.De Sampaio a Pitanga:

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IZABEL DE FÁTIMA CRUZ MELO | BA Chegou no cinema pelos caminhos da história. É doutora em Meios e Processos Audiovisuais pela ECA/USP, Mestre em História pela UFBA, professora de Teoria da História na UNEB (Universidade do Estado da Bahia) e pesquisadora associada na Filmografia Baiana. Autora do livro “Cinema é mais que filme”: uma história das Jornadas de Cinema da Bahia (1972-1978) (2016) e coorganizadora do Sete Esquinas: Panoramas socioculturais nas Ciências Humanas (2013), além de participar de outras publicações em livros e revistas. Tem interesses de pesquisa vinculados a história e historiografia do cinema, sociabilidades, história e linguagens.


Para compor esta edição, Izabel de Fátima está de volta às páginas da Acrobata e retoma a trajetória de Antonio Pitanga – através para nos situar da importância histórica deste ator, referência no teatro, novela e cinema no Brasil. Pitanga é o corpo apaixonado que precisa nos afetar.

Ao pensar de forma ampla a escrita da história do cinema, é perceptível que mesmo apesar das ditas grandes estrelas, que ocasionalmente são merecedoras de estudos específicos, os olhares dos pesquisadores e demais interessados estão habitualmente voltados para os diretores e suas marcas autorais. No caso do cinema brasileiro, não seria diferente, os movimentos/escolas são pensados basicamente a partir dos percursos dos diretores, assim, as outras figuras que também compõem a cena cinematográfica, tendem a ser esmaecidas na distância do tempo e nas escolhas e recortes estabelecidos na organização do pensamento sobre o cinema.

Assim, o filme Pitanga (2016), dirigido por Beto Brant e Camila Pitanga parece, dialogar (ainda que não intencionalmente), tanto com um apelo de revisão nos critérios, métodos e abordagens da história, ao centrar a sua atenção na trajetória do ator Antonio Pitanga, e, através dele, contar parte da história do Cinema Novo, bem como explicitar a corporeidade negra e suas implicações nesta mesma trajetória, evidenciando o impacto do racismo e as estratégias de Pitanga para ultrapassá-lo na construção de sua carreira. Apesar das dificuldades rememoradas, o filme assume um tom celebratório e solar, próprio da personalidade do seu protagonista.

Para falar de Antonio Sampaio, que depois de Bahia de Todos os Santos (1960), se transforma em Antonio Pitanga, a direção assume a cronologia, construída através de trechos de filmes nos quais Pitanga participou e do único que dirigiu (Na boca do mundo – 1978), conversas e caminhadas em Salvador e no Rio de Janeiro. Caminhando pela capital baiana, o filme começa com o ator e sua família. Transitando pela casa, ele fala sobre sua mãe, desenhada a partir de um perfil socialmente naturalizado das mulheres negras das camadas populares: trabalhadora, aguerrida, capaz de criar os filhos sozinha, visto que os homens se caracterizavam especialmente pela ausência.

Além disso, acompanhamos os casos e histórias bem humoradas, que localizam o público em relação ao lugar do protagonista no tenso xadrez racial e de classe da sociedade baiana e brasileira de meados do século XX , em meio a preparação de um suculento almoço, composto de caruru, vatapá, moqueca, entre outros pratos da culinária afro-baiana. Durante diversos momentos do filme, as questões relativas à família aparecem como um dos temas centrais para Pitanga, seja tratando deste momento inicial, e, sobretudo, do cuidado com os filhos Rocco e Camila, e o dengo e amor em relação aos netos, já nos momentos finais do filme.

Depois de apresentada a casa, o filme ganha a rua e vai articulando as memórias de Antônio Sampaio menino e jovem, circulando pelo centro antigo de Salvador até o seu encontro com o cinema, no Ciclo Baiano de Cinema, que através de filmes como o já citado Bahia de Todos os Santos (1960), A grande feira, (1961) e, sobretudo Barravento (1962), projetando-o no fértil cenário cultural de Salvador dos anos 1960, que envolvia além do cinema, a Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia, o Teatro Vila Velha, entre outros espaços.

O PERCURSO DE UM ATOR NEGRO NO CINEMA BRASILEIRO.

Já como Antônio Pitanga, ele se transforma no principal ator do Cinema Novo, dando rosto, cor e corpo a diversos personagens como em Ganga Zumba (1964), Os fuzis (1964), Esse mundo é meu (1964), Menino de engenho (1965), A grande cidade (1965), Quando o carnaval chegar (1972), Joanna Francesa (1972), A Idade da Terra (1980), além de muitos outros, durante a sua profícua carreira, que envolve participação não só no cinema como na televisão e também no teatro.

