UM ARTIGO-FILME DE
Francisco Santiago Júnior (PI) É professor do curso de História e coordenador do Programa de Pós-Graduação em História da UFRN. Mestre em Multimeios pela Universidade Estadual de Campinas (2005). Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (2009). Pesquisa cinema brasileiro e cultura afrobrasileira.
Somos cercados por espectros desde que nascemos. Existe uma fímbria no mundo ao nosso redor e tal qual não podemos ver todas as cores do espectro eletromagnético a olho nu, sem filtros especiais não podemos distinguir as dimensões invisíveis e seus habitantes, os mortos, os deuses e os sonhos que também compõem a realidade humana. Partamos de uma ideia: o mundo é repleto de espectros, seres que existem como sombras que passeiam entre o imaginário, o onírico e a memória. As entidades do mundo invisível existem no lugar mais poderoso que poderia habitar, qual seja, a mente humana, e por isso podem estar tanto no sonho como no terreiro, na igreja como na rua, no culto e no cinema. O que interessa aqui são os mortos no cinema.
O cinema nasceu como uma fantasmagoria. Quando surgiu, muitos comentaristas e pessoas não sabiam como descrever aquelas estranhas imagens feitas de luz e por isso di-ziam que era como ver fantasmas. Estes fazem parte da vida do cinema desde o início, mas são personagens muito mais velhas. “Fantasma” é um personagem de conto ou história de terror e teve sua origem principal nas narrativas estrangeiras que chegaram a nós. As histórias de fantasmas têm muitas variações, sendo as mais conhecidas as das casas mal assombradas ou as das possessões. Os fantasmas costumeiramente são pessoas que morreram e não descansaram, tenham sido ou não sepultadas – não foram para o “outro plano”. Em muitas passagens das narrativas bíblicas a morte é como uma espécie de sono do espírito, do qual apenas um milagre poderia despertar. Não por acaso, nas narrativas ocidentais cristãs os mortos, quando não dormem, assombram.
Impressiona os tantos filmes (O Iluminado, Caça-Fantasmas, O Sexto Sentido, Os Outros, Atividade Paranormal, O Chamado) e séries televisivas (Sobrenatural, Trueblood) americanos nas quais os mortos assombram e perturbam os vivos. O fantasma é o morto fora do lugar, que não está na tumba e decide aproximar-se dos vivos, viver nas casas, castelos ou hotéis, a tentar “possuir” o corpo do vivo, para viver novamente ou para buscar justiça. Nos filmes, os fantasmas sempre querem algo: eles detestam a morte violenta, ou nem sabem que morreram; querem continuar perto de quem amam e querem justiça ou vingança; se foram maus na vida, costumam continuar maus na morte. Há sempre algo errado – o fantasma é o morto errado que a sepultura e o luto não expurgaram.
Mas é diferente no Brasil e nos filmes brasileiros. Existe o equivalente do fantasma na ideia de “alma” por aqui. A alma ou assombração são termos correntes que designam o morto fora do lugar, aquele que vem perturbar os vivos. As histórias recolhidas pelos folcloristas estão repletas deles. Curiosamente, contudo, o cinema brasileiro não produziu muitos exemplares sobre estas almas ou assombrações, embora em muitos filmes a aparição dos mortos remete também a este sentido. No cinema brasileiro, o que mais aparece é o egun, o exu, o santo e o guia espiritual. Diferente do imaginário marcadamente protestante americano, as visões dos mortos no Brasil têm forte influência de crenças e devoções mediúnicas e a “assombração” é um dos tipos de mortos que povoam as ruas, casas e lugares do Brasil. A perspectiva mediúnica tem raízes tanto no cristianismo como nos cultos de origem indígena e africanas. Os encontros das religiosidades no Brasil produziu um caldeirão amplo no qual os deuses e os mortos trafegam juntos na terra do Sol.
