazidos da memória a partir de sua relação com a natureza e as emoções.

Vida, morte, espiritualidade e feminino se relacionam numa prática intuitiva e arqueológica das imagens e materialidades produzidas, revelando uma simbologia própria que deságua em desenhos, pinturas, fotografias, cadernos e experimentações sonoras.

(Texto informado pela autora) 

Um corpo desenhado é um corpo vivo. E tudo cabe dentro de um corpo desenhado, como vários corpos cabem dentro de um corpo: O corpo das ideias, o corpo das emoções, o corpo-memória que recorda a nossa forma primordial.

Quando penso nos esquemas dos corpos, penso em todos os reinos. Os animais, por exemplo, têm seus corpos e eles se parecem bastante com os nossos. E os objetos, por sua vez, também têm corpos: um corpo palpável e um duplo dele, que reside no rascunho do mundo tangível, que permanece, às vezes, até mesmo depois do objeto em si desaparecer.

No mundo vegetal podemos testemunhar, com silêncio e atenção, uma árvore em desenvolvimento desenhando a forma dos galhos que crescerão. Ela traça com manchas e linhas um campo a ser preenchido pela matéria. A árvore designa, planeja e pratica o exercício da vontade de existir.

No mundo das formas transitórias (ou como quiser chamar aquele espaço onde as coisas apenas existem e acontecem por força do espírito), um corpo é como uma nota que ressoa ou que cristaliza a depender da força da vontade, da energia dos pensamentos e da constância dos desejos. O reconhecimento do outro se dá pela essência das coisas, também pelo afeto. A essência é o corpo sem imagem, é a presença que atua como um som sem som, um cheiro sem cheiro, a memória sem a âncora do fato. Uma coordenada única que cada ser, de todos os reinos vivos imagináveis e inimagináveis possuem, um endereço único e intransferível, às vezes que deriva de um grande grupo matriz, outras vezes uma coordenada solitária.

Ando dissolvendo, 2021

Os retratos das pessoas que tenho feito, geralmente de memória, são repletos de essência que identifico como o endereço energético das pessoas, é por onde as reconheço. É por onde percebo também uma interação constante entre memória profunda e referências cristalizadas. O rosto da minha mãe é uma referência cristalizada, e às vezes é um alicerce para os desenhos.

A mente que caça a mão

O derrame das formas pelos dedos – desenho, corpo, espírito e duas maneiras de desenhar com palavras a anatomia da prática.

Maneira 1

A mão tece, o olho acompanha, a mente caça a mão. 

Através do peito passa uma linha que desce pelo braço e faz escorrer pelas pontas dos dedos as imagens, as manchas, as palavras.

O estado de desenho faz desdobrar em mim dois pares de olhos (olhos transcendentais, que captam som, aroma, atmosfera, identidades): um par de olhos navega em deriva, o outro par de olhos observa o processo.

Os olhos que observam, percebem que durante o trabalho manual, os olhos da deriva captam pacotes de memória e invenção que contêm imagem, aroma, atmosfera. Uma esquina de um local que visitei num sonho, uma ruela de saudade de Recife ou Carpina, um desejo adormecido. Acontece também de sentir chegar algo muito particular, que não tem nome e que é mandatório, tem característica de alimento e a sensação é de puxar um fio de meada, me trazendo algo familiar, antigo e do qual apenas reconheço uma ínfima parcela, e essa parcela é suficiente para alimentar uma nova configuração de mundo, e isso se relaciona diretamente com o desejo do desenho. Geralmente, essa energia me conecta a outros fios e novas naturezas.

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Essa imposição urgente como um mandamento, me faz refletir sobre o que é real e de onde é que as imagens, objetos, as ideias vêm.

Maneira 2

Traço uma linha de um ponto a outro e imagino o caminho desde o berçário dessas formas até quem as recebe, que não sou eu, mas quem verá o objeto. Ali dentro de alguém um esquema mergulha, é mais um corpo dentro de outro corpo. Uma nova origem.

Visualizo que estou pescando formas enquanto durmo dentro de um barco à deriva, na correnteza de um rio volumoso, escuro, e as formas – e impulsos de imagens, saltam para dentro desse barco, como peixes que pesco involuntariamente. Esse barco pode ser o colo de uma artista que se conheceu há muitos anos e esqueceu-se dela, assim, ocorre também da pesca acontecer sob o signo dessa influência silenciosa, adormecida. 

Esse rio tem uma terceira margem, um fundo terroso, cheio de conchas que a correnteza trouxe de antigos oceanos, tem carcaças de pessoas que já se foram e ali depositaram seus sonhos, engolidos e gestados por peixes.

