PAOLA MARUGÁN | ESPANHA-MÉXICO-BRASIL Doutoranda no programa de Estudos Feministas na área de Ciências Sociais da Universidade Autónoma Metropolina (UAM) Unidad Xochimilco.
Foto: Taylla de Paula
Paola María Marugán Ricart é uma pesquisadora espanhola dedicada a estudar feminismos na arte contemporânea. Para pensar o ofício da curadoria e do feminismo audiovisual, provoca-nos com um ensaio que problematiza o Poder no interior da gestão cultural: “Quem cura os festivais e mostras de cinema? Quais critérios institucionais definem essa função? Quais relações de poder são geridas na prática curatorial? E em definitivo, quem está curando o quê?”.
Como encerramento de um longo período que passei no Rio de Janeiro, tive a oportunidade de exibir na Caixa Cultural, uma mostra audiovisual que desenvolvi junto com o realizador espanhol Marc Martínez e a produtora baiana Giro Produções. No alô alômundo! cinemas de invenção na geração 68 apresentamos uma seleção de materiais fílmicos de cineastas brasileiros e espanhóis que, condicionados pela censura, inventaram novas formas de fazer cinema, desde uma dimensão crítica e livre, em que a experiência do fato experimental foi levada até as últimas consequências.
Marc e eu começamos a pesquisar em 2014. Um ano depois expusemos a mostra em diferentes instituições e espaços autogeridos de Madri, Barcelona e Valencia, na Espanha. E em 2017, ganhamos o edital da Caixa Cultural, graças à cumplicidade e o trabalho de Giro agora, um ano depois, quero compartilhar algumas reflexões que fazem parte do meu aprendizado, no que vem a se chamar a prática curatorial.
O primeiro desafio foi de que maneira acolher sob uma mesma categoria, uma série de trabalhos de diretores que pertenciam ao chamado Cinema Novo e Cinema Marginal. Nós estávamos interessados naquela geração de artistas, que desarticulou os modos estabelecidos de pensar a linguagem cinematográfica tradicional. A categoria marginal, para designar um conjunto de filmes, que representou um movimento de vanguarda no cinema, gerava um grande desconforto. O termo era reativo. Os cineastas não tiveram uma atitude deliberada de serem marginais — como disse a diretora, produtora e atriz Helena Ignez1, na nossa primeira reunião em 2014.
Na década dos oitenta, o crítico e cineasta Jairo Ferreira publicou o livro Cinema de Invenção, em que analisa uma série de filmes do chamado Cinema Marginal, Experimental ou Udigrudi, refletindo criticamente sobre o que é o experimentalismo naquele movimento de vanguarda. “Cinema de invenção” é uma categoria guarda-chuva, que acolhe um conjunto de práticas audiovisuais que supuseram uma quebra estética com o cinema anterior e que surgem em diálogo aberto com outras práticas artísticas, tais como as artes visuais e o teatro. É por isso, que decidimos pluralizar a proposta conceitual de Ferreira. Cinema de invenção acolheria o grande leque dos fazeres audiovisuais (suas éticas e estéticas) e por sua vez, mostraria os trasbordamentos e os excessos de umas práticas que recusam qualquer encerramento categorial.
O segundo desafio, não conseguimos resolver tão confortavelmente quanto o primeiro. Na hora de começar a desenhar a programação, apenas surgiram filmes feitos por cineastas homens. O desconforto era enorme. Cadê as mulheres no cinema daquela época? Quer dizer, não apenas as atrizes e aquelas chamadas de musas, mas as mulheres que produziram discursos e desenvolveram ativamente uma prática audiovisual. Quando começamos a investigação, surgiram várias perguntas que evidenciavam as relações de poder nas curadorias. Quem cura os festivais e mostras de cinema? Quais critérios institucionais definem essa função? Quais relações de poder são geridas na prática curatorial? E em definitivo, quem está curando o quê?
A curadoria pode ser, e de fato é, uma ferramenta de desenvolvidas por mulheres e, adjetivando, mulheres latinas, negras, brancas, indígenas, periféricas, precárias, migrantes, burguesas, trans e daí para a frente. Portanto, é uma decisão política a escolha de artistas, práticas e espaços que conformam um projeto. A curadoria é um instrumento de produção de sentido no nosso imaginário social e assim, tem o poder de fortalecer ou colocar em xeque os estereótipos de gênero, raça e classe, fraturando ou enriquecendo a diversidade do tecido social.
CADÊ AS MULHERES NO CIMA DAQUELA ÉPOCA?
