Ana Raja, formada em jornalismo, nasceu em Maringá (PR) e hoje vive em Brasília. Sempre envolvida com a literatura, tornou-se uma estudiosa da escrita, dedicando-se ao seu aprimoramento. Em outubro estreará como colaboradora do coletivo Crônica do Dia. Atualmente vem trabalhando no seu primeiro romance e paralelamente, escrevendo contos que externam suas inquietações por meio das palavras.
Nos braços do Nosso Senhor
A sala de quarenta metros quadrados fica em silêncio para ouvir a história de Rita Ambrósio de Souza, de vinte e quatro anos. Nunca em Redentor havia acontecido algo assim, de profundo desamor. Era como pensava a maioria e o que constava nos autos.
Depoente 1: A mãe de Rita Ambrósio de Souza.
Nunca conheci pessoa mais doce. Minha alegria quando a peguei nos
braços, nem sei explicar. Foi emoção transbordando por todo o hospital. Quando ela fez a pega do bico do meu peito para mamar, tive a certeza da nossa prisão perpétua. Eu faria tudo pelo bebê aninhado em meu corpo, mesmo sabendo que me tornaria, daquele dia em diante, só carcaça. Vocês acham que é fácil criar uma pessoa? Uma menina? Lá na bíblia fala que os filhos são herança de Deus, mas quantas vezes pensei colocar a menina nos braços do Nosso Senhor e arrancar essa parte do livro sagrado. Ah! Mas Deus é maravilhoso e me concedeu forças para aceitar essa responsabilidade em troca de uma merecida compensação que me guiará ao Seu reino. Eu preciso que conheçam a educação que ela recebeu. Jamais o coração adocicado da criatura que saiu de dentro de mim cometeria esse desatino.
Eu vivi por ela. Ensinei o caminho certo que uma moça de respeito
deve percorrer. Aprendeu muito mais que eu. Cozinhava e limpava uma casa como poucas, nunca precisei de ajudante. Ela é diferente das outras moças. Obediente, resignada da sua função na terra e sabe o peso de cada conta do terço. Não foi esforço desperdiçado. As privações que enfrentei, vocês não sabem da missa a metade. Tenho orgulho do trabalho que executei. É mentira o que estão falando.
Depois do seu nascimento, o dia mais feliz da minha vida foi ver o
resultado do meu esforço: ela entrando na igreja com o vestido de noiva que eu quase usei no meu grande dia. Pura e linda. Tinham que ver. A felicidade estampava seu rosto. Mesmo ela não sorrindo muito, eu sabia que a alegria estava disfarçada em sua timidez. O marido escolhido não podia ser melhor. Homem trabalhador, devoto dos mesmos santos que eu. A energia dele me causava arrepios.
Minha filha nasceu para ser mãe. Como teria coragem de desfazer do seu próprio sangue? Criatura saída de suas entranhas? Ela não tem problema nenhum, quem disse isso? É carcaça como eu, predestinada e conformada por receber a missão de criar uma menina.
A minha neta parecia uma boneca de cera. Eu pergunto a todos aqui: uma mãe faria o que esse juiz está dizendo? Olhem para a minha filha, sentada naquela cadeira, muda, os olhos esbugalhados. Olhem! Olhem bem e digam a verdade. Porque a verdade existe e não é essa que estão cuspindo na cara de todos nós.
Depoente 2: O Marido
Cheguei do trabalho mais tarde aquela noite. De uns tempos pra cá, isso passou a ser rotina. Passos lentos, uma conversa no caminho com um conhecido, à espera da próxima fornada de pão…desculpas e mais desculpas. Queria pisar em casa quando todos estivessem dormindo.
Me dava uma agonia danada cada vez que meu destino era aquele lugar. O casamento tinha acabado há um tempo. Fiquei por dó e também pela criança, que não tinha culpa de nada. Anjo inocente, sabe? Eu escolhi o vestido do enterro, um rosa de babado. Na minha família, os olhos pequenos são marcas que nos identificam e minha filha puxou o nosso sangue. Consigo ver o seu rosto bem aqui na minha frente. A maior contradição na vida de um homem, é ele ter que enterrar um filho.
