.O pagode da poesia

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Pretendo, em breve estudo resumido contar um grão do verso Hen/Decassílabo mostrar que até Camões tem um pandeiro

THIAGO E (PI) Poeta de Testes. Relator de Processo. Músico. Autor do livro CABEÇA DE SOL EM CIMA DO TREM (com imagens de Joniel Veras). Integra a banda VALIDUATÉ, com a qual lançou os discos PELOS PÁTIOS PARTIDOS EM FESTA (2007), ALEGRIA GIRAR (2009) e o EP ESTE LADO PARA CIMA (2013). Trabalha na Assessoria de Imprensa do Ministério Público do Estado do Piauí. Com o grupo ACADEMIA ONÍRICA, editou a REVISTA AO(2010/2012). Em parceria com Jan Pablo, produziu o álbum CABEÇA DE SOL EM CIMA DO TREM (2013).

Ilustrações de Cícero Manoel


Haja pano pra tanta manga quando a conversa é a relação entre poesia e música. Tem quem diga que são uma coisa só, pois são regidas pelo mesmo princípio: som e silêncio. O encadeamento de som e silêncio numa composição (ou no verso) gera os ritmos que conhecemos. Todo poema tem um andamento – e pode ser ligado, inclusive, ao molejo de outros gêneros musicais. Você já prestou atenção no pandeiro de um samba e viu que tinha relação com poetas clássicos? Um soneto vai no sapatinho? Tem mais samba na poesia do que supõem algumas vãs filosofias. Há mais de 800 anos, rola um pagode chamado hen/decassílabo. Tá afim? Pouco a pouco, a gente aprende a dançar esse batuque.

Durante o curso de Letras, comecei a pesquisar o verso, especificamente na poesia Seiscentista (que, depois, preconceituosamente, convencionou-se chamar de Barroco). Orientado pela querida professora Só – Maria do Socorro Fernandes de Carvalho – li tratados de metrificação, artes poéticas fac-similadas de Portugal e fui percebendo que aquele universo de tratados poéticos e regras retóricas carrega um humor peculiar e tem tudo a ver com a engenharia da música. É exatamente aquele conceito do poeta americano Ezra Pound: poesia é matemática inspirada. Trazendo pros dias atuais, cheguei à óbvia conclusão: o metro é pop.

O verso metrificado é escrito a partir de uma batida que se repete. O pop tem um pulso contínuo, como uma música eletrônica numa rave, tal qual acontece num verso metrificado. Cada linguagem leva o seu PUTS! PUTS! PUTS! Mas, historicamente, fomos mal educados por muitos professores que não nos seduziram poeticamente. E nossos professores, claro, foram vítimas dessa mesma desgraça educacional. Todos sabem que a cultura na qual estamos supervaloriza a pressa, a “novidade”, desvaloriza estudos antigos e não ensina a perceber tais nuances com a sensibilidade.

É imprescindível deixar de lado alguns preconceitos e tentar pensar a poesia com a cabeça de quem a fazia no seu tempo. Inclusive, muitos poetas do século XXI ainda encarnam uma suposta “transgressão” e acreditam que tudo isso não passa de velharia ultrapassada. É claro que, em determinados momentos da história, alguns movimentos literários, vanguardas, precisaram ser radicais, sacudir o mundo, e execraram o verso metrificado, ou super-defenderam essa forma como o único caminho possível. Agora, porém, a intolerância na arte não é necessária: incontáveis conquistas já foram feitas. Talvez, um dia, esses desinformados poderão saber, enfim, o que realmente é transformar.

O verso hendecassílabo é tema de debate entre poetas e estudiosos desde, no mínimo, oito séculos. Quem se aventura a estudá-lo passa pela transição do Trovadorismo, Doce Estilo Novo italiano, Camões, Seiscentismo, Romantismo, (Pré)Modernismo… até chegar ao nosso hoje. Aprendemos suas permanências e metamorfoses estruturais ao longo do tempo e, sobretudo, nos aprofundamos na história da própria poesia.

Você viu exemplos de hen/decassílabos heróicos – com a acentuação tônica na 6ª e 10ª sílabas poéticas. Todos têm a mesma batida que se repete, como um pop – por isso estão marcados. Ainda começam com a 2ª sílaba forte (importante para o pagode). São chamados de heróicos porque, entre os preceptistas do passado, foi reiteradamente normatizado que o verso mais prestigioso pra louvar os feitos valorosos era o hendecassílabo (com 11 sílabas métricas), também chamado de italiano, verso grande ou verso grave. Ele surgiu na Itália, de Dante, Petrarca, Guido Guinizzelli… como consequência de mudanças na medida velha (de 7 sílabas poéticas), tipo “batatinha quando NASce”.