Durante o nosso percurso nos cinemas brasileiros, descobrimos Helena Soldberg, Anna Maria Maiolino, Eunice Gutman, Lygia Pape, Adélia Sampaio, Tereza Trautman, Letícia Parente. Os trabalhos de algumas delas flutuavam entre o cinema e as artes visuais e outras exclusivamente nos circuitos cinematográficos. As decisões curatoriais nos levaram a mostrar os trabalhos de Helena Soldberg, Anna Maria Maiolino, Lelette Couto e Eunice Gutman, e, nos cinemas espanhóis, os filmes de Josefina Molina e Helena Lumbreras. Tais decisões foram atravessadas pelas demarcações temporais do projeto, a precariedade das cópias e também por desentendimentos nas negociações econômicas.
Compreendo a curadoria como uma lente que oferece um olhar diferente de uma discussão histórica, social e artística feita no presente. Desta maneira, é um instrumento de produção de conhecimento e afetações, que torna visível uma série de valores referidos ao cotidiano mesmo das/dos/ des artistas. O descaso desses saberes, que trazem as mulheres cineastas nos seus projetos, gera uma fratura nos discursos historiográficos, artísticos, políticos e sociais, que têm o perigo de fazer-nos crer que o mundo é unidimensional, definido por um único sexo.
Outro dos desafios nesta aventura foi pesquisar as discussões sobre corpo, performance e gênero, naquela década de mil novecentos e setenta, no contexto audiovisual. Parecia-nos pertinente pelo fato de acontecer no período em que o movimento feminista estava nas ruas, reclamando a legalização do aborto, denunciando a violência machista, sob a consigna “o pessoal é político”. Se em uma faseanterior, o feminismo lutou pelos direitos civis no âmbito da política (principalmente o voto feminino), nos anos setenta, a virada foi para as questões referidas ao corpo: aborto, violência, sexualidade, desejo, políticas de representação…
Por outro lado, esse diálogo aberto do cinema da vanguarda brasileira com as artes visuais e o teatro, coincidia em um contexto mais amplo (Europa, Estados Unidos e Japão), com um período de questionamento da obra de arte enquanto objeto material e duradouro, cujo processo de desmaterialização desencadeou práticas tais como a performance, o happening, as intervenções e instalações. Com base a uma historiografia inclusiva, podemos afirmar que as vinculações entre as práticas performáticas e audiovisuais e o movimento feminista são fundacionais. As mulheres artistas fizeram uso da performance e o cinema para tornar visível suas vozes, desejos, reclamos e necessidades, desde diferentes partes do planeta. Algumas referências do continente americano seriam Rita Morena (Brasil), Colectivo Cine-Mujer (México), Norma Bahia Pontes (Brasil), María Luisa Bemberg (Argentina), Anna Bella Geiger (Brasil), Sara Gómez (Cuba), Chick Strand (USA), Narcisa Hirsch (Argentina), Lizzie Borden (USA), Suzana Amaral (Brasil), Patricia Restrepo (Colômbia), Pola Weiss (México), entre outras muitas.
Desse modo, decidimos organizar uma mesa de discussão que intitulamos “corpo, gênero e performance nos cinemas de invenção” para compreender as formas em que tais vinculações se deram no contexto brasileiro. Para isso convidamos a diretora, produtora e atriz Helena Ignez, a professora do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade do Estado do Recôncavo da Bahia, Cynthia Nogueira e na última hora, a cineasta Eunice Gutman participou também do debate. Eu mesma fui a moderadora dessa mesa, marcada sobretudo pelas experiências de Helena, que trouxeram à tona certa inquietação e desassossego pelas analogias entre aqueles anos da ditadura militar e o golpe jurídico-midiático acontecido em 2016.
Segundo Cynthia, as questões voltadas para o corpo na prática audiovisual são um debate que ainda está por ser feito. Ela analisou as personagens femininas dos cinemas de invenção, observando com especial atenção o trabalho de Helena Ignez, em alguns filmes de Rogério Sganzerla e a produtora Belair, como Copacabana Mon Amour e A Mulher de Todos.