O que posso dizer é que a convivência ficava no mais ou menos. Sabe como é, né? Sogra, mulher, criança pequena, mesmo quintal. Da esquina da rua, enxerguei a casa toda aberta, os vizinhos na calçada, um carro do resgate e um da polícia. Pensei em assalto. Me aproximei, as pessoas me cercavam, pedindo para eu não entrar. Na hora fiquei confuso, nem entendia o que elas diziam. Estava tudo revirado. Tive certeza do assalto.
Ela cuidava do nosso lugar muito bem. Às vezes me incomodava o exagero com a limpeza. Vivia me proibindo de várias coisas. Não podia entrar com o sapato da rua, sentar no sofá com a roupa da lida, nem pegar copo ou prato antes do banho. Já brigamos tanto, que cheguei a cansar. Por isso, gosto de voltar do trabalho quando todos já foram dormir. Aí, eu tenho sossego.
A vizinha do lado veio falar comigo. Ela tem voz de mãe. Soltou manso no meu ouvido: meu filho. E desse jeito começou a contar que a criança e a mãe não estavam mais lá dentro. Ninguém sabia ao certo do ocorrido, mas dizem que essa desalmada aí gritava feito bicho no abate e o que todos ouviram foi: meu bebê vai encontrar a paz nos braços do Nosso Senhor. Meu bebê vai encontrar a paz nos braços do Nosso Senhor. A vizinha tinha certeza que o diabo havia tomado conta do corpo da infeliz. Ninguém conseguiu invadir o local. Penso que ficaram com medo. Não teve macho na redondeza que honrasse as calças. Só depois que o silêncio tomou conta do lugar, o pessoal arrombou a porta. Encontraram mãe e filha deitadas na cama, a menina com um saco do mercado Valência na cabeça. Essa aí, uma morta-viva, imóvel e muda. Ainda bem que não se matou. Tem que viver para pagar o que fez. Não me conformo. Se existe outro tipo de dor maior que essa, não sei contar para vocês.
Contaram que o resgate levou as duas para o hospital. A minha filha chegou morta. Morreu em casa mesmo. O meu consolo é acreditar que a última imagem captada por seus olhinhos pequenos tenha sido na companhia dos seus bichos de pelúcia. A médica da ambulância, a que tentou ressuscitar a alma do meu anjo, confessou nunca ter sentido tristeza tão doída em anos de trabalho. A própria polícia tentou dar uma chance de virar a história. Quem sabe alguém invadiu a casa e fez aquela barbaridade? As pessoas preferem acreditar que uma mãe não mata um filho. Mas ali não tinha jeito. Não dava para virar tudo do avesso e fazer de novo aquela noite.
Depoente 3: A vizinha
Sempre duvidei da serenidade dessa mulher. Ela tem um sorriso duvidoso, sempre abaixa a cabeça para não olhar nos olhos dos outros e não para de rir. Não é confiável.
. A vizinhança gostava dela, mas eu nunca me deixei enganar. Quando passava por mim, ela me dava arrepios. Não adianta. Meu sexto sentido parece ponta de faca afiada. E tem mais, me recuso a acreditar em quem não acalanta os filhos. Sou a mais antiga do bairro e conheço o jeito de todos os moradores. Já sou aposentada, então, sei de muitas coisas.
A família era pequena, de quatro pessoas, contando com a criança. O casal morava na casa da frente e a senhora no puxadinho dos fundos. Nunca vi uma festa naquele lugar. Nem aniversário da menina, nem churrasco para os vizinhos da rua, nem visitas de parentes. Isso não pode ser normal. Casa em que os moradores parecem mortos? Deus me livre. Eu falava para o meu esposo: esse povo é esquisito. Ele dizia que era implicância minha. Acho que o aparelho de surdez que ele usa anda meio fraco, por isso, não ouvia as mesmas coisas que eu. Por que eu implicaria com os vizinhos? O marido da moça e a mãe dela saiam cedo de casa e muitas vezes nem voltavam no mesmo dia. Ficavam as duas trancadas: mãe e filha. Meu muro fazia divisa com o deles. Dava para ouvir algumas coisas. Não que eu quisesse, mas sempre escapulia umas palavras para o meu quintal. Era um sofrimento. A criança chorava, a mãe gritava, quebrava as vasilhas, chorava também. Às vezes, eu tinha a impressão que alguém arranhava a parede querendo cavar, fugir da prisão. Me dava um nó na garganta, uma zonzeira. Tinha que preparar um chá de acalmar espírito para continuar alerta. Acho mesmo que ela estava com o diabo no corpo naquela noite. Digo mais, e com toda certeza: o diabo apareceu a convite dela.