Nossos sonhos gestados nas vísceras de um peixe, 2019
Lava, 2016

Existem também os lagos, os açudes e poços sem fundos, onde habitam mitologias e sistemas mágicos, são esses espaços por onde correm, conservam-se ou transforma-se o fluxo de criação. Há os rios subterrâneos, os itararés, os lençóis freáticos, ainda mais interessantes e recorrentes pro trabalho. Condutores de tudo aquilo o que está escondido, residência das sereias mensageiras, igualmente generosas e amorais.

Cabelo de mãe

Desde criança eu acreditava que tudo aquilo que conseguia desenhar, eu só o fazia porque já estava tudo pronto em algum lugar, e eu pescava aquelas imagens de algum rio aéreo. A pescaria, os rios e lençóis, a linha, a corda, o fio de cabelo nunca saíram do meu imaginário. São como condutores, guias, como o fio de Ariadne, mas que me conduz aos labirintos, são emaranhados que me conectam a outros fios e isso não tem fim. A pescaria e os fios põem em imagem e gesto o que os cabalistas chamam de diáfano ou translúcido. Pois imaginar é ver.

Efetivamente, a imaginação é como o olho da alma, e é nela que as formas se desenham e se conservam, é por ela que vemos os reflexos do mundo invisível, ela é o espelho das visões e o aparelho da vida mágica. Eliphas Levi (Dogma e Ritual de Alta Magia, pág. 55)

O que está cristalizado e o que é volátil.

Oferenda, 2018

Magia e desenho:

Meditava num final de tarde, no quintal de casa. Havia uma ventania típica das 17hrs. A terra esfriava, o sol se punha. As cores desbotando num tom de azul e lilás. Os dois pés encostavam no chão, sentia meu corpo enorme, como se pudesse tocar uma superfície à distância de 4 ou 5 metros de mim. Enquanto queria conservar essa sensação, comecei a sentir meu peito se abrir como uma flor.

O medo, que sempre me vestiu como uma capa pesada sobre os ombros, caiu-se sobre os meus pés e realizei que poderia, a partir daquele momento, vislumbrar qualquer assombro ou maravilha que a vida pudesse me oferecer. E uma esperança misturada com uma sensação de saudade de um tempo de magia, seguida por flashes de lembranças de uma vida antiga, me fizeram perceber que esse corpo não é um quarto sem janelas e portas.  Um pendão há de furar a dura membrana de concreto para fazer brotar um fruto, estremecer uma bandeira.

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Dezenas de vozes que pareciam vir de um conjunto de bananeiras que me circundavam, enormes, elegantes soltavam frases como se soltassem aromas com a ação da ventania sobre suas folhas. Pensei que parecem aplausos, um espetáculo a cada minuto. E onde quer que exista um conjunto de árvores e um pequeno bioma, há ali um êxtase a cada ventania.

Quanto mais adentrava nesse som, mais conseguia entender esse idioma secreto. “Todas nós ouvimos o seu pensamento. Você é a linha do horizonte’, o eco me respondeu. “É também a pedra no chão, é a água que escorre no tronco, a seiva, a floresta, os prédios, o concreto, você é o outro. E Tudo ouve o seu pensamento, porque nós somos a mente do mundo, e seu pensamento forma o seu entorno.

Processo de desenho breu perdido

Quando respiramos, a terra respira conosco. Quando pensamos, formulamos, temos ideias, as estrelas cintilam em sinapses, iguais aos seus neurônios, pontos de luz. Nós e o planeta somos duas inteligências em constante comunicação.”

Encontrei depois de um tempo, num livro a seguinte frase e me lembrei desse dia:

E sei, que é “a luz que pensa, que canta, que fala, que cria” (Omraam Mikhael Aivanhov, a luz espírito vivo).

A magia é o fim e não o instrumento. E a fonte da arte é um fractal, como infinitos corpos que habitam todos os corpos e por isso nada é de ninguém. E por isso também penso que o corpo mental humano não é apenas é habitado pelo reservatório coletivo da humanidade, porque a humanidade é uma casca que abriga um mistério a ser desvendado pela terra e muito do que somos ou jamais seremos, há de ser exposto por ela, num êxtase pessoal que cada um há de experimentar.

A terra é o útero da vida e a casa da morte, na forma como estamos vivendo agora. Por isso é impossível caminhar neste mundo sem ferir ou sentir dor. E é o útero que digere as minhas emoções mais ancestrais, aquelas ligadas à minha matrilinearidade, tão ferida e trágica. A cada movimento de descida do sangue, o metabolismo alquímico se refaz. Um vazo de renascimento e transformação, abrigo complexo dos elementos Água, Mercúrio, Fogo e Terra. E é através da morte (de fato e simbólica) que se inicia o processo alquímico.