Enquanto que as figuras femininas do Cinema Novo estavam reduzidas ao espaço doméstico, nos cinemas de invenção subvertem esse esquema se apropriando do espaço público, que historicamente lhes foram arrebatados. Cynthia afirmou que as personagens dos filmes de Sganzerla são antipatriarcais, ousadas (no jogo de inversões nas definições binárias de gênero) e de ruptura. Elas iriam marcar a trajetória de Helena Ignez com o surgimento de uma nova forma de atuação que se dá a partir do encontro com Rogério. A experiência de Helena, na construção destes personagens foi muito marcante. Ela contou o seguinte:
“Eu vejo agora como foi difícil essa batalha. Dois anos depois de Copacabana Mon Amour eu tinha saído do cinema para sempre, já não me interessava mais pelo cinema. Voltou o desejo depois, em 1985, para fazer com Rogério Nem Tudo É Verdade. Eu tive a vontade de atuar e pontualmente isso apareceu na minha vida, porque eu me despedi. Eu achei que tinha dado o que eu podia. Eu precisei me afastar desses personagens que foram feitos para valer. Com tudo o que eu consegui para dar essa força que eles tinham. E não foi fácil. Não foi fácil de nenhuma maneira. Eu precisei de um momento muito grande de reflexão, de dez anos ou quinze anos de reflexão para voltar a mim mesma e conseguir estar aqui hoje, produzindo, criando, nesse mesmo ritmo – me parece”.
Helena afirmou que as mulheres dessa geração no Brasil sofreram muita violência. A ousadia nas práticas artísticas e na vida cotidiana era extremamente excepcional, e o preço foi a solidão, a incompreensão e o desacolhimento, não só dos homens, mas também das mesmas mulheres.
Por outro lado, os cinemas de invenção nem representavam, nem interpretavam a realidade. “O cinema é verdade”, como disse Neville D’Almeida. com o seu próprio corpo em diálogo com o espaço e o público. Helena pontuou que o teatro contagiou o cinema mais do que as artes visuais. Quando ela e Rogério viajaram a Europa, para acabar o filme Sem Essa Aranha, em Londres, a palavra de moda no meio artístico era “performance”, com artistas como Yoko Ono. Aliás, Helena afirmou que no Brasil ela também estava fazendo performances, naqueles filmes, e tinha uma certa consciência disso, pela vitalidade que traz essa prática e pela sua formação em artes cênicas. Em Copacabana Mon Amour impressiona ver quanto esses corpos estão insatisfeitos, tensos e querem se transformar destrutivamente. Essas ânsias de refazer o status quo aqui e agora não era interpretação, era a vida mesmo em um Brasil afastado das pessoas.
Para concluir, quero sublinhar que Helena Ignez continua trabalhando incansavelmente, produzindo e dirigindo filmes como A Moça do Calendário (2017), Ralé (2016), Feio, Eu? (2013), Luz nas Trevas (2012), entre outras. E assim também aproveito para salientar o trabalho que as mulheres estão desenvolvendo no contexto audiovisual, não apenas como atrizes, mas como diretoras, roteiristas, produtoras, câmeras, diretoras de arte, fotografia, etc.
Confesso sentir um grande desconforto em face à visibilidade das mulheres no cinema nos últimos tempos, com a campanha contra o abuso sexual #metoo, o manifesto das mulheres artistas e intelectuais francesas, e, aqui no México, as questões voltadas ao debate entre as feministas Marta Lamas e Catalina Ruíz Navarro, sobre o abuso, o puritanismo e a sedução. Esse desconforto vem acompanhado de um grande alívio de ver a coragem das mulheres se defrontando ao gigante da indústria audiovisual, denunciando as relações de poder que definem o cinema de Hollywood e os efeitos contagiantes que tal campanha está tendo em diferentes lugares do planeta. Considero isso muito positivo no avanço da luta contra a violência e o abuso.
Aliás, o perigo é continuar reforçando a imagem da mulher vítima (mesmo que agora já corajosa) no nosso imaginário social. Parece que nestes dias, os estereótipos que estão em jogo são a musa e a vítima, uma vítima fortalecida, mas uma vítima no final das contas. Por isso, é fundamental falar do incrível trabalho que estão desenvolvendo as mulheres em contextos e condições que nada têm a ver com os privilégios da indústria hollywoodense.
A mostra ELAS, na Bahia, seria um exemplo da vitalidade de um cinema feito por mulheres, que des-estetiza o corpo feminino, des-sexualiza a violência e nos fala das experiências vitais de corpos que circulam por diferentes geografias afetivas. No ano passado, foi apresentada em Salvador a primeira edição, fazendo uma especial homenagem à diretora e produtora afro-brasileira Adélia Sampaio.
Para Teresa de Lauretis, o cinema é uma tecnologia social, que tem a possiblidade de construir outros objetos e sujeitos de visão. Essa teórica feminista afirma que o assunto importante não seria apenas o que se torna visível ou invisível, mas de que forma criar as condições de visão de outro sujeito social. A mostra ELAS, com os filmes, oficinas e mesas de debate, é um projeto dirigido para criar estas outras condições de visibilidade. Com certeza, América Latina deve ter muitos outros exemplos de festivais, ciclos e mostras comprometidas com estas políticas. Estou ansiosa por descobrir… Bora?