Interrogatório: Rita Ambrósio de Souza
A Ré foi interrogada e às perguntas feitas respondeu que:
Vocês acham que é fácil criar uma pessoa? Uma menina? Alguém que fica atrás de você o dia todo, chorando, pedindo mamadeira, bico com paninho, não querendo comer, implorando carinho e atenção? Tinha tanto brinquedo e nem sabia brincar sozinha, isso me deixava louca. Voz de criança martelando na cabeça dia e noite. O trabalho na casa aumentou demais desde que ela nasceu, e como era pequena, não ajudava em nada. O primeiro ano eu suportei bem. No segundo, comecei a enxergar que o nosso relacionamento estava mal. Quando ela completou três anos, eu tive certeza que não aguentaria. A verdade é que a gente não dava certo, tipo combinação de signo, o nosso não batia. Ela sugava a minha energia. Trocar fralda, fazer a comida separada, dava muito trabalho. Por que não podia comer o mesmo que eu? Não tenho sangue de barata. O pai, só fez o serviço de me embuchar. Eu até gostava que ele ficasse do lado de fora da casa, o dia todo e boa parte da noite: um trabalho a menos. Eu queria paz. Aceitei que a menina era um problema que somente eu poderia resolver. Organizei as ideias, jejuei por três dias e decidi que iria embora desse mundo. Mas percebi que eu era grande e não caberia nos braços do Nosso Senhor. Estava no fundo do poço. Quando ela começava a chorar, pedia para espantar fantasma e fazer parar o medo, eu escolhia tomar banho. A água me acalmava e eu não pensava em mais nada. Ficava um bom tempo com o chuveiro ligado. Quando saía do banheiro, ela já estava dormindo de cansaço de tanto chorar. Meu corpo estava feio, seco, sem cor. Eu olhava para aquela criatura pequena e sabia que levaria tempo para ela crescer, eu morreria até esse dia. Eu rezei muito, fiz promessa, acendi vela para todos os santos da minha mãe, e nada. Ela me fez acreditar nessa ladainha. Nunca vi pessoa tão incapaz de fazer o certo: mancha roupa branca, salga a comida, fala besteira e pergunta demais. É claro que os santos de minha mãe não iriam me atender. Ela não soube educá-los. Sofri três anos, apenas para garantir a minha salvação. A solução era simples, eu demorei a enxergar, mas não existe nada escondido que não venha a ser revelado. E eu tive a minha revelação. O dia foi de glória. Coloquei o meu problema nos braços do Nosso Senhor. Ele sabe o que faz. Ela está bem melhor do que eu.
Suspense, curiosidade, indignação, nojo, revolta, compaixão, perplexidade.
Ana Raja através das linhas que costura, em ponto cruz, mistura nossos afetos e impressões. Nos oferece uma personagem que odiamos e ao mesmo tempo queremos dar colo. Incrível! . Para poucos tamanha destreza.
Uma história envolvente, e uma escrita maravilhosa, daquelas que captam a gente com leveza, mesmo em meio a uma história forte. Amei e fiquei com vontade de ler mais obras de Ana Raja.
Impactante, pois é comum numa sociedade que uma mãe seja abegnada, mas para Rita a filha era um fardo, uma obrigação e sofrimento…
Ana Raja com uma sensibilidade nos faz refletir será que essa boa filha, esposa e mãe não estava sofrendo com depressão pós parto e ninguém da família reparou no seu sofrimento e grito silencioso por socorro?
Quanta sensibilidade em um assunto que não é discutido. Pois muitos muitas pessoas acham que as mulheres nasceram com um ‘dom’ materno, mas não é bem assim…
Acompanho a carreira literária da escritora Ana Raja e sou surpreendida com narrativas que provocam dor viva, personagens capazes de encantar e assombrar e frases que, de alguma forma, empurram o leitor para o porão das vivências. Por aqui estarei mais perto de suas publicações.
Envolvente, crescente, agoniante, incômodo. E tão cheio de sensibilidade! Um texto que nos traz reflexões sobre maternidade, religiosidade, condicionamentos, verdades. Chego ao fim, querendo ler mais. Parabéns pela construção da narrativa, Ana Raja!