Isso mudou tudo! Antes, os poemas eram feitos para o canto, para a entoação, a prática oral e, por vezes, pública da poesia. E comumente associavam a idéia de instruir e deleitar, de ensinar algo e causar prazer no leitor, reforçando aquele pensamento do filósofo Aristóteles: as palavras agradáveis promovem conhecimento. A partir do século XIII, adquire progressivamente um caráter de leitura predominantemente privado.

Compor um pop e escrever um soneto são processos parecidíssimos. Fazer uma música com clichê harmônico é como escrever um poema metrificado. O compositor pode esquematizar:

  1. Preciso expressar meu pensamento nesse espaço de 4 acordes;
  2. Cada acorde dura 2 tempos e se repetirá 2 vezes por estrofe;
  3. Em 16 tempos, tenho de chegar ao refrão, e este também durará 16 tempos.

No poema, se escolher escrever um soneto em hendecassílabos heróicos, terei de ter a mesma disciplina – organizando o pensamento para que ele comece, seja bom, convença e termine nesse espaço de 14 versos e, em cada linha, pôr as sílabas tônicas nas 6ª e 10ª sílabas poéticas. Quem cria sem refletir sobre o processo, muitas vezes, faz isso e nem percebe. Mas os caminhos são irmãos.

Já fazer música com uma harmonia diferente, inusitada, é como escrever com verso livre. Aí, você dirá o tamanho da frase, o percurso imprevisível, etc. O autor escolhe seu melhor modo. Pode-se engendrar uma obra maravilhosa de modo livre (e sabemos que esse “livre” não é tão livre assim) ou, como diz Camões, estar preso por vontade num gênero e ter o que se quer.

Não há dúvida: uma grande vantagem, que o verso metrificado tem, é a facilidade pra ser decorado. Você entra naquele compasso e lembra mais fácil. Freqüentemente, a publicidade usa isso com precisão de atirador de elite. Conversando com o amigo Wanderson Lima, ele chamou minha atenção para o slogan do remédio pra dor de cabeça:

2 versos com 4 sílabas, intercalando sílaba fraca e sílaba forte, e ainda termina com uma boa rima (substantivo com verbo). Golaço! E aí, novamente, viva a importância do ritmo no texto! Ninguém gosta de ler literadura – textos que não fluem.


UMA GUERRA COM SÍLABAS HENDECASSÍLABO x DECASSÍLABO

Em 1851, o escritor português Antônio Feliciano de Castilho publicou um livro chamado Tratado de Metrificação Portuguesa, no qual propunha uma mudança no modo como se contavam as sílabas dos versos. A partir de seu Tratado, seriam contadas apenas até a última tônica, desprezando-se a última breve, tão importante ao verso ibérico antigo. Antes, até a última “fraca” era contada. O hendecassílabo perdeu a obrigatoriedade e o valor da décima primeira sílaba e deu lugar ao verso decassílabo – com 10 sílabas poéticas que, desde então, tomou o espaço e o prestígio destinados ao hendecassílabo.

Relembremos que existia uma briga cultural européia. Há dois padrões para contagem e classificação das sílabas de um verso. O primeiro é o padrão agudo, que só enumera as sílabas até a última tônica de cada verso. O segundo é o padrão grave, que leva em consideração também a sílaba átona após a última forte de cada verso. O primeiro modo também é chamado de contagem francesa, pois a maioria das palavras
em francês soa oxítona:


Esses modos de escandir e denominar versos não foram usados somente por eles. Mas
nenhuma cultura queria mostrar subserviência à outra – política e cultura nunca estiveram
separadas.