A tradição do cinema brasileiro é repleta de eguns (espírito do morto) e exus. Aliás, ao contrário dos filmes americanos e europeus, raramente vemos Deus, Cristo ou o Espírito Santo agindo. Em inúmeras películas, Exu ou vários eguns aparecem a fazer brincadeiras com os vivos. O exu mais conhecido de nosso cinema ainda é o Vadinho de José Wilker, no clássico Dona Flor e seus Dois Maridos. Vadinho, em vida, era o homem da rua, o malandro sexual e louro que desejava e era desejado por todas as mulheres. Ele morre no carnaval e deixa Flor, sua linda e singela mulher, viúva. A saudade de Flor pelo marido é tão grande que mesmo depois de casada com outro homem, ela o traz de volta como um espírito que apenas ela vê. A célebre cena dela andando na rua com seus dois maridos, estando Vadinho nu, invisível para todos, marca a fronteira do visível com o invisível, o véu que separa os vivos dos mortos.
Quando Vadinho aparece, Flor se apavora com sua presença e pede a uma amiga filha-de-santo que a ajude com a “assombração”. Vadinho, conhecido filho de exu, é então despachado de volta ao mundo das sombras por um ritual de candomblé. Mas o amor de Flor era tão grande, que quando ela percebe que seu exu iria deixá-la para sempre, num grito lancinante, o traz de volta. Vadinho, tal como os exus, é um santo de rua, uma entidade em movimento que passa o tempo a fazer traquinarias. No candomblé, Vadinho era filho de Exu, o orixá, e ele próprio vira um exu, um santo de rua. Ao contrário do fantasma, o exu não é um morto fora do lugar, mas um morto que habita os lugares de passagem, invocado e despachado conforme o desejo dos vivos e o seu próprio desejo. Exu está sempre fora da ordem, porque sem ele o mundo não se movimenta. Os mortos não precisam ir embora, pois podem ficar trafegando entre os vivos, os querem por perto. O exu e outros santos, os caboclos, os eguns, são personagens que mostram a visão de mundo “tropical”: interessa menos a morte do que os mortos e estes falam com e continuam existindo ao lado dos vivos.
Na recente fita Besouro, foi o próprio orixá Exu quem consagrou o protagonista a lutar pelo povo negro contra a opressão. Exu aparece como um negro alto, espadaúdo e forte, desafia Besouro para uma luta com ele enquanto este anda desnorteado numa feira de rua em sua cidade. Para os que veem Besouro, ele fala e parece golpear o ar. Apenas uma velha senhora, uma mãe-de-santo, vê com quem de fato o herói está falando. Quando finalmente aceita Exu, Besouro fica quase invencível, até que o segredo de sua fraqueza é revelado por um ex-amigo traidor. No final do filme, Besouro aparece a pular por sobre os telhados de sua vila, exortando e dando habilidades extras a amigos e sua amada: ele próprio virara um exu, uma entidade de rua a ajudar os vivos em suas demandas. As necessidades dos vivos tornam-se assim as necessidades dos mortos e vice-versa. Tanto Exu ajuda seus filhos como seus filhos se tornam exus para defenderem os seus. Os eguns e exus não estão fora de lugar, embora possam colocar as coisas e os vivos fora de lugar.
Exu, como mostra Besouro, pode ser tanto orixá como um desencarnado. Exu aparece no cinema brasileiro em todas essas formas: entidade do movimento livre, ele serve ao benefício e ao malefício. Ajuda Besouro, mas destrói seu inimigo; o que lhe pedem ele dá em troca de uma paga. Por vezes quem pede não é gente boa, ou o que se pede pode ser o infortúnio de alguém. Exu está longe do maniqueísmo cristão e assim ele aparece no cinema.
Na fita O Amuleto de Ogum, o personagem Severiano, por exemplo, era seguido por exus que o ajudavam a combater Gabriel, avatar do orixá Ogum. Esse filme de 1974 é o mais antigo antecessor de uma geração de filmes sobre os apadrinhados dos orixás que passaram a aparecer no cinema brasileiro e que desembocaram em Besouro. Desde aquele momento, os orixás, mortos e santos africanos lutam pelo povo oprimido junto dos vivos. Gabriel, o protagonista, teve o corpo fechado ainda criança quando fora consagrado ao orixá Ogum. Ele primeiro se associou a Severiano, mas logo este tentaria matá-lo. Impressionado com os poderes de Gabriel, Severiano chama Pai Erlei para conversar a respeito. Quando o Pai de santo realiza um ritual em sua casa, Severiano incorpora um exu que o próprio Erlei só expulsa quando incorpora um Preto Velho. Ocorre uma pequena guerra de santos na casa do mafioso e o Preto Velho saiu vencedor. Mas os exus brigam ao lado de Severiano até o final, quando ele e Gabriel se enfrentam e o poder de Ogum salva o protagonista.