Nos desenhos, tenho observado essa linha de morte-transformação, numa série que se chama Breu, com florestas e vestígios de cabelos, materiais orgânicos deixados ali para apodrecer, que alimentam a mata. Esse espaço é como o primeiro estágio do trabalho alquímico que se chama putrefactio, o trabalho eterno, dos vermes, é o verme nossa mãe (William Blake). Amar a natureza e não amar os vermes é um contrassenso.

Desencarne, 2020

Existe a diferença entre o medo da morte e o medo de morrer. Um é símbolo, o outro é instinto, conservação da vida. Mas a morte é como uma grande propulsora da vida como uma força que faz a roda girar, assim como a sombra, e, portanto, misteriosa. Me encanta os movimentos que ela provoca na nossa imaginação.

Lembro de quando percebi que um dia morrerei, penso no impacto cultural desse assombro ao longo da nossa história coletiva e imagino uma revolução social da morte, quando as mentes irão se render ao paradoxo final. Essa poderia ser a mais importante revolução da humanidade, me permito imaginar as mudanças na vida prática, nas relações, na política, na dança dos poderes.  

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Detalhe – três corações, 2017

Embora que o formato do tempo ainda nos seja um mistério, nós aprendemos a sistematizar a vida linearmente com a contagem das horas, com o antes, o agora e o depois. A morte é um corte nisso tudo. Ela demonstra que qualquer elucidação é uma ilusão. Pra mim ela é a mãe de toda a filosofia, de toda a ciência de toda a arte, de todo o prazer. Morrer é se deparar com a possibilidade do nada ou se deparar com um novo mundo.

Eu era muito pequena e olhava pela janela do carro, íamos à praia, pegamos uma estrada de canaviais, chovia. Cada gota de chuva no vidro reproduzia uma pequeno reflexo ampliado da paisagem lá fora. Lembro de entrar numa dessas gotas e pensar: eu existo, eu existo, eu existo e a percepção de tempo se transformou, como se eu saltasse para fora da linearidade e adentrasse num açude sem bordas. Pensei que a morte deve ser o emblema do infinito, da sensação de totalidade, de existência.

Detalhe desencarne

Memória captada durante um desenho:

Conservo com prazer a lembrança do momento em que descolei de uma casca por definitivo e entreguei-a de volta à terra, com muito amor, em um abraço, no sabor dos pequenos vermes e minúsculos seres que trabalham na desintegração da matéria. Estive a partir de então verdadeiramente feliz, sem forma, dando saltos sem tempos. Levaram minha face embora, só tenho a lembrança de sentir-me dentro de um corpo, casca exótica, veículo de carne, casa viva.

Lembro da saudade de sentir o peso desse corpo pressionando o solo, de sentir-me expressão viva da terra. Hoje vislumbro os corpos mergulhando no solo, em saltos derradeiros, parecidos com os golfinhos brincando com as ondas. Ali, repousamos os ossos, alimentamos os sonhos da terra com as memórias de nossas células em decomposição numa linda sinfonia dos elementos.

Três decolagens de pássaros

Como um presente, depositou na palma da minha mão esquerda um pássaro de coração acelerado e asas quebradas, muito machucado. Não demorou mais que um minuto ele soltou um piado rouco, esticou suas duas asas ao máximo, como quem prepara um voo e amoleceu. Senti, pelo resto do dia, um calor na palma da mão como se ele ainda estivesse ali. Formigava também. Enterrei seu corpo nas raízes de um pé de limão.

Outro dia arranquei da boca do gato um bem-te-vi enorme e desesperado, devia ser fêmea, que gritava a mesma nota e se debatia com força enquanto eu tentava segura-la. Procurei um lugar escuro para tentar passar alguma calma. Fiz das duas mãos uma concha, soprei seus ferimentos, até que ela esticou seu pescoço para trás, como fazendo extrema força de contorção como quem sai de um casulo, e seu corpinho amoleceu morto em minha mão. Enterrei-o nas raízes de um pé de pitanga.

Três gatos disputavam uma rolinha pequenina, que estava na boca de um deles. Ele a soltou num cantinho e os outros a observava, esperando que ela fizesse um movimento brusco e assim atiçar novamente a vontade de caça. Peguei a rolinha, ela com a asa machucada, o coração acelerado e trêmula. Me afastei de todos, ficamos um bom tempo juntas num lugar escuro, demonstrei que ela estava segura. Senti que aos poucos ela foi se acalmando, até que de repente, ela voou, com suas asas barulhentas, em linha reta até uma palmeira do outro lado da rua.

Para conhecer mais a obra de Juliana Lapa acesse:

www.julianalapa.com

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