Depois do Tratado de Metrificação Portuguesa, essa mudança para o padrão francês ficou conhecida como Reforma de Castilho, e aqueles posteriores a esse tratadista o deram todos os méritos da modificação. Contudo, o pesquisador Mello Nóbrega esclarece num ensaio que, na verdade, o reconhecimento deve ser dado a Miguel Couto Guerreiro, outro tratadista português que, já em 1784, quase um século antes de Castilho, escreveu o Tratado de Versificação Portuguesa e propôs a adoção da contagem francesa também para as sílabas dos versos ibéricos. Mello Nóbrega chega a transcrever um trecho da regra IX do estudo de Miguel Couto Guerreiro:

Contando até o acento dominante (Que basta para o verso ser constante) Dez sílabas o heróico inteiro tem…

Repare a forma e o conteúdo do último verso citado. O tratadista defende com um decassílabo heróico – põe a tônica na 6ª e 10ª sílabas – como devem ser escritos esses mesmos heróicos versos. Termina ainda o verso com um monossílabo e enfatiza a mudança para o padrão agudo de contagem – usa um resumo da teoria em versos, muito comum na época – um decassílabo para lembrar sua prática: Dez sílabas o heróico inteiro tem. Era um começo da desvalorização do hendecassílabo e da licença para o maior uso do decassílabo como se conhece atualmente.

Mesmo depois do século XIX e, consequentemente, do predomínio do uso da contagem francesa nos versos ibéricos e brasileiros, os dois sistemas ainda hoje convivem. Há quem opte por um ou outro modelo de metrificação na poesia, como, por exemplo, o professor Said Ali que, mesmo na segunda metade do século XX, preferiu usar o padrão grave para tratar do metro, apoiado no fato das palavras portuguesas
serem quase todas graves – ou seja, paroxítonas.

O PANDEIRO DO POEMA

Para criar o ritmo do samba, usamos tempos fortes e fracos. Para o compasso da poesia (a língua falada e escrita), temos as sílabas tônicas e átonas. Ouvindo algum pagode, percebe-se que sua célula rítmica é simples:

As letras minúsculas representam o tempo fraco. E as maiúsculas, o tempo forte. Observando quem toca um samba no pandeiro, o movimento básico é o mesmo. O músico baterá forte no couro, com o dedão, exatamente onde ocorrem as sílabas tônicas de um verso heróico (acompanhe a marcação acima e nos versos anteriores). E os guizos sacodem nos tempos fracos, nas sílabas átonas. Mas para o andamento ser igual ao do samba, a 2ª deve ser tônica – como ocorre em inúmeros versos da literatura ibérica. Na música, isso também pode ser chamado de prosódia – particularidade lingüística que trata da correta acentuação dos vocábulos na melodia.

O movimento ondulatório causado pela força das sílabas é comum na língua portuguesa (e no ritmo do pagode), indicando intensidade e duração. Na poesia “antiga”, isso também é explicado como arsis e thesis:


arsis = tempo fraco (suspensão / impulso)
thesis = tempo forte (apoio / repouso)

Contudo, a língua sempre guarda algumas sutilezas que podem passar despercebidas. O professor Rogério Chociay, no grande livro Teoria do Verso (1974) aponta algumas nomenclaturas referentes às sílabas que dão ritmo à escrita. Ele adverte que há classificações outras para as sílabas das palavras no idioma. Também nos mostra que a preocupação apenas com a tônica estreita a percepção das várias nuances de intensidade no verso. Esse estudioso afirma ainda que, nos vocábulos, há sílabas fraquíssimas, fracas e fortes: a primeira é percebida como um intervalo entre fracas e fortes; a segunda é sílaba que não tem a força da tônica, mas “dá uma forcinha” e lhe faz um contraponto; e a última é a forte mesmo. Para agilizar a compreensão,
transcrevi os exemplos do próprio professor, que explica:

O número “0” corresponde às fraquíssimas (intervalos), o número “1” para as fracas, e resta o “2” para as fortes. Note-se que o esquema dessas palavras mostra muito a contento como ocorre a variação de intensidade silábica na linha poética. O número “1” faz um contraponto de força na palavra com o número “2” (a sílaba realmente forte), como se, no primeiro vocábulo, tivéssemos 5 sílabas com a seqüência
de “forte-fraca-forte-fraca-FORTE”. Semelhante a este simples gráfico:

A língua e a música brasileiras possuem singulares micro-variações de intensidade – e nos dão uma noção de diversidade rítmica bastante apurada. Contudo, o conceito de ritmo é demasiado complexo. É impossíve esgotar tal assunto em poucas páginas. Comecemos um caminho de troca de idéias. Para o bem do molejo da poesia, agora é só ver, ouvir, “ouviver” no samba e no verso, o pandeiro interno que nos estrutura: o som é nossa estranha arquitetura.

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