O Amuleto de Ogum foi montado baseado nas crenças da umbanda, segundo a qual orixás e santos auxiliam aos adeptos da religião. “Santo” é uma palavra de origem latina que designava os homens e mulheres que se tornaram protagonistas de piedosas histórias milagrosas de encontro com o sagrado. No Brasil, por meio do sincretismo, a palavra passou a designar várias entidades, desde os orixás que vieram da África e que foram sincre-tizados com os santos católicos às entidades indígenas. Com o tempo, a palavra passou a designar os mortos divinizados, ou para quem surgiram devoções, aqueles que se tornam personagens de histórias de graças e milagres. Os santos do povo têm vários nomes: almas, santos, eguns, exus, mavambos, caboclos, guias espirituais, encantados, milagreiros, etc. Esses personagens apareceram em muitos filmes nacionais: O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969), Copacabana, mon Amour (1971), O Anjo Negro (1972), O Amuleto de Ogum (1975), Dona Flor e seus Dois Maridos (1976), Cordão de Ouro (1978), A Força de Xangô (1978), Prova de Fogo (1981), Quilombo (1984), Besouro (2009), Fim da Picada (2008). Além de várias minisséries televisivas: Tenda dos Milagres (1987), Mãe de Santo (1991), Tereza Batista Cansada de Guerra (1991) e Pastores da Noite (2002).
A marca maior desses filmes é a chamada herança e a memória afro-brasileira, que reconhece a herança dos povos africanos que estão na base da composição cultural brasileira. Quando uma película apresenta um exu, o acento maior é nessa memória afro-brasileira, mesmo quando ele é transformado em agente do infortúnio ou sinônimo de demônio, como dizem os neopentecostais. No caso das fitas nas quais exu se torna uma força pelo benefício, como Besouro ou A Força de Xangô, era evidente que ocorre uma positivação da figura e da herança afro-brasileira. Quando associado ao demônio, retomam-se estereótipos fóbicos de cunho racista, herança do passado escravocrata brasileiro que ainda aparece em fitas como Fim da Picada, mas é mais comum em programas televisivos neopentecostais como Fala que Eu Te Escuto.
Observar a maneira como exu e os mortos aparecem nessas imagens permite sentir a força perturbadora dessas personagens e formas culturais: exus e caboblos perturbam o senso-comum, são explosões de energia artística, afetiva e pessoal. Permitem aos artistas fazerem poemas, filmes e imagens capazes de tirar do senso comum, renovando o arsenal de metáforas com atos capazes de colocar a alma humana em movimento. O majestoso Exu de Besouro é um espectro da memória afro e negra que atravessou o Atlântico naquele fami-gerado trato de viventes escravizados. Hoje, ele aparece como um gigante escuro renovando a força da cinematografia brasileira com a beleza e a plasticidade da herança negra.
Os exus do cinema reforçam a autoimagem negra, de maneira que a memória afro-brasileira possa se expandir para além do “afro” e definir uma ampla gama de brasileiros não-africanos, não-negros. Exu é tanto o orixá transladado da África como o morto divinizado como santo da rua. Ele é tanto o seguidor de Severiano, como aquele que abre o poder de Besouro, é tanto o malandro branco Vadinho como o devastador Calunga. Tira o mundo da ordem e o coloca de cabeça para baixo, numa celebração do movimento da vida.
Nada de fantasmas! Exu e caboclos nos mostram o quanto os mortos não sabem morrer no Brasil porque os vivos, gauches como são, querem que seus mortos sejam tão tortos quanto eles. Tudo está em seu lugar, porque nada está no lugar… nem na espectral imagem do cinema, projeção de luz incapturável como o invisível da herança afro que ela materializa.
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