Esses e outros filmes são evocados tanto por trechos, quanto pelas conversas entre Pitanga e os amigos que participaram de diversas maneiras da sua trajetória, tais como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Cacá Diegues, Hugo Carvana, Jards Macalé, Luiz Carlos Barreto, Joel Zito Araújo, Milton Gonçalves, Gésio Amadeu Zé Celso, Othon Bastos, entre outros. Nestes animados diálogos surgem como temas não só as memórias e casos bem humorados das filmagens, viagens, mas também, especialmente com outros artistas negros, a reflexão sobre o racismo, as diversas formas de posicionamento frente a ele, e suas implicações na trajetória artística, por meio dos papéis estereotipados, negativas e restrições.

Nesta perspectiva, o filme evidencia as inquietações de Pitanga em relação a ser um ator negro no Brasil e os dilemas de representação que isso envolve. A partir deste prisma, figuras como Ruth de Souza e Abdias do Nascimento, ganham relevo, por serem considerados referenciais importantes, ao mesmo tempo que aponta em Lázaro Ramos uma continuidade desse processo. Outras atrizes da mesma geração como Zezé Mota e Léa Garcia aparecem como aliadas neste longo caminho, que incluiu uma viagem ao Daomé como parte da compreensão da sua negritude que se expressa não só nos seus personagens, mas também nas escolhas da sua vida pessoal, que em alguns momentos são sublinhadas no filme.

Além dos amigos, algumas ex-namoradas também conversam com Pitanga, que exercita seu lado galanteador, relembrando junto com Maria Bethânia, Zezé Mota, Ítala Nandi e Tamara Taxman as histórias dos seus encontros e desencontros amorosos. Embora os episódios sejam narrados de forma leve e bem humorada, as mulheres parecem orbitar como satélites em volta de um homem sedutor, que parece plenamente consciente dos seus encantos passados e presentes e que joga com isso durante todo o filme, reafirmando, como disse Taxman, esse lugar de um “deus negro”, bonito e sexualizado, capaz de incendiar o imaginário feminino (e masculino também), fórmula que espraia para a vida do próprio Pitanga a questão citada anteriormente dos estereótipos, aqui em relação com a construção possível das masculinidades negras da sua geração.

Ainda assim, há em todo o filme uma atitude celebrativa em relação à família e o compromisso de Pitanga com a criação dos filhos, levando-os inclusive para as locações, visto que a sua companheira e mãe de Camila e Rocco, Vera Manhães, não tinha condições de dividir a tarefa, por motivações de saúde. Deste modo, a sua presença e beleza é constantemente evocada em muitas conversas, construindo desta forma uma presença espectral, mas impactante na vida dos Pitanga. A presença de Benedita da Silva como atual companheira de Pitanga, emerge também através de uma conversa divertida em meio as preparações de uma feijoada no Chapéu- Mangueira, na qual os dois contam suas versões sobre o encontro e a convivência do casal.

Em torno desse convívio familiar, o filme ressalta o carinho e cumplicidade entre Antônio Pitanga, os filhos e os netos, numa compreensão comum às famílias negras, que ascendem socialmente – reforçando a ideia de continuidade, numa compreensão de esforço coletivo para que os mais jovens galguem melhores condições de vida, que os seus antecessores. E nesta perspectiva, em uma conversa entre Camila e o pai, surge a bela imagem do “capoeirista mental”. Ou seja, para a filha, Pitanga seria o exemplo de como mesmo firme nas suas convicções e aprendizados, é possível o movimento e a flexibilidade no pensamento, propriedades que agregariam novos aprendizados e possibilidades de interpretação do mundo. Para ele, essa forma flexível, justificaria tanto a sua independência em relação aos movimentos sociais negros (apesar da sua aproximação com as pautas), quanto à ousadia de ser “um negro que não tem medo de abrir as portas” e que não se curvaria ao racismo. Se Pitanga é de fato um “capoeirista mental” ou essa imagem é apenas uma projeção amorosa da sua filha, sinceramente pouco importa. O mais significativo é que o filme proporciona uma homenagem em vida a um dos atores mais significativos do cinema brasileiro, dando visibilidade a sua trajetória, que certamente é inspiradora para tantos outros jovens (ou não tão jovens) artistas negros que ainda hoje lutam contra os silenciamentos das suas produções em todos os campos.

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